tag:blogger.com,1999:blog-24711883354490320602024-03-03T20:26:56.577-04:00Palavrosaa palavra
é rosaAna Líbia http://www.blogger.com/profile/08251435057520511338noreply@blogger.comBlogger351125tag:blogger.com,1999:blog-2471188335449032060.post-62230898547153242262023-09-17T19:49:00.003-04:002023-09-17T19:49:35.687-04:00O coiote e o carcará no meio do Sertão<p>O bom de se ter um blog como se ainda se estivesse em 2002 é que aqui dá pra ser cringe sem culpa. E por isso me sinto autorizada a falar das minhas cringices.</p><p><br /></p><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEj8fiXObFQzAwarBi-uK6hZBJg6IDHfHpq2mHnq_T_7RmStO3YNaHpHQ-2vdke4SQpCB6HG5SSesL7eQEniKxUzroXzlDUKf3dI8BZCpRDxGAzGmOUU64dLmTVSpoiwFfqc_fi2VdT3MFQVQeQJX2GM7CiQS9Jqq5WSZqKGSuMSHsVzA0iDzb4aeEQe-iAi/s640/inbound8263711155296456424.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="480" data-original-width="640" height="240" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEj8fiXObFQzAwarBi-uK6hZBJg6IDHfHpq2mHnq_T_7RmStO3YNaHpHQ-2vdke4SQpCB6HG5SSesL7eQEniKxUzroXzlDUKf3dI8BZCpRDxGAzGmOUU64dLmTVSpoiwFfqc_fi2VdT3MFQVQeQJX2GM7CiQS9Jqq5WSZqKGSuMSHsVzA0iDzb4aeEQe-iAi/s320/inbound8263711155296456424.jpg" width="320" /></a></div><br /><p></p><p>Coisa interessante é observar o que o tempo faz com a gente. Às vezes nem tanto com o nosso corpo, mas definitivamente o que faz com as nossas percepções de mundo.</p><p>Desde a adolescência eu desenvolvi uma relação muito estreita com língua inglesa, de modo que cedo entendi que trabalharia com ela. Não deu outra e me tornei professora. Mas preciso ir um grau além nisso. </p><p>Não conheço nenhum professor que não tenha uma relação de vida com aquilo que ensine, até porque não tê-la faria da sua profissão uma prática vazia. Quando a gente fala de um professor de línguas, então, acredito que todos pensem, em alguma medida, sobre cultura e território. Pois bem. </p><p>Apesar de apaixonada pela língua inglesa, sempre cultivei um profundo sentimento anti-imperialista porque: sim, né? É tosco ver caboclos querendo ser ingleses; mas é um embevecimento, sim, vê-los empoderando-se não apenas ao aprender a língua do império, mas instrumentalizando-a para criar respostas à altura que combatam sua influência. Só que não sejamos ingênuos: nem a consciência dessa apropriação nos blinda dessa influência completamente.</p><p>Eu, por exemplo, aprendi a gostar muito de inglês vendo filme, e filme americano, claro. E eu não sei quantos filmes americanos eu vi nessa vida que não trouxessem imagens do que acho que existe de mais bonito nos Estados Unidos: suas belezas naturais. Convenhamos: nesses termos, esse é um país riquíssimo. Mas (e com dificuldade de afirmar isso) talvez nada me atraia mais que a arquitetura milenar dos desertos americanos. Tiveram responsabilidade os <i>beatniks</i>? Tiveram. Teve responsabilidade o cinema? Teve. Teve responsabilidade a própria história de disputa desse território? Teve. Enfim, um caldeirão de referências moldou o meu olhar em relação a esses desertos, que tenho até hoje muita vontade de conhecer, com uma motivação bem próxima do que seria uma contemplação espiritual sobre eles.</p><p>Mas, ei. Falei ali em "caldeirão", né? Não foi à toa.</p><p>Ontem estava ouvindo uma música que gosto muito e já ouvi várias vezes, mas que, por razões que já descrevo, me bateu diferente. Seu nome é <i>Caldeirão dos Mitos</i>, e não consigo pensar em ninguém melhor que Elba Ramalho pra interpretá-la, mas a composição ficou ao encargo de Braulio Tavares - que até o momento da produção desse texto, eu não tinha conhecimento algum a respeito e foi ótimo dar uma pesquisada pra saber quem é (recomendo que vocês façam o mesmo). Mas voltando, a Caldeirão dos Mitos de Elba e Braulio ontem me bateu diferente. E esse impacto só pôde acontecer depois de muita caminhada pelas veredas infinitas da vida que só existem pra provar pra gente que não existe caminho perdido.</p><p>Estou lendo<i> A Guerra do Fim do Mundo</i>, do peruano Mário Vargas Llosa. Comprei esse livro por acaso, em um sebo, porque não tinha, até então, lido nada dele e essa era uma pendência pessoal. Poderia ser qualquer outro livro, mas calhou de ser esse, e não poderia ter me atraído mais o seu assunto: a ainda pouco compreendida, principalmente no Sudeste, Guerra de Canudos. </p><p>Só que a Canudos de Vargas Llosa conta com vários personagens ficcionais, o que (eu acho) deixa a História de Canudos ainda maior em suas contradições - como acontece em todas as revoluções.</p><p>E é nesse cenário que eu começo a pensar em coisas. Coisas que a canção de Braulio Tavares saúda na voz acesa da Elba.</p><p>Um dos livros que mudou minha vida foi <i>Grande Sertão: Veredas</i>. Ao contrário do romance de Vargas Llosa, esse é 100% ficcional. Mas à semelhança daquele, compartilha a paisagem e o modo sertanejo em seus personagens. Enquanto leio <i>A Guerra do Fim do Mundo</i>, aliás, frequentemente imagino Riobaldo dando em Canudos por acaso, sentando-se quieto num canto, ouvindo a palavra do Conselheiro, tendo uma cumbuca d'água servida por Maria Quadrado e partindo em seguida pelo inexpugnável Sertão. E o Sertão, como diria o mineiro, é o mundo. Só que o mundo, principalmente o mundo sertanejo, é fundado no mistério. </p><p>Por isso que abri esse texto notando o quanto é curioso ver o que o efeito do tempo sobre as nossas percepções de mundo.</p><p>Há uns 10 anos eu não imaginaria que seria capaz de relacionar os sertões americanos - não é o que são? - com os sertões brasileiros. E ao pensar nessa comparação, cuidadosamente considerando tudo o que me atrai nos sertões de lá, me dou conta que o nosso em nada deve em potencial histórico e por isso mesmo fantástico - ou como melhor diria Braulio Tavares, "insólito". Lá eles têm os rituais indígenas com <i>peyote</i>, e aqui não temos a ayahuasca? Lá eles têm os <i>canyons</i>, e aqui não temos os sambaquis? Lá eles têm os <i>cowboys</i>, e aqui nós não temos os jagunços? Se lá moram os últimos <i>tricksters</i> americanos, os coiotes, não encontraríamos aqui uma correspondência na implacabilidade do condor do sertão, o carcará? ambos, inclusive, potenciais representantes do Outro Mundo em sua sentinela?</p><p>O que se vai buscar no Sertão que tem o descaminho como princípio? O misticismo que emprenha as histórias sobre estes espaços se inclina sobre o próprio inconsciente desejo humano por isolamento, silêncio e se arrisco um palpite mais fundo, transcendência. Em um ensaio poderoso, o crítico literário William Deresiewicz faz um resgate ao fundamento bíblico de que não seria possível ao homem ouvir a voz divina na multidão, recorrendo então, à <i>fugere urbem</i>. Mas nesse contexto, cabe lembrar que foi no deserto que, segundo as escrituras, Jesus teria sido tentado pelo Diabo. Sendo assim, seria o Sertão uma espécie de portal por onde o Invisível entra e verbaliza, ou mesmo o contrário, entrando o homem no terreno do Invisível?</p><p>O pacto de silêncio feito por sertanejos e cowboys em relação aos seus territórios parece justamente ser o terreno fértil onde me sinto encorajada a plantar minhas conjecturas. E se antes eu pensava que a resposta pudesse estar em Nevada ou Utah, hoje acredito ser possível encontrá-la mesmo é na Bahia ou em Caruaru.</p><p><br /></p>Ana Líbia http://www.blogger.com/profile/08251435057520511338noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-2471188335449032060.post-89943258419837671822023-07-11T15:07:00.002-04:002023-07-12T00:02:42.326-04:00O vácuo da imagem <div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjL_tSBpGXj8d1Hu4POXMCcmoOQI6CvippikBqjytoF0fW91U477wUwGH6-ypJwW0HFY2TSgyKfROylt1vd6g5QPhRP8cRm7vY6tGILJ7rv9wKyuFbANL9mhmB15Mk-xMyTzmUV-S9mFU7_HTtSdifTAZ7KU1ISDDshzXcagYwn4XeKfsOGYh8H6PkiM2dV/s1500/Andrea+Galvani+%C2%A9%C2%A0Death+of+an+Image+%235.jpg" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="954" data-original-width="1500" height="204" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjL_tSBpGXj8d1Hu4POXMCcmoOQI6CvippikBqjytoF0fW91U477wUwGH6-ypJwW0HFY2TSgyKfROylt1vd6g5QPhRP8cRm7vY6tGILJ7rv9wKyuFbANL9mhmB15Mk-xMyTzmUV-S9mFU7_HTtSdifTAZ7KU1ISDDshzXcagYwn4XeKfsOGYh8H6PkiM2dV/s320/Andrea+Galvani+%C2%A9%C2%A0Death+of+an+Image+%235.jpg" width="320" /></a><br /><i><span style="font-size: xx-small;">Death of an Image n.5, Andrea Galvani, 2006</span></i></div><br /><p><i>como a geração brasileira que adolesceu na primeira década dos anos 2000 pode ter sido a última a não ter imagens de si própria neste intervalo - e de que maneira isso permite sua reinvenção</i> </p><p><br />Existe um intervalo entre o fim do analógico e o início do digital que foi percebido de maneira peculiar por uma classe média que não podia fazer uma viagem por ano para a Disney. Essa classe média, valores inflacionários corrigidos, nominalmente a classe C, que se espremia entre pagar a mensalidade do colégio particular (isso quando, muitas vezes, não inseria seus filhos no ensino público), água, luz, bens de consumo e pôr a comida na mesa era aquela que, diante dessa transição tecnológica, não tinha dinheiro sobressalente para custear os primeiros celulares com uma câmera - e mesmo as câmeras de qualidade só surgiriam no fim da primeira década dos anos 2000, quando acontece a ascensão do IPhone e com ela a implementação definitiva do sistema Android, permanentemente desbancando o império escandinavo-gêrmanico da tríade Sony Ericsson-Nokia-Siemens, até hoje lembradas pela durabilidade de seus aparelhos de então. Neste período, correspondente aos dez primeiros anos da década de 2000, quem não podia Nova Iorque ia de Madureira: era, para esta classe, a era da câmera digital (que já era popular entre as classes A e B nos últimos anos da década de 90). E aqui mora a peculiaridade.<br /><br />Para a geração brasileira da classe C que entrou na puberdade no início dos anos 2000, era comum um certo bordão num programa de TV que dizia "Agora vamos falar de coisa boa, vamos falar de TekPix!". Teria sido o Juarez da TekPix, anunciante do produto, o primeiro meme brasileiro? É possível. TV FAMA, o programa em questão, numa era pré-smartphones e pré-internet como conhecemos, gozava da mesma popularidade que outros contemporâneos, encabeçados por Pânico na TV e seguidos por demais programas de auditório distribuídos por canais abertos. Depois das novelas, estes eram os programas mais populares, mas se nas novelas a merchandising é, até hoje, relativamente velada, nesses programas ela era estridente. Ocorre que o anúncio desse tipo de câmera, feito em programas com uma vultuosa audiência, surtia um interessante efeito de vendas. Se a propaganda cria o desejo, e se em cada época existe um bem de consumo supérfluo que captura o <i>zeitgeist</i> (como foi o Discman nos anos 80, seguido pelo Bip nos anos 90), o desejo do trabalhador brasileiro em 2002 era adquirir uma TekPix. A essa altura, as câmeras analógicas mais práticas (aquelas, que o meu pai e o seu tinham, não a Leica do filho do patrão deles) já estavam saindo de circulação. <br /><br />Estabelecidos os supracitados critérios de classe, quem nasceu no fim dos anos 80 teve, durante a infância, certa intimidade com o analógico. É claro: a relação das pessoas com câmeras varia bastante, mas isso não importa muito durante a infância, pois seus primeiros detentores de direitos de imagem são os pais. Para muitos destes, que tinham crianças em casa nos anos 90, as fotos poderiam ser abundantes. E tome fotos em aniversários, em viagens pro sítio, pra casa de praia (em Iguaba), no trabalho da mamãe, no passeio da escola, do cachorro. Toda família certamente continha ao menos um membro que tinha alguma relação com o ato do registro, o que, desde as pinturas rupestres, é a atividade mais genuinamente humana da qual se tem notícia. Foi o último momento em que reinou absoluta a Kodak, subestimando a ameaça que já surgia com o desenvolvimento das primeiras câmeras digitais, ainda na década de 90. Em seu conforto e garantia monárquicos, não anteviu a própria queda.<br /><br />Mas de que maneira isso afeta a adolescência do grupo em questão? Voltemos ao início do texto.<br /><br />A transição dita provoca uma vacuidade de registros que, em 2023, já não é possível, salvos estejam os eremitas digitais. Se aqueles que foram adolescentes nos anos 70 possivelmente tiveram sua infância e adolescência fotografadas em câmeras analógicas (sempre sendo considerado aqui um parêntese socio-econômico), os nascidos em 1988, a exemplo de quem vos escreve, experimentaram uma suspensão temporal de, aproximadamente, 7 anos no mínimo, a 10 anos no máximo, que foi o tempo que durou essa transição. É improvável que estejam preservados, por exemplo, registros feitos, em 2005, por um Motorola V3, em meio a tanto lixo digital. Nesse período, este era considerado um super-celular, e tremendo sonho de consumo para a classe C. Quem não poderia comprar um, apelava para TekPixes ou similares (parceladas em até 12x sem juros). <br /><br />A isso, some-se a questão da funcionalidade e portabilidade. Em 2023, já não há mais quem diga que "celular é pra falar", por menos íntimo que seja de redes sociais ou mesmo que se abstenha delas por completo. A menos que você fosse um fotógrafo (ou aspirante a um), não seria muito comum carregar uma câmera digital na bolsa - principalmente se você fosse um adolescente. Desse modo, a câmera digital continuava com status de pequeno luxo, sendo reservada às ocasiões pontuais já comentadas anteriormente. Além disso, havia certo trabalho em transferir as fotos de uma câmera digital para um computador, para que pudessem ser visualizadas em uma tela maior, uma vez que revelá-las não seria a ideia - e mesmo falar em "revelação", aqui, sequer faz sentido, pois este é um termo intimamente ligado à mecânica do aparelho analógico. A ideia do digital era sua conexão com um computador pessoal, necessariamente. Retomando o recorte socio-econômico aqui feito, não era toda família da classe C que tinha um em casa há vinte anos atrás. Havia, ainda, o risco de perda: câmeras digitais poderiam ser perdidas. Uma coisa era perder uma câmera analógica que já teria seu filme revelado; a outra era perder uma com todas as fotos dentro. Tudo isto posto, calcule: quão seguras estavam as fotos desta época? Abra o baú das suas fotos físicas. Quantas fotos digitais deste período você tem? Os primeiros celulares com câmera miraram justamente esta lacuna, e como se vê, encontraram aí um nicho tecnológico sem precedentes econômicos.<br /><br />Mas com o desenvolvimento deste nicho surgem problemas que não poderiam sequer ser calculados.<br /><br />Não há dúvida que o suicídio sempre tenha sido uma constante na história da humanidade, mas o surgimento das redes sociais cria uma relação entre ele e o <i>cyberbullying</i>, sendo o primeiro caso documentado em 2006, quando do suicídio da jovem americana Megan Meier, aos 13 anos, vítima de uma difamação que tomou proporções trágicas. Deste momento até aqui, há um crescimento exponencial de suicídios que têm alguma origem no <i>cyberbullying</i>. A geração Z é a maior vítima, justamente por ser aquela conhecida como nativa digital. Sua adolescência se dá a partir da primeira década dos anos 2000, pouco mais de dez anos atrás, momento em que a internet já está assentada como conhecemos. Por mais nativos digitais que sejam, falta aos membros dessa geração o desenvolvimento da sensibilidade para lidar com aquilo que, antes, se restringia ao tempo e ao espaço da escola, e que assim sendo, permitia rotas de fuga. Em lugar desse desenvolvimento, o que tem-se é uma supressão violenta, que reveste esses adolescentes de uma casca emocional frágil que, quando se fratura, tem potencial arrasador, quer para o ofendido, quer para os ofensores. O aumento dos ataques em massa em escolas também pode ser observado como um desdobramento desse fenômeno. Se antes você tinha, ao menos, o direito a um mano-a-mano na saída da escola (e não que isso tenha acabado), hoje o tipo de vingança mais comum é a exposição indevida de alguma foto ou vídeo conseguidos ilicitamente e replicados a perder de alcance. O poder da imagem é implacável. E a internet não esquece.<br /><br />É muito provável que a geração nascida no fim dos 80 seja a última com direito real ao esquecimento do período que costuma ser o mais problemático para todo ser humano. Geralmente é na adolescência que surge a vergonha, a sensação de ser ridículo por alguma coisa, a timidez e tudo o mais que caracteriza esta fase. Se uma imagem vale mais do que mil palavras, as fotos da adolescência de alguém podem ter o poder de cristalizar todo esse momento, reduzindo o sujeito a uma imagem estereotipada que pode ser simplesmente passageira. Experimente contar quantos artistas mirins seguiram na indústria e estabeleceram carreiras sólidas crescendo diante das câmeras. Entre outros fatores, é mais do que comum a constatação de que muitos sucumbiram à pressão das expectativas criadas sobre eles, voltando para o anonimato no melhor dos casos. Em um ensaio revelador de 2019, a escritora Nausicaa Renner reflete sobre a premissa contida no livro de Kate Eichhorn, <i>O Fim do Esquecimento: Crescendo nas Redes Sociais, </i>de 2015. Neste, a autora defende que a facilidade com a qual crianças hoje geram e administram a própria imagem no mundo virtual pode prejudicar sua capacidade de filtrar as memórias que realmente desejem reter, e que isso viria a impedi-las de reinventarem-se ao longo da vida. <br /><br />Renner menciona que, segundo Eichhorn, todos se beneficiam da experimentação na adolescência. Em um dos pontos centrais de seu ensaio, ela chama atenção para o que postulou o psicanalista Erik Erikson. Ele acredita que, durante este período, nós vivemos no que ele intitulou de "moratória psicossocial", um estágio no qual oscilamos entre "a moralidade aprendida pela criança e a ética a ser desenvolvida pelo adulto". A moratória é um período de tentativa e erro em que a sociedade deixa livres os adolescentes, a quem permite correr riscos sem o medo das consequências, na esperança de que, agindo assim, eles irão construir o núcleo de sua personalidade - um senso pessoal do que dá sentido à vida. A internet interrompe a privacidade dessa era, com a tendência de escalar pequenos deslizes a erros monumentais que constarão em uma espécie de ficha permanente. Se delimitarmos a questão por gênero, as coisas podem tomar proporções dantescas. Por exemplo, na minha adolescência tive uma amiga que namorou com um rapaz durante algum tempo. O namoro terminou quando ele gravou e divulgou um vídeo íntimo dos dois na internet. Requintando a falta de caráter, foi capaz de gravar um DVD e vendê-lo no camelódromo no centro da cidade. A menina deixou a escola e, no boom do surgimento das primeiras redes sociais, como Orkut e Facebook, ela nunca fez um perfil pra si, tamanha foi a repercussão do caso. Havia se tornado um fantasma de si mesma. Era o primeiro <i>revenge porn </i>do qual eu tinha notícia. Desabrochando em sua vida sexual, ficara marcada definitivamente. Por quanto tempo não terá carregado esse trauma para outras relações? De que maneira o crime que foi cometido contra ela não tornou-se a imagem mais forte de sua adolescência, até para si própria? Após algum tempo mudou-se, e nunca mais tive notícias dela. Como dito, a internet não esquece.<br /><br />O vácuo da imagem sentido pelos que podem ser chamados de <i>late millenials, </i>ou simplesmente aqueles nascidos no final da década de 80, permite a eles uma melhor capacidade de seleção da memória, o que faz com que valorizem as experiências boas em detrimento das ruins, de modo que essa agência crie uma personalidade menos suscetível a provocações e ao <i>bullying</i> feitos internet adentro. Quem aprendeu a se defender na vida real e cresceu tendo sua privacidade relativamente preservada tem mais chances de sobreviver nesta espinhosa selva de informação. Assim sendo, será mais fácil lembrar de como o Luizinho ainda tinha cabelo naquele passeio para Petrópolis em 2002 e das risadas naquele dia, ou mesmo recriar, mentalmente, um primeiro beijo que nunca aconteceu enquanto o ônibus voltava da serra. Já nos dizia Waly Salomão: a memória é uma ilha de edição. A magia que amplia a criatividade humana acontece no ato de recontação - uma sorte que, depois da exatidão inflexível do Google Photos, pode estar perdendo o seu encanto. </p>Ana Líbia http://www.blogger.com/profile/08251435057520511338noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-2471188335449032060.post-56082789947067368262023-05-29T14:26:00.004-04:002023-05-29T15:05:48.726-04:00Quando Jorge Errou - imperdoavelmente<p>Tenho um amigo que costuma dizer que se parece com um marreco. Em sua perspectiva, um marreco é capaz de fazer muitas coisas, mas nenhuma delas faz direito. Foi assim que há alguns anos ele começou sua entrevista no Programa do Jô, auto-apontando sua suposta falta de talento, quem sabe utilizando isso como um escudo à prova de ataques sobre seus dotes artísticos - meu amigo é escritor, DJ, músico e cineasta. De fato: é para poucos expandir o talento em múltiplas direções, e principalmente manter sua qualidade nesse superdigitalizado mundo pós-industrial. Para poucos, sim, mas esses poucos estão por aí, entre a fama e o anonimato - quando a humanidade dá sorte, alguns deles alcançam a fama. E um desses poucos é Seu Jorge.</p><p>Seu Jorge é um dos personagens brasileiros mais consistentes em sua versatilidade artística. Digo isso sem medo. Bem sucedido como ator, intérprete, compositor, cantor, produtor e sabe-se lá o que mais, Jorge Mário é um brasileiro cuja trajetória artística foi marcada por alguns altos e baixos, e mesmo sua conhecida história faz dele um exemplo de superação. Os prêmios que coleciona, tanto na música quanto no cinema, não foram concessões voluntárias de uma indústria apenada por sua história, mas pelo mérito de seu esmerado trabalho artístico reconhecido globo afora. </p><p>Como qualquer pessoa no mundo, o artista tem suas complexidades, sobretudo políticas. Em 2007, Seu Jorge fez coro no vergonhoso movimento Cansei, que reunia o que de pior havia na vampira elite brasileira, entre socialites, celebridades situacionistas e figuras públicas no mínimo questionáveis. Falo de gente como Regina Duarte, Hebe Camargo. Para quem possa vir a ter a memória embaçada, o Cansei é a versão coxinha do que viria a se tornar o bolsonarismo anos depois. Algum tempo depois disso, Seu Jorge volta a se posicionar, desta vez ufanando-se de morar em Los Angeles para justificar seu desprezo por um país que nada lhe deu. Considerando seu histórico, não é tão difícil fazer um pequeno exercício de alteridade e se identificar com a revolta que pode tê-lo motivado à certa arrogância ao tentar se defender de certas acusações com relação ao seu posicionamento político: questionado (e disputado) por uma esquerda ocasionalmente dogmática, Seu Jorge parece esforçado em manter-se longe dela (desde sempre), indo na contramão do que geralmente se espera de um artista negro brasileiro que chega ao estrelato; coisa que, no passado, experimentou também Wilson Simonal. Longe de absolvê-lo, ao menos é possível encaixar certas peças neste tabuleiro que me levam minimamente a compreendê-lo. Em certa medida, estes são episódios apenas lamentáveis diante do Grande Erro de Seu Jorge.<br /><br />E o Grande Erro de Seu Jorge acontece no ano de 2015, quando ele lança uma das maiores tragédias da música popular brasileira: a música FELICIDADE.<br /><br />Movido pelo justíssimo sucesso de Músicas Pra Churrasco Volume 1, lançado em 2011, Seu Jorge lança a segunda versão homônima, quatro anos depois. E é nesse álbum que esta música está. <br /><br />Há muitas razões pelas quais uma música cai (ou não) no gosto popular. Melodia, letra, embalo, algum tipo de piada interna, algo que motive a criação de memes: as duas últimas têm funcionado como um método fácil de popularização. "Felicidade" atingiu sucesso no ano de seu lançamento e até hoje é bem difundida no rádio, e aparentemente passaria incólume pelo público se eu não tivesse nascido.<br /><br />Não há nada mais enfadonho na cultura brasileira inteira que a letra desta música pela mesma razão que todo comercial de margarina é cafona, porque inverossímil. "Felicidade" é, portanto, como se um comercial de margarina tivesse sido musicado; um marketing feito na medida para vender um produto que - sabe-se - é ruim para o consumo, dada a sua redonda artificialidade. Na letra, Seu Jorge elenca situações que traduziriam o que é a felicidade (o que por si só já é um dos assuntos mais complexos que há), mas a maneira como faz isto é tão pobre e crivada de imagens previsíveis que revela um despudor significativo sobre o próprio assunto que escolheu abordar. Felicidade, sem entrar em camadas filosóficas mais profundas, é tópico sério, sensível e altamente subjetivo, mesmo que não deixe de ser leve. Até mesmo gente aparentemente menos ajuizada conseguiu se sair melhor que Seu Jorge em sua definição - afinal, felicidade pode ser, sim, um fim de tarde olhando o mar, como os cariocas aprenderam em 2005 na voz de Danilo Cutrim com os demais meninos do Forfun, que inclusive pareciam mais relaxados sobre ela, não procurando defini-la à exaustão com pares de frases tão preguiçosas. Talvez more aí a diferença: a Felicidade de Seu Jorge é compartimentada, pronta para o consumo. Em último, instagramável. E não existe, no mundo moderno, nada mais cafona que o próprio conceito de instagramabilidade. <br /><br />Mas me resta, ainda, uma última teoria. E isso tem potencial de mudar completamente tudo o que foi colocado até aqui.<br /><br />É possível que "Felicidade" seja uma das músicas mais inteligentes do país se lida como uma peça irônica sobre o que pode vir a ser a tal difusa e inconceituável felicidade. Só gente muito grande faz esse tipo de movimento. Luiz Melodia aprontou uma dessas em Mico de Circo, de 78, quando cantou "Eu Sou o Samba". À uma segunda vista, o que antes parecia ser a entoação de um coro de saudação dá lugar à jocosidade esperta e madura que Melodia sempre depositava nas suas músicas como senhas (ainda que esta, em específico, não fosse sua). Na voz do menino que desceu o São Carlos, a interpretação desta música surge em tom debochoso, de alguém que conseguiu entrar na festa dos brancos, mas sabe muito bem de onde veio. Coisa semelhante (e convenhamos, menos discreta) também fez Gonzaguinha em 73, com "Comportamento Geral", em uma letra que discorre sobre a passividade bovina do trabalhador brasileiro frente ao achatamento de sua própria vida pelas engrenagens do sistema capitalista. Se Seu Jorge tiver tomado este caminho ao compor a música que dá assunto a este texto, ele passa de fastidioso a gênio num estalar de dedos. Mas infelizmente tenho motivos para desconfiar que não seja o caso.<br /><br /><br /><br /></p>Ana Líbia http://www.blogger.com/profile/08251435057520511338noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-2471188335449032060.post-65104799641728013652023-05-29T13:15:00.002-04:002023-05-29T13:15:38.200-04:00Pequenas Notas sobre o Igor<p>Gosto como o Igor se utiliza de adjetivos inusitados pra descrever unidades de medida, por exemplo. Uma colher de plástico pequena, na boca dele, torna-se "interessante". Na boca dele, aliás, nada parece desperdiçado: tudo tem uma função, um porquê. Gosto de como Igor brinca com possibilidades silábicas criando palavras novas, e não que ele seja o primeiro a fazer isso, mas as palavras dele são dignas de popularização: revesfrengo mariolete, pacolalafágrigo, ximbirra; a graça é o costura-descostura. É um self-service semântico: pegue uma e aplique-lhe um contexto. Atesto: vai servir. (É claro que, segundo o mesmo processo eu já ganhei vários adjetivos, mas sobre isso vocês não precisam saber). </p><p>Gosto de ver a sensibilidade do Igor onde é inevitável: seja sua opinião sobre a textura de um caldo, ou quando uma situação envolve as finíssimas camadas das relações interpessoais. Sob o risco de não parecer sincero o bastante, Igor prefere o silêncio. Talvez seja mesmo coisa dessa gente de maio, que observa mais, absorve menos. Para uma deglutição lenta: quatro estômagos.</p><p>Gosto de ver o Igor dormindo, pesado feito o esquecimento e leve tal qual a consciência, como quem confia naquela hora em que o corpo se entrega à toda vulnerabilidade que pode. Gosto como Igor confessa quando não tem certeza. Pessoa muito lógica, Igor não se sente constrangido ao revelar o que não sabe, não fica procurando circundar, com argumentos imprecisos, algum assunto que não domine só pra não se sentir excluído ou defasado sobre ele. Nem sempre é indispensável estar por dentro de tudo. Inclusive, gosto como Igor lida com a solidão.</p><p>Acima de tudo, gosto de como o Igor não me dá tudo o que eu quero, porque me obriga a repensar meus quereres. Quem tem tudo o que quer, ao tempo e à hora, acaba sendo mimado por desejos pobres, mal construídos. E a verdade é que estamos nos livrando de incômodos e desafios cada vez mais cedo por esse motivo. Por não me dar tudo que quero, Igor me dá o benefício de desejar melhor.</p><p>Gosto quando o Igor tenta rimar. É sem sucesso, mas pelo menos é engraçado. Falando nisso, Igor sente muita cosquinha, mas antes que isso seja usado contra ele, ele parte pro ataque. (Hoje acho que isso pode ser análogo aos seus sentimentos também, mas esse é um segredo bem guardado). Gosto de testemunhar o Igor aprendendo algo novo. Desconfiado, é como se ele se recusasse a aceitar algo de primeira, precisando ser convencido daquela verdade. São tantas as particularidades do Igor que é fácil me estender, o que faz com que seja difícil escolher o que mais gosto sobre ele. Mas acho que me decido assim:</p><p>Gosto da maneira como o Igor aumenta a minha curiosidade pelo dia seguinte. A curiosidade é o melhor avesso da ansiedade. E estar curiosa pelo dia que vem é o que me deixa em paz com a vida.</p>Ana Líbia http://www.blogger.com/profile/08251435057520511338noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-2471188335449032060.post-62374219292339286292022-03-04T20:59:00.004-04:002022-03-04T23:45:04.030-04:00A tensão nas montanhas<p><i>Como uma cidade inteira tornou-se refém da força da natureza e do descaso do poder público - e como minha história breve atrela-se a ela.<br /></i><br />Por Ícaro Gonçalves<br />02/08/2007<br /><br /><br />BRILHAM DE LONGE - EU VI<br /><br />Os carros passam rápido por aquele trecho da avenida. É prudente fazê-lo, mas a imprudência ainda move o espírito humano, e sendo assim, há quem se detenha, mesmo rapidamente, e olhe para os lados. O líquido aceso, dali se vê, escorre lento do cume das montanhas, feito a cabeça apedrejada em sangue dum gigante, interrompendo o escuro da avenida mal-iluminada. Essa avenida, aliás, tinha ficado bastante conhecida por ser corredor intenso de passagem pra vários pontos da cidade, sendo cortada tanto por gente rica quanto por gente pobre, representando a interseção acidental entre dois mundos que, pelo menos na maior parte do tempo, pareciam não se tocar. Da pista, a cadeia de vulcões é visível a quilômetros, enquanto os vulcões mais violentos seguem vilipendiados pelo poder público, ganhando os jornais apenas em épocas de atividade muito franca. <br /><br />É promessa comum de campanha o investimento expressivo na pasta de Geologia e Segurança. Na cidade inteira não há propósito mais urgente. O governador Cesário Felix, velha e conhecida raposa das massas, vive anunciando a abertura de concursos e contratação de todo um novo corpo de geólogos das melhores instituições, nacionais e internacionais, que venham sanar o problema da atividade vulcânica excessiva, sofrendo críticas de todos os espectros políticos que, se de um lado defendiam, à miúda, a importância econômica dos vulcões, por outro argumentam que, como força da natureza, os mesmos não deveriam sofrer controle, e portanto, é responsabilidade do estado fornecer alocamento nas regiões centrais para as pessoas que, por falta de opção, têm que viver aos pés deles. Nesse estica-e-puxa verbal, nada se resolve, afinal, era assim o jeitinho carioca desde a corte portuguesa. Mesmo assim, não havia quem negasse como era bonito ver aqueles raios vermelhos de deus furioso, o tipo de beleza perigosa que atrai pra ferir, pra matar.<br /><br /></p><p>CATALOGAÇÃO </p><p>A última catalogação geológica feita no estado não abrangia o interior porque se dizia que o índice de atividade sísmica por lá era ínfimo o bastante para não se despender esforços do já débil governo - ou assim as condições se retroalimentavam, com o governo de certo modo contando com a atividade sísmica moderada pra depois da serra das Araras, ao longo do Vale do Paraíba e também na região da Costa Verde, o que era, mais uma vez, puro e simples vilipêndio e ardil governamental. É claro que tinha havido erupções nesses lugares, não era pouca a literatura sobre centenas de pessoas desalojadas, por exemplo, nas encostas de Muriqui; é claro, também, que muitas haviam morrido, como bem documentado naquele filme que prefeito e governador tentaram obscurecer (mas que encontrou seu caminho e foi notícia por um tempo até realmente sucumbir à falta de divulgação). Mas estes são barulhos que acontecem longe da capital o suficiente para que não suscitem interesse público. </p><p>Naquele momento, de acordo com a catalogação, os pontos de interesse geológico mais fortes concentravam-se na regiões que abrangiam as Tijucas 1 e 2, Cidade Nova, Costa e Bastos; partes pontuais do subúrbio e baixada fluminense, além de contar com o imenso Rosso, que competia, em tamanho e atividade, com o vulcão de Costa e Bastos, e que por não estar tão distante assim do chique bairro do Itanhangá, movimentava certa rotina de monitoramento no seu entorno. <br /><br />De acordo com os vulcanólogos em recente entrevista ao canal Tempo e Hora, a falta de monitoramento em regiões mais remotas do estado poderia vir a se tornar ainda mais dispendiosa que o não-monitoramento destas áreas, dado que a falta de observação teria grandes chances de resultar numa resposta muito mais difícil e pouco eficiente em caso de erupção repentina. A avaliação dos profissionais fora unânime. Virgílio Satzio, do departamento de Vulcanologia 1 do campus de Paciência da Universidade Batista, afirmou categoricamente que "o que se espera é que, sentados sobre uma bomba relógio, ela não exploda", e alertou para o episódio do ano passado ocorrido em Samarillo, no interior do México, quando da explosão do vulcão El Kike, que deixou em seu caminho um rastro de mais de cem mil mortos e incalculável prejuízo material e humano para o país. <br /><br /></p><p>ERUPÇÕES HISTÓRICAS </p><p>Me lembro até hoje do dia que o sismógrafo central disparou o alerta simultâneo dos três vulcões mais ativos da cidade (Tijuca 2, Costa e Bastos e Rosso). Eu estava voltando pra casa, de ônibus, depois de um dia pesado de trabalho, quando os rádios da cidade começaram a veicular a notícia. Chegar em casa foi o caos em todos os pontos da cidade. Soube de muita gente que, com medo, procurou outros lugares pra ficar. Precisou a força nacional chegar, no terceiro dia, pra erguer a barreira de contenção que, por custar aos cofres públicos o que os deputados chamavam de insanidade, era considerada medida extrema e aplicada apenas em último caso, quando borda de segurança e parede de titâneo já não mais seguravam o avanço da lava. As erupções desses vulcões, nesse período, fizeram história, e foram tomadas como marco geológico durante muito tempo. Muita gente, pega de surpresa, sucumbiu aos vulcões, e até hoje as estimativas de mortos são imprecisas. Na época, falou-se em duzentos mil de setecentos. O estrago maior foi provocado pelo Costa e Bastos, apesar de Tijuca 2 ter recebido maior cobertura de mídia dada a sua localização. Até este dia estuda-se a possibilidade destes vulcões terem, em algum nível, algum tipo de comunicação subterrânea, o que explicaria a erupção simultânea. O trauma coletivo foi tão grande que fez com que até mesmo com que os mais arraigados moradores dos sopés das montanhas deixassem tudo pra trás, mesmo a mineração. </p><p>A mineração, inclusive, é um problema à parte nesta situação de vida ou morte, de quase tudo ou quase nada na qual as pessoas vivem. É complexo. Falo isso porque sei do que falo. Meu avô veio dos arredores de Tijuca 1, não muito longe do próprio gigante de fogo, e foi por causa do sucesso dele na mineração que hoje posso dizer que durmo num lugar tranquilo. Isso começou mais ou menos no seu tempo. Sem perspectiva de vida na região central, os moradores dos arredores dos principais vulcões haviam construído uma organização comunitária sem base fixa, figurando, cada uma, em cada comunidade que vivia sob o julgo dos vulcões. A organização, RESIDENTE RESISTENTE, tinha por objetivo vigiar os projetos de lei em tramitação que ampliassem os recursos para-eruptivos e monitorar não só a lava e os sinais dos vulcões, mas também ficar de olho vivo nas companhias clandestinas de mineração, que muitas vezes instalavam-se da noite pro dia em pontos estratégicos ao redor das montanhas e só não ganhavam força devido ao esforço conjunto das militâncias para desarticulá-las quanto mais cedo possível. A grande ironia de morar no Rio de Janeiro: as comunidades mais abandonadas têm iniciativas de primeiro mundo em relação ao próprio governo.<br /><br /></p><p>MINERAÇÃO <br /><br />Demorou um tempo, mas desde que fora tornada pública a descoberta de que praticamente todas as encostas vulcânicas continham enormes quantidades de diamantes, as abordagens em relação à Geologia e Segurança mudaram de tom. Geólogos de grande prestígio, como Camilo Braga, Renata Sandoval e Hermínio Lima, já no início dos anos 70, apontavam para a possibilidade de grandes reservas de minério nas regiões de vulcões, tão logo eles começaram a demonstrar índices de atividade de moderada a alta - o que teve início precisamente em 76, quando o grande Rosso entrou em uma formidável erupção que durou 3 meses, à época, sem causar grande prejuízo humano pois seus entornos ainda não eram urbanizados. 15 anos depois, a pesquisadora Renata Sandoval publica um importante compêndio descrevendo o comportamento dos vulcões, e nele confirma e detalha a existência das reservas minerais ricas em diamantes. O documento, à época, causou um alvoroço dado seu potencial, o que levou a discussões sobre medidas de tombamento ambiental dos vulcões para estudo mais aprofundado - coisa que nunca de fato ocorreu. No entanto, a Lei do Carbono, sancionada em 1978, tornava ilegal a comercialização dos diamantes na intenção de refrear o garimpo ilegal e possíveis receitas que fugissem de lastreamento fiscal. Assim sendo, toda mineração era, portanto, ilegal. Decorridos alguns anos, por mais que fosse tentador arriscar incursões nas vizinhanças dos vulcões afim de minerá-los, era perigoso demais conforme a violência das erupções aumentava. Apesar da Lei do Carbono, muita gente morreu tentando escavar os diamantes, frutos brilhantes do fogo pastoso que a boca dos vulcões regurgitava. Mas uma quantidade razoável também conseguiu acumular pequena fortuna sabendo como movimentar-se no mercado negro de diamantes, que, é lógico, tornou-se um rio caudaloso de relações clandestinas.</p><p>Apesar de proibidas por lei, era mais do que sabida a existência das companhias clandestinas de mineração. De tão conhecidas, pra encurtamento de conversa, eram chamadas de CCMs - inclusive suas conexões com o próprio governo eram notórias (<i>quem não lembra do escândalo, diga-se, fartamente noticiado na época, envolvendo a filha do deputado Olegário Neto, quando, num acesso de fúria, entrou na câmara em um roupão de veludo e, ao despi-lo, portava duas algibeiras de onde, aos punhados, sacava diamantes, jogando-os na cara do pai? Mais tarde confirmou-se a conexão do deputado com pelo menos três CCMs, que tiveram seus membros presos.</i>) Qualquer pessoa com um mínimo de discernimento não iria demorar muito para associar que o total desinteresse na destinação de incentivos pra projetos que barateassem o custo de planos de segurança e resposta em caso de erupções violentas poderia se explicar pela soma que muitos deputados da câmara levavam por fora em acordos escusos com as CCMs. <br /><br /><br />FUTURO - UMA CHAMA ACESA?<br /><br />Nasci em uma família de origem humilde do Rio de Janeiro. E isso quer dizer que boa parte dos meus tem uma experiência de involuntária intimidade com os vulcões, assim como muitas pessoas que conheço. Isso quer dizer que, num grupo de cinco pessoas que eu conheça, pelo menos uma já foi engolida por um vulcão, e as outras quatro acumulam histórias semelhantes. Tenho uma namorada há três anos, e temos certo medo de ter filhos. Sondo a vida em outros países que já tenham obsolescido a relação rudimentar que essa cidade trava com uma força tão natural, tão antiga e, com alguma vontade pública, que pode vir a ser minimamente contornável. Sei que não é um desejo isolado, mas é certamente o sentimento de frustração que me guia ao escrever esta coluna. Muito especula-se sobre o futuro da cidade com o possível surgimento de novos vulcões - mais ou menos no centro da cidade, mais ou menos nos confins das fronteiras. A natureza sempre nos ensina, de um modo ou de outro, sobre nosso próprio tamanho, mas, diferente dos homens, não é ingrata e nos oferece ferramentas pra que tenhamos o mínimo de agência pra mover o curso do que pode ser movido, e quem sabe conte secretamente com o nosso discernimento para que saiamos de seu caminho em caso contrário. Penso nisso enquanto olho, hoje, para fora da janela do quarto, pensando ouvi-los rugir, pensando vê-los brilhar. Penso em meu avô, tentando trazer para os meus próprios olhos o brilho das pedras que ele encontrou, e quase consigo vê-las dentro das mãos sujas da mente. Manuseio este brilho imaginário, prolongamento da chama sempre acesa do cume das montanhas vazadas, que lá estavam bem antes de mim, e que lá estarão também depois, e depois de tudo, das paredes de titâneo, das barreiras de contenção, dos carros, tanques, das medidas e das leis. <br /><br />Neste momento não sinto medo. Longe daqui, motoristas noturnos encostam seus carros no acostamento daquela avenida, acendem um cigarro, confundem a cor da brasa das pontas dos dedos com a cor do mistério imprevisível que agita as caldeiras subterrâneas e eventualmente sobe ao topo, como um desconhecido que pisca um olho só.</p><p><br /></p>Ana Líbia http://www.blogger.com/profile/08251435057520511338noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-2471188335449032060.post-45891174325165670792022-02-14T22:10:00.001-04:002022-02-14T22:10:06.389-04:00Insólita captura<p> O primeiro a sair de casa foi o Carlinho. Sendo sua casa a única casa de fundos de toda a rua, de dentro dela ele não poderia se inteirar do babado. Dona Fátima olhou para o homem do alto do parapeito de sua varanda com desprezo, "velho fofoqueiro desocupado", falou baixinho pra si, como se ela mesma não tivesse corrido do banheiro para a varanda tão logo ouvira o toque único da sirene do carro de bombeiros ao chegar.<br /><br />E pelos terraços e janelas daquela rua pequena iam se constelando cabecinhas mais e menos discretas, em grande mosaico construído pela curiosidade inevitável diante do carro de bombeiros. Afinal, pulando do vermelho vivo, em letras brancas bem grandes lia-se SALVAMENTO, e se eles foram chamados, motivo havia. A mulher do Carlinho vinha pelo corredor que dava para a rua com uma faca na mão e as mãos molhadas. Perguntava ao marido o que estava havendo. Fosse um incêndio, é claro, a comoção seria maior e mais dramática, mas seria também reação de outra ordem, emoção conhecida. "Um incêndio, socorro!", e todos ficariam receosos, com razão, do fogo se espalhar em direção às suas casas, porque com fogo não se brinca. Mas o chamado ali era quase discreto. E vinha atender necessidade outra.<br /><br />Os bombeiros estavam em três, e o mais alto deles retirou da parte de trás do carro um instrumento composto por um cabo metálico e uma espécie de grua em sua extremidade. "Ave Maria, é uma cobra!" teorizou a mulher do Carlinho. "Esse breguete é parecido mesmo com aquele negócio de pegar cobra, mas como que uma cobra poderia chegar aqui?" "Só pode ser cobra!" gritou Zé do Baile, de sua laje, dando força à tese da mulher, "mas não pode ser cobra não, minha gente, não tem nem terreno baldio aqui", contestou o velho João, debruçado no parapeito de seu terraço e também tentando entender. "Pode ser um lagarto", suspeitaram as jovens gêmeas Laura e Maura ao mesmo tempo, confirmando que é verdadeiro que os gêmeos partilham, sim, a mesma consciência. Era de Seu Oscar o terraço mais alto da rua, e de lá ele, onça antiga, tudo observava sem contudo interagir.<br /><br />Então os bombeiros entraram na casa. Era a casa de Fagundes, uma casa pequena e modesta, guardada de todo o mal por um São Jorge estampado num azulejo bem acima da porta de entrada. Fez-se um breve silêncio (provavelmente o o dono da casa instruía, em voz baixa, os bombeiros do que estava havendo) que então deu lugar a uma algazarra contendo uma classe indistinguível de barulhos. A mulher de Carlinhos se aproximava devagar do local, mas, com medo, fez o sinal da cruz e voltou pra dentro de sua casa. As gêmeas engirafavam de sua varanda, silenciosas. Carlinhos conversava paralelamente com Zé do Baile, e alguém - mais tarde suspeitou-se que tenha sido Seu Oscar - lhes mandou calar a boca. E calaram. Aquilo era quase cinema.<br /><br />De dentro da casa ouvia-se som de luta, mas nem o mais absoluto silêncio dos espectadores facilitaria qualquer depreensão do que se passava. Repetidos estalidos metálicos faziam intuir que o que quer que se estivesse tentando capturar resistia. O som dos impactos percorria as paredes. A criatura voava? Som de conversa entre os homens, mas não se ouve palavra que clarifique. Uma mulher dá um grito. "Acuda sua mãe, Fernando!", é a única coisa que se ouve com certeza. Um silêncio. Os vizinhos se olham. Pessoas que passam na rua se detém, sem entender. Será que pegaram? É quando alguém grita "SEGURA!", e novamente a barulhada irrompe no ar. Os cachorros da casa ao lado, então, desatinam a latir, e feito coral, os outros cachorros das outras casas acompanham. O alvoroço é geral, e, do lado de fora, todos esperam o desfecho. Quem antes se escondia por trás das cortinas já não carece de vergonha, e de reprimível antes, a curiosidade estabelece ampla aceitação.<br /><br />Os bombeiros saem da casa tropeçando de gargalhar e conversam entre eles. "Vou tirar uma foto pra mandar pro Marcelo", diz o que segura o cabo metálico. Os outros riem, e falam coisas absolutamente inconclusivas. Não se salva uma pista. Carlinho, que permanece na rua, não se encoraja de perguntar aos bombeiros o ocorrido, e mesmo notando os vários olhos intrometidos, eles nada revelam. Parecem até nutrir, de propósito e com gosto, certo mistério sobre aquela operação. Dona Fátima acena para Carlinho com a mão, e quando consegue contato visual, ela faz um gesto com a cabeça em direção aos bombeiros, mas ele não lhe corresponde. Os bombeiros entram no carro e partem. Ela, então, deixa sua varanda contrariada, e pouco a pouco as pessoas vão voltando pra dentro de suas casas. A mulher do Carlinho volta com uma lata de cerveja que abre, dá um gole, olha pro marido com um olhar perdido e resmunga baixinho, "Ué, já acabou?" </p><p> </p>Ana Líbia http://www.blogger.com/profile/08251435057520511338noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-2471188335449032060.post-24112934710611568002022-01-24T15:40:00.003-04:002022-01-25T19:05:04.346-04:00O filho de meu pai<p>O dia era claro e comum quando perguntei quem era o rapaz na foto que encontrei caída no chão da cozinha. Era uma foto antiga - o tempo já havia passeado nela de fora pra dentro - pequena e mal recortada. Ele parecia ter por volta de 13 anos, que é a idade, nos meninos, em que buço e queixo são povoados pela sombra rala do constrangimento, coisa que o foco da foto revelava. Um menino magro, mas em desenvolvimento, conforme indicava a musculatura dos ombros que aparentava uma discreta expansão. Ele não sorria. <br /><br />-- Onde achou essa foto?<br /> <br />Meu pai me pergunta, interrompendo o silêncio entre mim e a foto me levando a um sobressalto, como se eu estivesse fazendo algo que não devesse.<br /><br />-- Quem é esse menino?<br /><br />Ele toma a foto das minhas mãos em um movimento suave, e olha para ela, detido por alguns segundos consideráveis. <br /><br />-- Já te perguntei, onde achou essa foto?<br /><br />-- Tava no chão da cozinha. Quem é, pai?<br /><br />-- Esse é Gustavo. <br /><br />Olho para ele prendendo meu lábio inferior nos dentes. Ele olha pra mim de volta, revelando em seu olhar que meu cenho denuncia que sua frase é mais uma afirmação que uma informação. <br /><br />-- Gustavo morreu antes de você nascer.<br /><br />Ele então senta-se à mesa da cozinha. Eu sento, também. Presumo quem seja Gustavo com dificuldade, apesar de nunca ter ouvido falar nele, rastreando na escassez das palavras o seu motivo. Presumindo devagar, tento aliviar o desconforto nas respostas que meu pai até então me fornece, sem saber se devo levar adiante aquela conversa. Sem saber mesmo se quero.<br /><br />-- Quando você nasceu, era como se ele tivesse aberto os olhos de novo. Vocês têm os mesmos olhos. Ele era um menino forte e curioso como você. De um tudo fazia quando a gente passava as férias na casa de Passos, antes da gente vender. Aprendeu a nadar sozinho e nadava que era um peixe, chamava atenção por isso. <br /><br />Ouvia com atenção cada palavra como se estivesse abrindo uma caixa antiga. O que era. Talvez porque ele nunca tivesse falado de Gustavo comigo antes. Coisa mais natural teria sido. Estranho, nunca mesmo. E Gustavo seguiria uma existência misteriosa pra mim, não fosse a oportunidade de sua foto no chão. Aos poucos consigo entender o litígio que engasga meu pai: como falar, para mim, de Gustavo? Era possível (e compreensível) que ele se ressentisse de dizer, "Gustavo era seu irmão", se mesmo isto não era uma verdade. Como Gustavo, meu irmão, se não dividimos as mesmas roupas, parte das mesmas histórias, se não dividimos o que mais nos tornaria irmãos: o mesmo tempo? Gustavo, o menino na foto, poderia ser meu irmão, um irmão que eu até então desconhecia, morando em outro país, filho de mãe outra, assunto que sobre o qual à mesa não se fala, mas que inadvertidamente desliza pelo silêncio da noite, entrando por debaixo da porta fechada. Com Gustavo nunca briguei, Gustavo nunca precisei defender. Para mim, Gustavo nada representa, e sobre isso não há culpa, sensação ou sentimento de qualquer espécie. Nem mesmo a estranheza de um estranho ao esbarrar na rua, um ao outro pedir desculpa, seguir o caminho. <br /><br />-- Gustavo era bom garoto, não sabe? - lentamente coça com as unhas longas a carne flácida do seu pescoço, e faz algum silêncio. Alisa a cabeça rala de cabelos, e então cobre a boca com o punho. -- ele gostava de andar de cavalo em Passos. Era mais arredio que os cavalos. Bom garoto, mas desobediente, como a maioria dos bons garotos.<br /><br />-- Quanto tempo faz, pai?<br /><br />-- De nascido você tem o que, 26 anos? Ah, isso tem mais de 30 anos... <br /><br />-- Por que nunca falou dele pra mim? Paulinha sabe dele?<br /><br />-- Sua mãe e eu começamos a criar um certo medo de falar sobre ele. De contar as coisas que ele fazia. De que as coisas que ele fazia pudessem seduzir você. Isso pode parecer estúpido ou radical, você pode me julgar, se já não estiver fazendo isso aí na sua cabeça. E não, Paulinha também não sabe dele. Foi uma coisa entre mim e sua mãe que foi simplesmente acontecendo, fomos parando de falar nele. Não queríamos falar nele mais. Quando vocês nasceram, nós definimos que não falaríamos dele mais aqui em casa.<br /><br />Alguma coisa dentro de mim queria eclodir em uma rebelião, e eu podia sentir o gosto todinho de uma revolta pedindo licença pra amargar minha boca. Mas querer sentir uma revolta é querer uma revolta ilegítima, indigna, sem beleza alguma. Meu pai mantinha no seu tom de voz uma calma cansada, subitamente despertada pelo inconveniente daquela conversa. E ficou olhando pra mim, seus olhos fixos nos meus, sem dizer palavra. Eu olhava-o de volta, no que o tempo estranho daquele silêncio convertia num teatro de espelhos. Por alguns instantes cogitei que ele, depois de tanto tempo, pudesse estar procurando os olhos de Gustavo dentro dos meus. Fosse outra situação, quem sabe eu o encheria de perguntas, mas todo o seu hábito, todo o seu modo me reprimiam violentamente feito mágica, embora não fosse claro se ele estivesse realmente indisposto a falar sobre aquilo. <br /><br />-- É, meu filho, você tem um pai velho. Pode acontecer de um pai velho ter história.<br /><br />Eu não conseguia me livrar da egoísta sensação de que meu pai me devia desculpas, e talvez eu estivesse disfarçando isso mal, o que não lhe intimidou. Recolhendo a foto com cuidado, ele se levanta da cadeira e vai até a varanda. Deita-se na rede e observa o sol pintar com sua luz dourada de fim tudo o que existe. <br /><br />-- Passe um café, meu filho, que daqui a pouquinho vou à padaria comprar um pão quentinho pra gente. Paulinha disse pra sua mãe que mais tarde deve aparecer, também. Acho que tem bolo no forno, veja aí se tem.<br /><br />Fiquei olhando de longe a noite cair sobre meu pai, que cochilou brevemente e acordou num pequeno susto, calçando os chinelos e saindo de casa. Enquanto o esperava chegar, sentia a mesma noite crescendo por dentro da casa, e por dentro de mim. </p>Ana Líbia http://www.blogger.com/profile/08251435057520511338noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-2471188335449032060.post-42829407436957752162021-11-24T12:04:00.004-04:002021-11-24T12:19:23.719-04:00Na Arábia<p>Isto aprendi nos desertos:<br /><br />a escassez, a vertigem.<br /><br />cílios são escudos<br />luxuosos<br />contra a imaturidade da vista<br /><br />(e as imagens são editáveis<br />no chão do olho seco)<br /><br />o deserto, meu amigo,<br />é limpo. e uniforme.<br /><br />mesmo que à noite<br />gigantes azuis alvorocem seus lençóis<br />e ao descuido do sol<br />tudo mudem de lugar<br /><br />feras rastejam<br />sobre fogo <br />e vidro<br />sem gritar<br />a mágica das árvores despercebidas<br />e as pedras lá postas pelo tempo<br />antes do Tempo eclodir o tempo<br /><br />o deserto é paciente<br />o deserto é testemunha<br />sem língua<br />de cavernas escuras que abrem<br />e se fecham<br />dentro e fora dos homens<br /><br />e não conta, portanto,<br />dos muitos sangues sorvidos por <br />seus exércitos de areia devoradora <br />que vão dar matéria e ofício<br />a arqueólogos suicidas <br />e deuses anônimos<br /><br />o deserto e a eternidade <br />velam-se, gêmeos,<br />valem-se, áureos,<br />fecham-se, elísios.<br /><br /><br /></p>Ana Líbia http://www.blogger.com/profile/08251435057520511338noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-2471188335449032060.post-7130447567185369872021-11-03T14:44:00.005-04:002021-11-04T09:54:52.341-04:00Padrão Numero Cinco<p>o que você faz com<br />as palavras<br />é o que a água faz<br />na madeira</p><p>e o que também faz o tempo<br />nas joias</p><p>o que fazem as suas palavras</p><p>é, no início</p><p>(e digo pedindo licença)</p><p>o que a primavera faz com <br />as cerejeiras</p><p>e as cerejas descem do pé<br />em suas patas, <br />caranguejeiras,<br />vieram passear os sonhos<br />com negras quelíceras</p><p>quando envelhecem as suas palavras</p><p>disse alguém no oriente<br />as palavras não são capazes<br />de expressar<br />tudo o que uma pessoa sente</p><p>não se<br />ao tocarmos as palavras<br />as virássemos do avesso<br />eviscerássemo-las<br />as escrevêssemos ao contrário</p><p>entre anagramas e palimpsestos</p><p>ainda há esmeraldas nas suas palavras<br />no lado oposto do cal<br />nessa rima banal-absurda<br />que não encaixa bem ou mal</p><p>o que fazem as suas palavras<br />é o que o nervo cego do olho crê que vê<br />suas palavras jogando<br />manto sobre o invisível</p><p>(e não, não jogam)</p><p>o que você faz com as palavras<br />também é o que sua língua fez<br />na pele sensível do que dobra</p><p>e o que não escorrega<br />pra dentro da sua palavra<br />é tudo aquilo que sobra.</p>Ana Líbia http://www.blogger.com/profile/08251435057520511338noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-2471188335449032060.post-68765653445704382532021-09-07T16:09:00.008-04:002021-09-08T00:12:52.377-04:00As chaves<p> Não pôde acreditar quando se viu diante de um evento que, de tão temido, já tinha sido experimentado até num sonho estranho que envolvia portas e cartas. Mais especificamente ela sendo espremida nesse movimento enquanto duas mãos gigantes embaralhavam múltiplas portas como quem está prestes a começar um jogo preparando-o sem pressa. Naquele dia acordou sobressaltada, com um sorriso confuso, mais nas sobrancelhas que nas maçãs do rosto. "Coisa de sonho", pensou, enquanto o resto do dia tratava de diluir aquelas imagens incompreensíveis. Mas havia nódulos dessa suposta diluição, ainda, que foram prontamente acessados quando ela socou as costas da porta do banheiro, ejetando, do poço da garganta, tudo o que poderia:<br /><br />-- PUTA QUE PARIU, CARALHO!<br /><br />Não era responsabilidade sua, tantas vezes antes que havia falado com Francisco sobre o problema da porta. "Eu vou consertar", tantas vezes antes Francisco lhe respondera, com a convicção dos preguiçosos. "Eu quero ver o dia que essa merda emperrar com alguém dentro e não tiver ninguém em casa, Chico. Porra!" "Isso é impossível, Andrea, moram 7 pessoas nessa casa. Ainda que aconteça, sempre vai ter alguém pra ajudar". Na promessa da impossibilidade eles seguiram, seguros em sua certeira previsão dos eventos. Mas Taísa e Tarsila decidiram ir pra Acapulco por duas semanas, de quebra convencendo também Vinícius (3 a menos); Francisco estava de frila marcado e hoje, dia 07 de setembro, era aniversário da mãe de Paula, que morava em Vargem Grande. O universo e seu jeitinho de nos informar sobre nossa arrogância: Andrea trancada no banheiro, na terrível companhia de si mesma.<br /><br />Os palavrões cresciam no eco do banheiro bem à conveniência da palavra. Mas arrefecido o som, um fato enche de agulhas as pálpebras da confinada: ela não trouxera o celular. E naquela hora o celular seria muito mais útil que uma chave, que um grampo, que uma prece. Formigas quentes passeiam em seus olhos, e dessa vez, o silêncio é o sinal da implosão de sua fúria. "Ah!", bate palmas e ri em deboche sobre si mesma. "Ah!".<br /><br />Mas lembra que está no banheiro, e lembra para que servem os banheiros.<br /><br />Puxa a calcinha devagar e senta-se na privada, mastigando a língua e deslocando a mandíbula pra lá e pra cá. Respira profundamente, a insatisfação colonizando cada centímetro de seus gestos. Repete o movimento, e começa a acalmar-se, lentamente. Que estranho aquele silêncio branco das 4 horas da tarde de um dia sem sol. Leva a mão à cabeça, lembra lividamente do sonho das portas de cartas. "Tenho certeza que era isso, como não poderia ser?" E percebe em seu ventre navegar uma criatura longa e mole por fora, mas articulada. Sente seu movimento e sua consciência, que a criatura sabe para onde ir e vai tranquila, suave, conversando com Andrea dentro de seus olhos (fechados) sobre como o que é pra sair encontra a saída, leve o tempo que levar. Que sensação antiga de paz. Que sensação de paz antiga. E que vem de novo, em deliciosa sequência, marcando seu rastro de ponta delgada de enguia no expirar prazeroso que soltam as narinas de Andrea: é o fim de seu curso. Andrea desenrola o papel higiênico, e se higieniza, calada. <br /><br />Nua, se olha no espelho, aproxima seu rosto dele, e no rosto da Andrea de lá vê cravos, pintas, e uma pequena marca herdada de um acidente doméstico. Não se acaricia e vai para o banho. Taísa, Tarsila e Vinícius em Acapulco estão fazendo selfies na praia, e Tarsila até tratou de comprar um bikini que se parecesse com o figurino de Chiquinha na Uruguaiana, que customizou ao chegar em casa. Apesar de muito tranquilo o casal Cassel-Kunakey, é intragável sua assessora de mídia, assim como algumas pessoas da equipe responsável pela propaganda do perfume que Chico havia sido escalado pra fotografar em pleno feriado (o cachê valia a pena, ele sabia). Dona Albertina, depois de muito beber e contar causos, soprava as velas pelo seu sexagésimo oitavo aniversário enquanto Paula disfarçava mal o quanto os mosquitos em profusão lhe deixavam desconfortável. <br /><br />Em lugar da acelerada bateria de David Lovering de sempre o que Andrea ouve dessa vez é o som da água contra seu corpo, e por ele vão muitas águas: a que nele bate, a que o percorre, a que cansa. A água faz veios por sobre a pele de Andrea, que faz caretas, atriz. "Sou um mutante das profundezas! Tremei, ordinários, tremei! Preparem-se para morrerem, todos vocês, dispensáveis mortais esquálidos pela mão de quem comanda o próprio Kraken!" ri-se, velha e ridícula, o gelado da água companheira testando-lhe o tato, o cheiro invisível de enxofre longínquo saindo dos furinhos do chuveiro, e ela se agarrando toda na cauda desse cheiro e indo com ele por dentro do furinho, por dentro do cano, por dentro das metrópoles tubulares onde nunca foi ninguém, e chegando à estação de tratamento de águas da cidade vê homens conversando uniformizados com pranchetas sem demorar neles os olhos; busca o umbigo da água e o encontra, lá longe, escondido entre as areias, os seixos e as folhas. A água não procura abrir o caminho porque é o caminho, diz a voz em sua cabeça ao ver aquele espirro borbulhante e incontinente saindo de algum ponto onde os órgãos da terra permitem ter sua existência presumida, e nele ela afoga as mãos num nada como quem brinca com o limite entre duas dimensões, até abrir os olhos em seu banheiro, sobressaltada, e fechar a torneira. As gotas mais grossas se desprendem, atrasadas e últimas, da caixa reservatória do chuveiro. Pisa o chão com o cuidado de quem aterrissa em algum lugar, toca devagar o vidro do box até puxar pra si uma toalha na qual enrola o corpo frio, e pensa que não está, naquele momento, muito diferente de um girino que acabou de nascer. Do lado de fora, uma porta range e ela ouve passos pela casa.<br /><br />-- Andrea? <br />-- Chico, quando eu sair daqui vou te matar, mas tudo bem.<br /><br /><br /><br /></p>Ana Líbia http://www.blogger.com/profile/08251435057520511338noreply@blogger.com1tag:blogger.com,1999:blog-2471188335449032060.post-82729142799346133972021-05-09T12:08:00.003-04:002021-05-09T12:08:59.879-04:00A elegante nave<p>Passeia colhendo<br />O tempo<br />No escuro do tempo<br />A elegante nave<br />Cartilaginosa<br />Mas também, ainda,<br />Brinquedo caído de berço<br /><br />Prima mansa de grandes<br />Amorais máquinas assassinas<br />Que hasteiam bandeira bruta<br />Quando conquistando territórios<br /><br />Coreografa<br />as invisíveis ondas<br />E a ponta delgada de seu corpo<br />É nome de golpe na Bahia<br />Quase fantasmagórica criatura<br />Que flutua, bailarina<br />Quinosa edificação soviética<br /><br />Sua forma deitada<br />Seu modo monacal<br /><br />Uma ninfa salgada, um<br />milagre<br /><br />Que de tão plácida e<br />perene<br />talvez nem mesmo morra<br />mas sonhe que adormeceu. </p>Ana Líbia http://www.blogger.com/profile/08251435057520511338noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-2471188335449032060.post-46254791459464303642021-05-02T13:50:00.002-04:002021-05-02T13:55:36.396-04:00O teu amor em mim aqui<p>o teu amor estraga em mim<br />sem uso<br />teu amor em mim<br />coalha e esverdeia<br /><br />guardado, vertendo flores --<br />por excelência, as criaturas póstumas<br /><br />não anima -- nem desanima<br />mas fica lá, parado e<br />confuso<br />massa fetal acocorada de olhos mudos<br /><br />o teu amor em mim envelhece<br />e velho, empeixeia<br />em delicadas escamas de cristal<br />larva de libélula, a<br />desinfância de um assassino <br /><br />teu amor em mim nem sabe<br />nem conhece<br />teu amor em mim não tem onde morar<br /><br />retira-se assim<br />final e sem fim<br />gomosas lágrimas no escuro<br />onde começa o mundo<br /><br /></p>Ana Líbia http://www.blogger.com/profile/08251435057520511338noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-2471188335449032060.post-48605284903200237462020-12-11T08:56:00.000-04:002020-12-11T08:56:12.505-04:00Tango de pés feridos<p> Capaz de que seja mesmo sobre aprimorar o tango com os pés feridos. Pois é como dizem por aí sabedores apócrifos, dança é luta. Luta é dança. Então é sobre soerguer o peso, suspendê-lo com graça na unha dos pés, esperar a cãimbra vir e esperar a cãimbra passar, e no intervalo desse berimbolo não dito achar possível asfixiar o leão da ansiedade pesando sobre ele as boas e modernas maneiras das pessoas bem resolvidas que dançam quase perfeitamente o tango com os pés feridos. Do olho esquerdo da dor lambem-se as chamuscaduras (haja água pra tudo isso que foi de fogo), com as mãos em secreta concha a rogar que mais rápido aquela se dissolva com a providencial mão da cerveja e de alguns baratos beijos alheios, porque sim, assim sequer se está nos beijos, mas estes distribuem-se, e em troca pega-se tantos quanto se consegue, que a vaidade sempre foi o pecado favorito do diabo.</p>Ana Líbia http://www.blogger.com/profile/08251435057520511338noreply@blogger.com1tag:blogger.com,1999:blog-2471188335449032060.post-13209228781769213412020-10-08T00:01:00.002-04:002022-01-25T19:03:08.206-04:00Retrato de família<p>Muito calor e gente em casa, e a fiação toda ainda era como antigamente. Tia Jane no banheiro deu um curto grito, simultâneo ao que deu Quiroguinha, que de súbito aterrissou na sala (as pequenas asas desajeitadas) topando o joelho na mesinha que deveria estar no canto. O choro agudo do menino despertou prima Cecela, que dormia na rede cansada e ainda salgada do mar. Vó Stênia passou por nós feito uma assombração, com seu andar coxo e pesado, segurando uma ponta incinerada de jornal. Tia Lúcia fuçava as gavetas e os armários com suas mãos de aranha cega. Lá é que deveriam estar as velas, afinal, vela nunca faltava na nossa casa, que o excesso de fé em Cristo de vó Stênia não deixava.<br /><br />Tio Padrinho, sem nem se levantar, continuava bebendo sua cerveja, ainda gelada. Regiane detestava a sensação do sal velho e anoitecido em sua pele, dizia que aquilo lhe atacava todas as alergias, e conforme fizeram Marquinhos e André, que não quiseram esperar a luz voltar, foi tomar banho no quintal, içando com eles muitos baldes de água do poço. Inescapavelmente salobra, era ainda a única cura possível para aquele insuportável sol por dentro que, longe dela, continuava queimando até no escuro.<br /><br />Não demorou muito e vó Stênia encontrou e distribuiu as velas pelos cômodos da casa com cuidado, pelos altos. Quiroguinha era muito sem jeito, e ainda lambia baixinho as lágrimas de cachorro pequeno pelo joelho dolorido. Vô Aloísio observava tudo muito calado no seu canto. A casa era grande.<br /><br />A brasa do cigarro de tio Padrinho luzia como um primo estranho e esperto perto dos vagalumes que tomavam a varanda em profusão, levando as crianças ao desafio difícil de capturá-los nas conchas das mãos. Na praia, Tia Pratinha havia sido derrubada por muitos caixotes, mas lá mesmo também havia dado o troco, derrubando sozinha, e com ajuda mínima, algumas caixas. Quem quer que a conhecesse por mais tempo já sabia, na inofensiva rispidez de sua voz e no hábito de aproximar-se de mansinho pra batucar a bunda de um balde, que ela se encontrava francamente bêbada. Não era o caso de Regiane. Coitada. Alvo constante de suas piadas, a namorada recente de tio Maurício tinha até medo de cruzar o caminho de tia Pratinha, ciente de que o olhar da velha a perseguiria e explodiria pela boca em alguma gozação. Quando tia Pratinha pegava um pra espezinhar (e geralmente gostava de fazê-lo com os agregados) só o tempo a demovia da ideia.</p><p>Os meninos menores se batiam todos pelas costas, braços e pernas: a mosquitada nem enfeitava a noite, como os vagalumes, nem lhes dava sossego à carne magra e suja. Tia Jane, com medo de lagartixa e outros bichos que no escuro ficavam certamente muito maiores, saíra do banheiro envolvida na toalha e já se postava à porta de saída da cozinha com um cigarro entre os dedos, assuntando com vó Stênia que, sentada, terminava de sovar uma massa. Vó Stênia tinha disso: não parava nunca, por mais que as pernas não lhe ajudassem. <br /><br />Martinha, Daniele e Isa investigavam nas telas dos celulares qualquer coisa que lhes afastasse do escuro e do tédio. Surge uma foto de um bebê de poucos meses no celular de Isa, que mostra para as outras. Suspiram as três, em uníssono, pela fofa criatura enrugada. Curiosamente Daniele constata como outro bebê (agora com um ano e meio) havia crescido rápido diante dos seus olhos nos últimos 500 e poucos dias que havia acompanhado sua vida à curiosa distância de uma tela de vidro na qual provavelmente também se escondiam outras coisas. As garotas, então, se detiveram nas fotos do bebê de meses, e Martinha teria se espantado com o volume de fotos de uma criança tão pequena não fosse ela mesma uma grande registradora dos próprios passos.<br /><br />No quintal apagado da casa as sombras das árvores as engordam, transformando-as em velhos e fofoqueiros monstros domésticos. Quiroguinha, o mais afoito, parece não ter medo de nada, e encoraja as outras crianças a irem com ele brincar no escuro, a catar sapo. Olhando o fuzuê de Quiroguinha, o aparentemente indiferente tio Padrinho chama as crianças pra perto de si e diz que vai contar uma história de quando era menino. Ele então diz que na casa em morou na infância havia um espírito que toda noite de quinta-feira, às três horas da manhã em ponto, abria as torneiras da casa. Sempre que ia fechar a última torneira aberta, tio Padrinho conseguia ver o rabo do espírito deixando a casa. Um dia ele apressou o passo para tentar segurar o rabo do espírito, e uma das janelas se quebrou. Virou-se para tia Lúcia para que ela confirmasse o que ele dizia, ao que ela assentiu. Os olhos das crianças brilhavam no escuro, acesos, acompanhando o vagalume de fogo nos dedos, enquanto tio Padrinho dizia que o espírito (mais tarde descobriu-se) era o fantasma de um inspetor de uma escola que havia sido derrubada muitos anos antes de sua casa ser construída, no mesmo lugar. Na varanda calada de repente irrompe uma gargalhada grave, as crianças gritam ao mesmo tempo. Marquinhos e André surgem do quintal para assustá-las. A luz não vem, e a escuridão já tinha comido as velas pela metade.<br /><br />Naquela idade em que eram um pouco mais velhas que as crianças mas ainda mantinham algum relutante encantamento e sede de fantasia, Martinha e Isa ouvem de longe e contestam a história de tio Padrinho. Ao seu lado, tia Pratinha tosse e ri. Por que tio Padrinho, engenhoso como sabiam que era, não arrumava um modo de registrar a presença do fantasma? Todo mundo que vivia na casa poderia provar essa história? Por que às três da manhã? Vó Stênia está sentada em uma ponta da varanda, e tudo ouve calada, girando os polegares. Questionam-na, e ela desconversa, séria. De súbito Daniele imagina tio Padrinho menino. Alguém teria fotos dos tios e tias quando eram crianças? A garota queria saber. Vó Stênia dizia que as fotos não eram como agora, que era muito difícil tirar fotos, coisa de bacana. Daniele pergunta se ela tem ao menos uma foto de quando era menina, e ela confirma: uma única foto em preto e branco, séria como agora, com uma roupa pesada para a idade, mas conforme para a época em que fora tirada. E vó Stênia pensa um pouco sobre essa e outras fotos. Realmente tão poucas. Ah.</p><p>Naquele dia descobrimos de algum modo que havia uma razão pela qual a infância escura dos nossos pais ao nosso olhar escura permanecia. Talvez mesmo devesse. Quase ninguém notou, mas diante daquilo tudo vô Aloísio balançava lentamente a cabeça, quem sabe, sorrindo, de um lado para o outro.</p>Ana Líbia http://www.blogger.com/profile/08251435057520511338noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-2471188335449032060.post-79019193140191100732020-09-29T14:32:00.001-04:002020-09-29T14:32:56.712-04:00Tatame<p> Era segredo até <br />que eu aprendesse a <br />cair<br /><br />por dentro das mãos <br />desde sempre uma<br />faca<br />esteve guardada<br />uma faca ossuda<br />ora rígido mastro de navio ora<br />água solta por entre as pedras<br /><br />e tanto mais esguia não sendo<br />de puro aço constituída<br /><br />assim como trancados<br />estiveram de mim<br /><br />por todos esses anos<br />répteis-símios e<br />outras bestas desconhecidas<br />que rastejaram bêbadas ao<br />ensaiar sair <br /><br />todo o mundo reinventando <br />as noções sabidas<br />e mesmo o cérebro - fina luz da consciência - <br />veio morar frontal nos dois olhos<br />enquanto o sinto<br />inteiro e pleno<br />na planta viva dos pés<br /><br />ao que já não reparto mais<br />o que é corpo o que é bicho<br />o que é chão.<br /><br /><br /><br /></p>Ana Líbia http://www.blogger.com/profile/08251435057520511338noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-2471188335449032060.post-75660907111049730332020-04-28T20:33:00.001-04:002020-04-28T21:49:52.755-04:00EstátuaAbro um olho pela<br />
pedra<br />
do anel que esqueci<br />
sobre tua mesinha<br />
entre teu computador e papéis avulsos<br />
insuspeito te espiona<br />
<br />
testemunho, assim,<br />
os animais noturnos em teus olhos<br />
acesos<br />
escravos do escrol<br />
a curvatura mansa das tuas costas<br />
inimportunáveis pelos cacos de luz<br />
das duas da tarde<br />
<br />
acompanho teu estado<br />
de contemplação pétrea<br />
diante daquele filme<br />
a gordura da cegueira que se acumula<br />
nos teus óculos<br />
a humana limpeza de tuas narinas<br />
viajo pelos rios anêmicos do teu peito<br />
descoberto<br />
e até participo dos teus monólogos<br />
acho que não, Hitler não era nenhum gênio,<br />
o sapato preto fica melhor, etc.Ana Líbia http://www.blogger.com/profile/08251435057520511338noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-2471188335449032060.post-4435943438669059382020-04-07T01:57:00.002-04:002020-04-28T21:52:09.860-04:00Folie Imposée/ Divertimento Forçadodesce a mão burocrática<br />
em obrigação noturna<br />
<br />
mas também pensa<br />
que é sonho<br />
se não sabe<br />
anda por mapas invertidos<br />
recolhendo aspas<br />
pedaços e peças perdidos<br />
<br />
se o sonho é outro lugar<br />
que apaga a firmeza do chão<br />
<br />
monta ondas estrangeiras<br />
de nuvens verdes e grosseiras<br />
luta mortal contra uma deusa<br />
alquebrada<br />
<br />
asfixia a vista - assim morrem as imagens -<br />
um universo opressor de pontos pintados<br />
aqui e ali torcendo<br />
todas as antigas geometrias<br />
explodindo fogos de artifício<br />
no céu da boca aberta<br />
<br />
desce a mão noturna<br />
<br />
cava a terra das pernas em busca<br />
cega<br />
da água da lama do ouro<br />
dos vermes das folhas e outras coisas<br />
sem olhos<br />
<br />
o que traz de lá não conta<br />
retira-se humilde<br />
e não fecha a portaAna Líbia http://www.blogger.com/profile/08251435057520511338noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-2471188335449032060.post-39349135013623936322020-03-29T13:20:00.005-04:002021-11-03T14:53:48.577-04:00Os vizinhosde repente uma cabeça<br />
surge no quadro uma cabeça prateada<br />
talvez à procura da xícara amarela<br />
do desentupidor da pia<br />
<br />
também um braço, só um<br />
no detalhe um braço fino<br />
de desenhos decorado um braço<br />
feminino<br />
sobe e desce no ar, desaparece<br />
caça uma caixa uma agenda<br />
uma fita crepe um retrato<br />
<br />
duas pernas do mesmo corpo<br />
seus pêlos compridos dois<br />
eucaliptos siameses<br />
param e pensam mas não sabem<br />
o que vieram fazer aqui<br />
<br />
tantas vezes no cinema essa <br />
cena<br />
o acaso apela<br />
e revela apenas<br />
o busto negro da romana criatura<br />
outono moço, ainda<br />
faz brilhar no peito um colar de pleno esforço<br />
<br />
alvoroçados centauros disputam<br />
corridas impossíveis no deserto absurdo<br />
dentro da noite grande.Ana Líbia http://www.blogger.com/profile/08251435057520511338noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-2471188335449032060.post-68822181083013093032020-03-28T12:19:00.003-04:002020-03-28T12:47:11.240-04:00Imagempois é, já me esqueci de muita coisa, mas lembro da gente na varanda daquela casa apanhando os mosquitos nas pernas enquanto a queda da noite ia mudando a cor do céu. eu temia os insetos que passeavam na grama, mas você sempre me convencia de que se a gente deitasse nela e prestasse muita atenção ao deslocamento gradual das cores no firmamento, a lua nos recompensaria e conseguiríamos sentir o movimento ínfimo da terra girando sob nossas costas para encontrar a noite. nunca acreditei muito na sua versão sobre a rotação planetária, mas me parecia uma boa oportunidade para dividir contigo o chão, tocar sua mão. era como descobrir um país.<br />
<br />
até hoje às vezes imagino pôr o ouvido no seu umbigo, ouvir girar o mundo.Ana Líbia http://www.blogger.com/profile/08251435057520511338noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-2471188335449032060.post-1260363302013887952020-03-28T12:09:00.003-04:002020-03-28T12:19:50.350-04:00Paradise Lostde dois em dois dias<br />
toca o céu da boca o flúor<br />
na cabeça um ninho elegante<br />
de aves não catalogadas<br />
crescem flores e outras florestas<br />
pelos países esquecidos de outrora<br />
aos poucos volta inteiro como um dia fora<br />
antes dos homens chegarem<br />
bordas de pele maciça contornam<br />
o tecido das unhas<br />
-- que não arranham:<br />
devorou-lhe<br />
a pressão que a mente espezinha --<br />
<br />
sumários sudários gordurosos<br />
previnem da curiosidade vizinhaAna Líbia http://www.blogger.com/profile/08251435057520511338noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-2471188335449032060.post-26091131928031964272020-03-24T15:02:00.000-04:002020-03-24T15:05:56.197-04:00[TRADUÇÃO] Abraçando a Interconexão<b>CONTRIBUIÇÃO AO FÓRUM</b><br />
<br />
<i>Abraçando a Interconexão</i><br />
<br />
Forum: <i>Em Direção a Uma Grande Transição Ética</i><br />
<br />
Jeremy Lent<br />
Fevereiro de 2020<br />
<br />
É da maior importância estabelecer uma estruturação correta de valores para uma profunda transformação da civilização que se coloca necessária. Conforme descrevi em <i>The Patterning Instinct</i>, diferentes culturas têm construído sistemas de valores profundamente distintos, e esses valores têm moldado a história. Analogamente, os valores que escolhemos hoje como sociedade irão moldar o futuro, e os riscos para fazer isto da maneira certa podem ser penosamente altos.<br />
<br />
Nas últimas décadas, o neoliberalismo estabeleceu um regime pseudo-ético dominante baseado em uma noção falha de liberdade individual irrestrita baseada no mercado. Nossa imperiosa tarefa é substituir este com responsabilidade ética compartilhada e interdependência. Precisamos de uma fundação sólida e rigorosa para esta ética. Onde a encontramos?<br />
<br />
Muito da conversa sobre ética acaba focando em binarismos. Mas binarismos simplesmente encorajam campos diferentes a disporem barricadas um contra o outro. Nós devemos nos mover para além dos binarismos em direção a uma estruturação ética verdadeiramente integrada -- uma que incorpore o racional e o intuitivo, o científico e o espiritual.<br />
<br />
Felizmente, nas décadas recentes, a combinação da complexidade científica, biologia evolucionária, ciência cognitiva e teorias gerais de sistemas têm nos oferecido uma plataforma para o tipo de integração que precisamos. Reconhecer uma base evolucionária para valores não significa cair na arapuca do determinismo reducionista de téoricos antiquados tais quais Richard Dawkins, cujo mito do "gene egoísta" tem sido suplantado pela biologia evolucionária moderna.<br />
<br />
As maiores transições evolutivas da vida na Terra têm, na verdade, sido caracterizadas pelo aumento da cooperação. A mais recente fez surgir os hominídios. Enfrentando perigosas condições nas savanas, nossos ancentrais descobriram que, através da colaboração, eles poderiam se proteger e se alimentar com muito mais eficiência. Eles evoluíram emoções morais, tais quais senso de justiça, cooperação, e altruísmo, que os habilitou a, -- no que vem sendo chamado de "hierarquia de dominação reversa" -- colaborativamente, restringir algum macho perigosamente agressivo levado pelo impulso atávico de dominação que nós vemos em outros primatas.<br />
<br />
Essas emoções morais formaram a base da moralidade que caracteriza nossas espécies. Testes sofisticados têm mostrado que, confrontados com uma escolha, nosso impulso inicial é cooperar, e somente algum tempo de reflexão depois é que os comportamentos egoístas emergem. Em vários experimentos, crianças na fase de aquisição da linguagem manifestam um senso rudimentar de clareza, justiça, empatia, compaixão e generosidade, com uma clara habilidade de distinguir entre ações boas e cruéis. A moralidade é intrínseca à condição humana.<br />
<br />
Então por que nós vivemos em um mundo com infinitos exemplos de ultrajante imoralidade, no qual homens perigosos e agressivos ainda dispõem de tanto poder? Com a ascensão da agricultura e do sedentarismo, a balança de poder pesou para o lado daqueles que foram bem-sucedidos em estabelecer domínio hierárquico levando, por fim, à ascensão de sociedades patriarcais que recompensam machismo e violência -- o que Riane Eisler cunhou como "sistemas de dominação".<br />
<br />
A história do mundo no último milênio mostrou crônicas de conflitos entre diferentes sistemas de dominação, dos quais um -- a civilização européia -- acabou tornando-se globalmente dominante nos últimos séculos, forçando sua cosmologia dualística única sobre aqueles que conquistou. Esta é a visão de mundo que muitas pessoas hoje tomam como verdade absoluta -- uma visão de mundo baseada na separação e na dominação, que vê seres humanos como egoístas, competidores racionais, definidos por sua individualidade, absolutamente apartados de uma natureza desumana e dessacralizada, em cuja configuração esta última tem seu papel relegado ao de um mero dispositivo de recursos sem valor intrínseco.<br />
Esta visão de mundo é um grito distante em relação a uma base ética compartilhada de tradições culturais cruzadas ao longo da história, e vem sido compreensivelmente invalidada por descobertas científicas mais recentes. Ao contrário, sistemas científicos confirmam as hipóteses compartilhadas por sábios ensinamentos através do tempo: que nós somos intrinsecamente interconectados. A profunda interpenetração de todos os aspectos da realidade -- o que Thich Nhat Hanh chama de "interser" -- deve estar no coração de uma estruturação ética para uma transformação política e cultural.<br />
<br />
Nossa expressão de moralidade é, em uma extensão muito maior, a função de nossa identidade. Se você vê a si mesmo como um indivíduo isolado, seus valores vão consequentemente te levar à busca de sua própria felicidade às custas dos outros. Se você se identifica com sua comunidade, seus valores vão enfatizar o bem-estar do grupo. Quando você reconhece a si mesmo como parte da natureza, você automaticamente se sente impelido a nutrir e proteger o mundo natural.<br />
<br />
Ao longo de vários séculos, até mesmo quando o imperialismo europeu devastava o resto do mundo, havia também uma gradual expansão de identidade, de uma noção paroquial a uma visão enlarguecida de humanidade compartilhada, que levou à famosa referência de Martin Luther King de um "arco do universo moral" se dobrando à justiça. Isto inspirou conceitos tais quais direitos humanos inalienáveis, e levou a tentativas ainda mais abrangentes de legislação da justiça moral dentro de códigos de conduta nacionais e internacionais. A Carta da Terra se posiciona como um modelo exemplar desse tipo de extensão de perspectiva moral.<br />
<br />
No entanto, em nosso atual dilema, diante de uma catástrofe ecológica iminente e de um potencial colapso civilizacional, nós devemos nos perguntar: será que já não é tarde demais para esta expansão moral? O que pode ser feito para catalisar isso e redirecionar nossa terrível trajetória? Será que é possível desenvolver uma visão global moral transcultural para a humanidade que se estenda à toda vida na Terra, e possa inspirar uma transição compreensiva em relação à justiça econômica e à regeneração ecológica?<br />
<br />
Enquanto alguns de nós, aculturados no Ocidente, tiveram que redescobrir nossa interconexão, culturas tradicionais se mantiveram profundamente arraigadas aos princípios que caracterizaram o núcleo da moralidade humana desde os tempos mais primórdios. A ativista social comanche LaDonna Harris identificou quatro valores centrais conhecidos como "os quatro erres" que são compartilhados pelos povos indígenas ao redor do mundo, que juntos afirmam a interconexão em todos os aspectos da criação: Relacionamento, Responsabilidade, Reciprocidade e Redistribuição. Cada um deles pertence a um tipo diferente de obrigação que diz respeito à vida de uma pessoa. O Relacionamento é uma obrigação de afinidade, reconhecendo valor não apenas na família mas em "todas as relações", incluindo animais, plantas, e a Terra viva. A Responsabilidade é a obrigação da comunidade, identificando a imperiosa nutrição e cuidado para todas as relações. A Reciprocidade é uma obrigação cíclica para balancear o que é dado e o que é tirado; e a Redistribuição é a obrigação de compartilhar o que alguém possui -- não apenas riqueza material, mas a habilidade de alguém, o tempo, a energia.<br />
<br />
Outras fontes de sabedoria, tais quais o Taoísmo, o Budismo, o Confucionismo, cada uma delas oferece ensinamentos dentro das implicações éticas da unidade fundamental de toda a Vida. "Tudo, de... marido, esposa, e amigos, a montanhas, rios... pássaros, feras, e plantas; tudo deve ser verdadeiramente amado para que a unidade seja alcançada.", declarou o sábio neoconfuciano Wang Yangming.<br />
<br />
Nossa tarefa crucial é incorporar esses princípios de sabedoria tradicional a um sistema de valores integrado que possa redirecionar a humanidade do caminho da catástrofe, e em contrapartida, pô-la no caminho de um futuro virogoso. Um caminho no qual nossa identidade compartilhada se expanda para além das fronteiras paroquiais para incluir não apenas toda a humanidade, mas todos os seres sencientes, e a vibração de toda a Terra pulsante. Por fim, são nossos valores que guiam nossas ações -- e que modelarão o nosso futuro.<br />
<br />
texto original disponível em: <a href="https://greattransition.org/gti-forum/ethics-transition-lent">https://greattransition.org/gti-forum/ethics-transition-lent</a><br /><br />as notas do texto original foram retiradas na tradução.<br /><br /><i>Jeremy Lent é um autor cujos escritos investigam os padrões de pensamento que levaram a civilização à sua atual crise de sustentabilidade. Ele é o fundador do Liology Institute, sem fins lucrativos, dedicado a uma visão de mundo que poderia permitir que a humanidade prosperasse de uma maneira sustentável.<br /></i><br />
<br />
<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
<a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEg57z2B2PIhNoaTVOKeDgM2StWpdSfrWLt45yEqauGMwvgDHAhfse-e5pgnUgFlUeSCu0vVjRnV98vHy2y79KgPUrJoKoL8EZAijFg7ueMiNHb3byu9GzChgXVXM2QbC-mWbX8Q62Iciu0l/s1600/JLENT.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="601" data-original-width="481" height="320" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEg57z2B2PIhNoaTVOKeDgM2StWpdSfrWLt45yEqauGMwvgDHAhfse-e5pgnUgFlUeSCu0vVjRnV98vHy2y79KgPUrJoKoL8EZAijFg7ueMiNHb3byu9GzChgXVXM2QbC-mWbX8Q62Iciu0l/s320/JLENT.jpg" width="256" /></a></div>
<br />Ana Líbia http://www.blogger.com/profile/08251435057520511338noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-2471188335449032060.post-26105285755672637602020-03-22T15:29:00.001-04:002020-03-22T15:33:23.571-04:00[TRADUÇÃO] Nós não vamos voltar ao normal<b>NÓS NÃO VAMOS VOLTAR AO NORMAL</b><br />
<br />
<i>O distanciamento social veio pra ficar por muito mais que algumas semanas. Ele vai virar nossa forma de viver de cabeça pra baixo, e de alguns modos, pra sempre. </i><br />
<br />
<i>Por Gideon Lichfield</i><br />
<br />
Para deter o coronavirus nós precisaremos mudar radicalmente quase tudo o que fazemos: como nós trabalhamos, nos exercitamos, socializamos, compramos, administramos nossa saúde, educamos nossos filhos, cuidamos da nossa família.<br />
<br />
Nós todos queremos que as coisas voltem ao normal rapidamente. Mas o que a maior parte de nós provavelmente ainda não se deu conta - embora vá fazê-lo logo - é que as coisas não vão voltar ao normal depois de algumas semanas, ou mesmo depois de alguns meses. Algumas coisas nunca mais voltarão ao normal.<br />
<br />
Agora é consenso (até na Grã-Bretanha, finalmente) que todos os países precisam "achatar a curva": impôr distanciamento social para retardar a disseminação do vírus para que o número de pessoas doentes de uma vez não colapse os sistemas de saúde, conforme esta realidade ameaça a Itália agora. Isso significa que o estado de pandemia precisa durar em baixo contágio até que pessoas o suficiente tenham contraído Covid-19 para que a maioria consiga ficar imune (imaginando que a imunidade dure por anos, o que nós não sabemos) ou que haja uma vacina.<br />
Quanto tempo isso vai durar, e quão draconianas as medidas de distanciamento social precisarão ser? Ontem o presidente Donald Trump, anunciando novas instruções como um limite de 10 pessoas em encontros, disse que "com muitas semanas de atenção focada, nós podemos contornar a curva e virá-la rapidamente". Na China, seis semanas de lockdown estão começando a suavizar agora, de modo que o número de novos casos caiu até o ponto de uma semi-estagnação.<br />
<br />
Mas não vai acabar aí. Enquanto uma pessoa no mundo tiver o vírus, pandemias podem e vão continuar ocorrendo se controles rigorosos para contê-las não forem pensados. Num relatório de ontem (PDF), pesquisadores do Imperial College de Londres propuseram uma forma de dar conta disso: impôr medidas mais extremas de distanciamento social toda vez que entradas em UTIs começarem a escalar, e relaxá-las cada vez que o número cair. Aqui é como isso se parece no gráfico:<br />
<br />
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<a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjxiMNYTkUzDJ7nuaIpgDSqfUUTBEDgh80txJog4sbOD-taIUmm6I5sVzVEqTyHbGkh6teJdVhZZ_PWaQBZNtWr7LfG8xU2Em0MGT120TQQNhk01IsUyspbxh9TwQVNAdHpi8MDvzdrAQoP/s1600/periodic-social-distancing_0.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="377" data-original-width="616" height="244" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjxiMNYTkUzDJ7nuaIpgDSqfUUTBEDgh80txJog4sbOD-taIUmm6I5sVzVEqTyHbGkh6teJdVhZZ_PWaQBZNtWr7LfG8xU2Em0MGT120TQQNhk01IsUyspbxh9TwQVNAdHpi8MDvzdrAQoP/s400/periodic-social-distancing_0.jpg" width="400" /></a></div>
<br />
A linha laranja representa o número de entradas na UTI. Cada vez que elas subirem além do limite - digamos, 100 por semana - o país fecharia todas as escolas e a maior parte das universidades e adotaria o distanciamento social. Quando elas caírem para abaixo de 50, essas medidas seriam então suspensas, mas as pessoas com sintomas ou cujos membros familiares têm sintomas deveriam continuar confinadas em casa.<br />
<br />
Mas o que conta como "distanciamento social"? Os pesquisadores definiram isso como "todas as casas reduzindo seu contato com outras casas, escolas e locais de trabalho em 75%". Isso não significa que você não vai poder sair com seus amigos uma vez por semana ao invés de quatro. Significa todo mundo fazendo tudo o que puder para minimizar o contato social, e num panorama geral, o número de interações assim cai para 75%.<br />
<br />
Dentro desse modelo, os pesquisadores concluem, o distanciamento social e o fechamento de escolas precisariam estar em vigor algo em torno de dois terços do tempo - por baixo, dois meses sim, um mês não - até que uma vacina esteja disponível, o que levará no mínimo 18 meses (se funcionar de fato). Eles observam que os resultados são "quantitativamente similares para os E.U.A."<br />
<br />
<i>Dezoito meses!?</i> Certamente deve haver outras soluções. Por que não construir mais UTIs e tratar mais pessoas de uma vez, por exemplo?<br />
<br />
Bom, no modelo dos pesquisadores, isso não resolveu o problema. Sem distanciamento social da população inteira, eles concluíram, até mesmo a melhor estratégia de mitigação -- o que significa quarentena dos doentes, dos idosos, e daqueles que foram expostos, mais fechamento de escolas -- ainda levaria a uma onda de pessoas criticamente doentes oito vezes maior que os sistemas de saúde dos E.U.A. ou do Reino Unido seriam capazes de aguentar. (Esta é a curva azul mais baixa no gráfico abaixo; a linha vermelha plana é o atual número de casos em camas de UTI.) Mesmo se você programar fábricas para que produzam camas e ventiladores em massa e todas as outras estruturas e suprimentos, você ainda precisará de muito mais enfermeiros e médicos para cuidar de todo mundo.<br />
<br />
<br />
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<a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhCNW03MCubJ9bS-wwEhqS4NlSGfYgyMBwhTIk6m4olj-wnVEDciL5iloLw7aaRM3QhL5wxtPrmxrPh_iMgJIntKN2qEWUzAE7RkK1-ENN0cwIQ0qt4rqlO0g1erDxzlJrYahfD62M387LQ/s1600/mitigation-scenarios.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="374" data-original-width="616" height="242" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhCNW03MCubJ9bS-wwEhqS4NlSGfYgyMBwhTIk6m4olj-wnVEDciL5iloLw7aaRM3QhL5wxtPrmxrPh_iMgJIntKN2qEWUzAE7RkK1-ENN0cwIQ0qt4rqlO0g1erDxzlJrYahfD62M387LQ/s400/mitigation-scenarios.jpg" width="400" /></a></div>
<br />
<i> Em todos os cenários com isolamento social difundido, o número de casos de Covid colapsa os sistemas de saúde.<br /><br /></i><br />
Que tal impôr restrições por apenas um punhado de cinco meses ou algo assim? Nada feito -- uma vez que as medidas são suspensas, a pandemia explode de novo, só que dessa vez é no inverno, a pior época para sistemas de saúde já esgarçados.<br />
<br />
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<a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhmFN4K3qA9hfsl0WcXoeavG1TPpKTqQKYo-9wlCds3lG9Oq89qFOnHSDsq20cHVRuAK_yKwgFQ_Arf8nXhTri3i1WnW_058g1pANF_oP2rylFPLPX2EsBdEAYlv7AgjGb4MSPS0vaYguOu/s1600/suppression-scenario-for-five-months.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="393" data-original-width="890" height="176" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhmFN4K3qA9hfsl0WcXoeavG1TPpKTqQKYo-9wlCds3lG9Oq89qFOnHSDsq20cHVRuAK_yKwgFQ_Arf8nXhTri3i1WnW_058g1pANF_oP2rylFPLPX2EsBdEAYlv7AgjGb4MSPS0vaYguOu/s400/suppression-scenario-for-five-months.jpg" width="400" /></a></div>
<br />
<br />
<i>Se o distanciamento social completo e outras medidas são impostas por cinco meses, e então suspensas, a pandemia volta</i><br />
<br />
E se nós decidirmos ser brutais: estipular um número-limite para entradas em UTIs para engatilhar um isolamento social muito maior, aceitando que muito mais pacientes podem vir a morrer? Parece que isso faz pouca diferença. Mesmo nos cenários menos restritivos do Imperial College, nós estamos trancados em mais da metade do tempo.<br />
<br />
Esta não é uma disrupção temporária. É o começo de um modo de vida completamente diferente.<br />
<br />
<b>Vivendo em estado de pandemia</b><br />
<br />
A curto prazo, isso vai prejudicar imensamente negócios que dependem de pessoas se reunindo em grande número: restaurantes, café, bares, casas noturnas, academias, hotéis, teatros, cinemas, galerias de arte, shoppings, feiras de arte, museus, músicos e outros artistas, ginásios esportivos (e times esportivos), locais de conferência (e produtores de conferências), linhas de cruzeiros, linhas aéreas, transporte público, escolas privadas, creches. Isso sem mencionar na pressão em cima dos pais quanto à educação domiciliar dos filhos, das pessoas tentando cuidar de parentes idosos relativamente sem expô-los ao vírus, pessoas aprisionadas em relacionamentos abusivos, e qualquer um sem alguma reserva financeira para lidar com as alterações no salário.<br />
<br />
Haverá algumas adaptações, é claro: academias poderão começar a vender equipamentos para casa e sessões de treinamento online, por exemplo. Veremos uma explosão de novos serviços no que já vem sendo chamado de "<i>claustroeconomia digital</i>"<b>*.</b> Pode-se também considerar, esperançosamente, sobre a forma como alguns hábitos podem mudar -- menos emissão de carbono durante viagens, mais cadeias de suplementação locais, mais caminhadas e pedaladas.<br />
<br />
Mas a disrupção para muitos, muitos negócios e comunidades será impossível de administrar. Sem contar que o estilo de vida claustroeconômico não é sustentável por longos períodos.<br />
<br />
Então como nós podemos viver nesse novo mundo? Parte da resposta -- ainda bem -- será sistemas de saúde melhores, com unidades de resposta a pandemias que se movimentarão rapidamente para identificar e conter surtos antes que comecem a se espalhar, e a habilidade de rapidamente aumentar a produção de equipamento médico, kits de teste, e medicamentos. Estes estão atrasados demais para deter o Covid-19, mas irão ajudar em futuras pandemias.<br />
<br />
A médio prazo, nós provavelmente acharemos estranho acordos que nos permitam reter alguma semelhança com a vida social. Talvez cinemas tenham seu número de assentos reduzidos pela metade, reuniões serão conduzidas em espaços maiores com cadeiras espaçadas, e academias irão requerer que você reserve suas aulas com antecedência para que não fiquem lotadas.<br />
<br />
Num cenário mais distante, no entanto, eu prevejo que nós restauraremos a habilidade de socializar com segurança ao desenvolver maneiras mais sofisticadas na identificação de quem é um potencial risco-doença e quem não é, e discriminando -- legalmente -- os que são.<br />
<br />
Nós podemos ver os precursores disso em medidas que alguns países estão adotando hoje. Israel vai usar a informação de localização remota por celulares com a qual seus serviços de inteligência rastreiam terroristas para rastrear pessoas que tiveram contato com hospedeiros conhecidos do vírus. Singapura faz um exaustivo trabalho de rastreamento de contato e publica informações detalhadas sobre cada caso conhecido, tudo sem identificar as pessoas pelos seus nomes.<br />
<br />
Ainda não sabemos exatamente como este novo futuro se parece. Mas é possível imaginar um mundo no qual, para tomar um avião, talvez, você tenha que submeter-se a um serviço que rastreie seus movimentos via celular. A companhia aérea não conseguiria ver por onde você se deslocou, mas seria alertada caso você tivesse estado próximo a pessoas infectadas conhecidas, ou em focos de doença. Haveria requerimentos similares em entradas de locais amplos, prédios governamentais, ou estações de transporte público. Haveria scanners para aferir a temperatura, e pode ser que seu local de trabalho obrigasse você a usar um monitor que inspecionasse sua temperatura ou outro sinal vital. Onde casas noturnas pedem carteirinha de identidade, no futuro elas poderiam pedir uma carteirinha de imunidade -- um cartão de confirmação ou algum tipo de verificação digital via celular, mostrando que você já se recuperou ou foi vacinado contra as últimas mutações virais.<br />
<br />
Nós nos adaptaremos e aceitaremos tais medidas, assim como nos adaptamos a escaneamentos cada vez mais severos em aeroportos na esteira de ataques terroristas. A vigilância invasiva será considerada apenas um pequeno ônus a ser pago pela liberdade básica de viver e conviver com as outras pessoas.<br />
<br />
Como de praxe, no entanto, o verdadeiro custo vai sair dos mais pobres e mais fracos. Pessoas com menos acesso à saúde ou que vivem em áreas mais sujeitas a doenças serão muito mais frequentemente barradas de lugares e oportunidades abertos ao restante das pessoas. Trabalhadores informais -- de motoristas a encanadores, de freelancers a instrutores de yoga -- verão seu trabalho se tornar ainda mais precarizado. Imigrantes, refugiados, indigentes, e ex-presidiários irão enfrentar ainda mais obstáculos para obter seu lugar na sociedade.<br />
<br />
Ainda, a menos que haja regras estritas sobre como o risco de alguém à doença é avaliado, governos ou empresas poderiam escolher qualquer critério -- você é alto risco se ganha menos de $50.000 por ano, é de uma família com mais de seis pessoas, e vive em determinadas partes do país, por exemplo. Isto cria um escopo para parcialidade algorítmica e discriminação subjacente, com aconteceu no ano passado com um algoritmo usado por seguradoras de saúde americanas e que acabou, inadvertidamente, favorecendo brancos.<br />
O mundo mudou muitas vezes, e está mudando de novo. Todos nós teremos que nos adaptar a uma nova maneira de viver, trabalhar, e criar relações. Mas como em toda a mudança, haverá alguns que perderão mais que outros, e eles serão justo aqueles que já perderam muito até agora. O melhor que podemos esperar é que a profundidade desta crise finalmente force os países -- os Estados Unidos, em particular -- a consertar as morosas desigualdades sociais provocadoras de enormes abismos em seu povo já tão intensamente vulnerável.<br />
<br />
*Termo cunhado por Michel M. Rolli (22/03/2020)<br />
Colaborou: Michel M. Rolli<br />
<br />
Texto originalmente disponível em<br />
https://www.technologyreview.com/s/615370/coronavirus-pandemic-social-distancing-18-months/Ana Líbia http://www.blogger.com/profile/08251435057520511338noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-2471188335449032060.post-21989919585532617972020-03-21T00:16:00.000-04:002020-03-21T07:46:07.946-04:00Tour de forceuma dose de medo no fundo<br />
desse copo de março<br />
o alcool desaparece<br />
das prateleiras<br />
e informa<br />
<br />
as loucas estão destrancadas<br />
arrebentando mortalhas<br />
<br />
em confortáveis masmorras<br />
tudo dança tudo teme<br />
o brilho da música acesa convida<br />
ao sapateado sobre a tumba<br />
não selada<br />
<br />
uma dose de março no fundo<br />
desse copo de medo<br />
o corpo é da vida, ainda<br />
como a vida é do corpo<br />
bailado sinistro na escada<br />
<br />
enquanto a luz leve nas janelas conta<br />
do inverno prematuro sob as unhas<br />
responde a ira<br />
com inaudível grandeza<br />
<br />
aqui não, hoje nunca<br />
não vês tu que consta nesta báscula o sangue<br />
não do cordeiro<br />
mas dos piores lobos?Ana Líbia http://www.blogger.com/profile/08251435057520511338noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-2471188335449032060.post-84432945771393473972020-03-04T12:20:00.001-04:002020-03-04T12:50:41.421-04:00Brinde ao precipícioNos calendários, nos despertadores, nos relógios de rua (às vezes nos de pulso), no jornal impresso, no jornal digital, no prazo mental da conta de luz, no relatório concluído entre bocejos e talagadas de café, a segunda é o único dia da semana que parece ser anunciado em todos os lugares onde a vida é uma obrigação. A mãe dos dias úteis, em implacável senso de responsabilidade, dança, os patins brancos nos tornozelos bem afivelados, sobre o gelo fino da imposição, da estética, da competência, da continência, vertendo as horas em líquido amniótico até transformar o tempo numa massa enfadonha. Os prédios espelhados, as câmeras de segurança nas ruas, os ternos nos armários, as canetas que falham na hora de assinar o nome completo sobre a linha pontilhada, os corrimões imundos nas estações de transição e as solas dos sapatos olhando nos olhos das pessoas de soslaio, no meio de uma pergunta antirretórica escondida dentro dum caleidoscópio onde se inscreve, em cada lâmina, "o que você já fez hoje", "o que você está fazendo agora" e "o que você vai fazer hoje". Mágica a pergunta, escorrendo dos tempos verbais com a elegância paradoxal própria de todas as perguntas sobre o tempo, como se fosse possível fundi-la graficamente ao transcrevê-la num pedaço de papel, três ou infinitas vezes justapostas - não faria diferença -, a ponto de, no final restar um refinado palimpsesto solicitando, impaciente, uma fonologia mais avançada que dê conta de sua leitura. A pele violenta do positivismo tropical é coberta por um manto, onde estão estampadas flores coloridas em tons pastéis, aplicativos de celular que regulam o peso, o sono, o crédito, ou a menstruação; sorrisos perfeitos e aflitos, todos eles sintomas de um coração em cinismo terminal e constante. Como se pudesse adquirir uma carne e um centro, o coração então pulsa sem licença. Dele brotam os olhos da propaganda. Numa mutação tão instantânea quanto bizarra, também brotam vozes, espalhando em todas as direções onde se ouve, sem descanso nem esforço, que o mundo pode ser seu, basta nunca parar de lutar, basta tentar, basta acreditar nos seus sonhos.<br />
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Vinte ou trinta pessoas sentiram, inconscientemente, a pontada ou a lança inteira dessas vozes descendo goela abaixo, como o tubo que alimenta os patos que, em troca, vomitam preciosos fígados doentes. Vinte, trinta pessoas ou mais, mas não Isidora, que havia acordado só com algum sono ainda descolando das pálpebras e uma fome descompensada. Mãos nos cabelos, ajeita um coque sempre tendendo aos ombros, preocupada em recolher as calcinhas no varal e checar seus e-mails na expectativa de que alguém os tivesse respondido com alguma proposta minimamente honesta de trabalho. Por honestidade, Isidora entendia pagamentos em dia, fins de semana livres, carteira assinada nos conformes e que com menos de 900 reais por mês, tal proposta não ganhava espaço nem na cogitação. Mas nada constava em sua caixa de entrada, mais uma vez. Nada, nada."É o Brasil de Julius", "Fora Julius!"; frases que haviam se tornado comuns naqueles últimos anos, ecoadas até o limite do desaparecimento. Isidora sabia, e cada conta atrasada vinha lembrá-la, as coisas precisavam melhorar, e com a urgência que suscita uma ordem de despejo. Mas a mudança não viria, pelo menos, naquela segunda-feira sem maiores promessas do que seu deslocamento de uma ponta à outra da cidade. O inverno chegava ao fim, e nesse fim era confortável perder a vista nas sobreposições das finas cortinas de gelo na cerração matinal daquela época. Visão ótima para bocejar, mas com um pouco de esforço fornecia o ambiente físico ideal para passar algumas horas deitada, as pernas caóticas na rede, pra lá e pra cá, lixando as unhas, pensando no nada ou lendo um livro que estava terminando. Sentia-se, de modo insólito, conectada ao autor em sua busca misteriosa, talvez por redenção, mas, certamente, por alguma estabilidade numa terra de desesperança e sonhos sifilíticos. Desesperança nunca foi um problema, pelo contrário, equilibrava seu ascendente em peixes, diziam as amigas esotéricas. Já a sífilis perdera o romantismo, sendo substituída pela AIDS, o que, vez por outra, ressabiava um pouco a mente de Isidora quando ela fazia reconstituições mentais de noites que eventualmente pudessem ter fugido ao seu controle. Um estalo rápido, uma palma da mão contra a outra, olhos arregalados ao som num reflexo confuso do corpo: sua maneira de desgrudar da dormência. Olha no relógio, tem pouco tempo, tem pouco saco, mas enfia um tênis no pé, se apruma, meio desajeitada. Hora de levantar.<br />
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Dois momentos compõem o caminho de Isidora. O primeiro é o trajeto feito de metrô, até o centro da cidade. A vida passa rápido no metrô. Passa um vendedor ambulante. Vende alimentos como passatempo, por que a fome e o tédio não haveriam de ser duas faces opostas do mesmíssimo biscoito? Às vezes, um vendedor ambulante é retirado do vagão por homens de preto com cordial truculência. Às vezes, um homem é enxotado, acompanhado de um escândalo em coro de mulheres, enxotado é uma palavra curiosa nessa circunstância. Tem também as pessoas que ocupam os assentos preferenciais sem serem pessoas preferenciais, e ouvem abertas advertências diagonais de pessoas igualmente não-preferenciais que, em pé, talvez também se sentassem ali se tivessem chance da preferência. As advertências costumam vir acompanhadas de discursos sobre educação exemplar, país em crise, valores morais, corrupção, etc. Todas as pessoas têm alguma coisa a dizer sobre a corrupção, ou enxergá-la em todas as atitudes de todos os brasileiros, como se fosse algum tipo de traço congênito-patriótico. Às vezes entra um casal idoso no metrô e começa alegremente a assuntar com pessoas próximas a Isidora, contando que se casaram há apenas 5 anos depois de trinta e oito juntos. Mas ela não sabe o que conversam. Tem os fones enterrados nos ouvidos, de modo que o mundo é filtrado pelas traulitadas da música eletrônica da vez. Então Isidora chega ao metrô. Sempre ofegante. Para esta segunda-feira sem nada em particular, ela escolhera um álbum contínuo, em que uma música termina dando a deixa para a outra, fazendo com que o trabalho dos artistas pareça uma coisa só, feito um sonho que escoa para outro mais rápido do que o cérebro consegue entender. O pescoço de Isidora se movimenta discretamente para frente e para trás, não necessariamente porque dentro da cabeça uma voz lhe avisa que o rock não pode parar, mas em consequência da batida. As estações esvaziam e incham como um pulmão infantil. Entre um sorriso discreto para um bebê e o olhar malicioso de um homem engravatado, Isidora deixa o vagão na estação com a qual tem em comum o gentílico.<br />
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Olhos atentos à tela que revela os horários das próximas barcas. A vida se alonga em lentidão sonolenta depois que ela se acomoda. Deve ser culpa das águas. A baía superficialmente morta é um templo movediço de contemplação, Isidora faz anotações. Coisa dela. Se repousa as mãos, tem o olhar perdido para além dos navios. Os navios são estrelas visíveis à luz crepuscular; olhar para eles é disparar um arpão de cabo longo. Sua trajetória é cega, mas objetiva. Inspira fundo e a maresia abraça suas narinas, se pensando bem-vinda; ela espirra cinco vezes. Recorda. Uma mulher com criança de colo conta seus infortúnios a todos os passageiros. Senhor passageiro, é proibida atuação de pedintes nas imediações da embarcação. Não contribua com esse tipo de prática, diz uma voz sem corpo que vem de todos os lugares, quase como se viesse de dentro da mente. Mas não da de Isidora, que, com sono, ajeita o caderno debaixo do rosto como uma grande concha de plástico. Não fosse a metafísica dos avisos sonharia com Caronte?<br />
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A multidão deixando o transporte em procissão automática é decalcada sobre uma vaga lembrança que Isidora tem da pequena almofada que pertenceu à sua avó, espetada com muitos alfinetes coloridos muito próximos uns dos outros. Hálito, suor, perfume, plástico, cigarro, um desfile de odores caminha discreto com a multidão. O calor daquela reunião aleatória de pessoas aumenta em Isidora o desejo de se misturar que havia tido já pela manhã, e que não havia sido vencido nem mesmo pelo banho-maria do ombro-a-ombro das pessoas cheias de deveres; e se misturaria sim, era isso o que desejava, mas não ali, que a mistura que queria não poderia acontecer ali, no meio daquele conjunto de homens e mulheres em serviço. Queria outras coisas. Olha para um lado, para o outro, recolhe uma mecha de cabelo que cai pela testa. Confere o celular, não há nenhuma resposta ao convite que propôs a dois amigos. O que acontece nas esperas corresponde à mesma vida que se vive fora delas?<br />
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Depois de horas, refaz o percurso sobre as mesmas águas, agora completamente enegrecidas pela noite. Aportada, desvia à direita de seu destino usual, criando outro para si. A noite gradualmente enverniza as cores, e de repente aquela segunda-feira é passível de evoluir para uma experiência mais interessante. Aperta a bolsa e os passos, as ruas são escuras, os ratos, enormes, e o horário oferece uma margem larga de distância entre um corpo e outro, sem a inevitabilidade das costumeiras colisões que ocorrem sob a luz do dia. Não é tão comum ver uma mulher vaguear sozinha, deslocando-se fisicamente pelas veias estreitas de uma metrópole tão bonita quanto perigosa. Isidora, vez por outra, se perguntava se era ela realmente muito destemida, ou se as pessoas é que tendiam demais ao medo. Aquela moça uma vez havia lhe dito: parâmetro! Não tinha nenhum amuleto, cântico ou oração específicos. Medo de morrer é sinal de muito medo de viver. Não tinha medo da noite; sua cabeça lhe dizia que não havia porquê. Ela lhe parecia uma enorme besta inflável que Isidora sentia necessidade de montar; desamarrada na extremidade; desgovernada e senil, quanto mais força tinha acumulada por dentro. O excesso do hábito era o viscoso sexto sentido da experiência. Inobjetivamente. Por isso os ouvidos bem abertos para o lado de dentro da cabeça. Educou-os para obedecer ao chamado da inobjetividade. É um chamado pequeno, e fortemente encriptado que ocorre debaixo da música ambiente dos ruídos fanhosos das promoções na rua, televisões ligadas, citações de filósofos mortos exumadas nas bocas de garotos querendo impressionar garotas, estouros de bolha de chiclete, áudios de whatsapp, rompimento de pacotes de biscoito, garranchos quentes da rasura invisível produzidas pelas canetas que não vão escrever nunca.<br />
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Asinhas herméticas, plenos ligamentos musculares, coxas rígidas, fogo no rabo. Chega onde queria através de uma rua antiga e rudimentar. Se camufla na fauna vasta de mulheres e homens ambiciosos, que espécie ambiciosa é a humana, tanta vontade nos sorrisos relaxados, e nos olhares uma descarga pesada de feromônios, incentivada pela conversão sempre bem efetuada entre a própria noite e o samba. O samba. Sempre o samba, tirando Isidora de casa, desviando Isidora de casa, afastando Isidora de casa; desmanchando e manchando seus romances, sereia musculosa sussurrando através dos tempos aos ouvidos mais dispersos, armando a ratoeira nas esquinas onde luz e moral vacilam igual. Mas não vai haver a roda de samba. A proibição das rodas de samba em sua cidade era um contrassenso, pensou. Os absurdos do futuro social da região por um momento fizeram-na cogitar que poderia não estar muito longe o dia em que a vadiagem voltasse a vigorar como argumento para prisão. Imagine só, uma horda de vadios famintos por diversão apodrecendo em celas abafadas. Quase como os estagiários que recusou-se a se tornar. Lembrou duma antiga profecia de Wilson das Neves. Num misto de preocupação e alívio secretos, riu. Aproveitou a oportunidade para queimar, ainda, alguns minutos observando o vai-e-vem dos passantes, já vazando da praça central, onde o samba teria lugar, para outras direções. Pára na barraca de um ambulante, a quem pede um isqueiro. Aceso o cigarro, agradece e se encaminha para casa, pisando suave, mas uma mão lhe toca o ombro esquerdo e é Pedro, um amigo recente com o qual estabeleceu afinidade imediata.<br />
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Pedro está com Guilherme, colega de trabalho, a quem Isidora é apresentada. Ambos trabalham perto dali, o que faz com que a rua onde acontece o samba seja apenas uma consequência no fim do dia. Uma coincidência encontrar Pedro. Eles oferecem a Isidora uma cerveja, o que vem em boa hora, ela não tem dinheiro algum que possa gastar. Pedro lhe dá um copo de plástico e o enche, lindo é o volume, a cor de ouro e a luz da cerveja em plena segunda-feira. Mesmo que brilhe um tanto leitosa num copo de plástico. Isidora não tinha rigorosamente nada contra segundas-feiras, inclusive até gostava delas porque necessariamente sucediam os domingos, esses, sim, dias desconfortáveis. Movimento lhe importava, e segunda-feira era sinônimo disso. Mesmo bebendo mais rápido que os homens, não acredita na descartabilidade do copo. Um copo nunca é realmente descartável até que o sol finalmente aponte no céu. A borda do copo é o círculo espiritual onde começam quase todas as congregações. Um copo na mão é um sintoma de autoridade, uma posição afirmativa em relação ao meio, uma deixa, uma espera, um sinal de disponibilidade. A boca de um copo é a virtualidade da boca humana, aberta, numa espécie tolerante de avesso; boca que cala a outra, acesso ao interior de tudo o que o outro tenta guardar: embebedar alguém é uma tentativa discreta de arrombamento.<br />
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Entre um refil e outro, o trio é surpreendido por outros dois amigos, talvez também de passagem, pela estreita rua onde agora há franco trânsito de cabisbaixos pelo aborto do samba. Os amigos chegam e despejam suas cervejas trazidas de casa na mesa onde o trio bebe, e engata num assunto qualquer que um dos recém-chegados tem grande domínio. O dono da palavra segue, discorrendo grandemente sobre os problemas da alienação da população, em como a grande mídia lucra com a ignorância do povo, em como tudo se organiza de maneira circular. O trio ouve o amigo se entregar apaixonadamente ao assunto. Isidora tenta dizer algumas coisas que não vem ao caso, mas é interrompida. Tem os olhos mais atentos ao cigarro que o locutor destrincha das mãos, e antes de acendê-lo, se demora em instruir aos amigos sobre como preparar o cigarro perfeito. Conforme o amigo continua seu discurso, as palavras que vai dizendo vão ficando coladas à pele do seu rosto, não se misturam com o ar. Em poucos minutos ele tem o rosto coberto pelas palavras que deixou sair, que por falta de espaço vão se amontoando umas sobre as outras, e devido ao estresse, se amotinam. Num gesto curioso, oferece o cigarro a Isidora, pede que o acenda. Ela não hesita, e dá uma tragada profunda na ponta troncha do cigarro. Sente os olhos indigentes de Pedro e Guilherme pousados na fumaça gordurosa que libera pela boca semiaberta, fazendo firulas, enquanto gradativamente perde a capacidade de discernir as feições do amigo tomadas pelas palavras que não parou de falar até então. Invertendo a ordem da brasa, Isidora passa o cigarro a Pedro, que em sequência o passa a Guilherme. Quando devolvem o cigarro ao dono, o calor do fumo reage inesperadamente com o depósito das palavras em sua cara, e ele incinera de uma vez. O trio se afasta, ressabiado, e confere a hora nos relógios: perderiam a última viagem de metrô se não se esforçassem muito para converter em precisos 15 minutos os mais de 20 que os distavam da estação mais próxima. Como se ouvissem um tiro olímpico interno, Isidora, Pedro e Guilherme abandonam o amigo chamuscado e correm discretamente. De seu rosto, se desprendem agonizantes pequenos pedaços de palavras, pequenas larvinhas em movimentos nervosos, que conforme vão tocando o chão, produzem não uma explosão, mas um soluço.<br />
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A escuridão da rua desola ainda mais a visão da porta cerrada da estação. Os três levam as mãos à cabeça, Isidora confecciona um coque inútil, e aí, e agora? O mais viável é pela Avenida Dois, sugere Pedro. Só se você tiver louco, não sabe o que tem lá? Ué, saber eu sei, mas não tem como pegar táxi aqui. Você tem alguma ideia melhor? Eu não, mas também não sou mulher. Acho que é a Isidora quem deve decidir. Isidora olha para a escuridão a perder de vista. É, gente, não temos opção nenhuma a essa hora. Ou é isso ou a gente vai ter que contornar toda a Avenida Quatro, o que eu acho mais perigoso ainda. Topo a Avenida Dois mesmo. É só a gente passar rápido e sem muito alarde. Nem vão notar a gente.<br />
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Guilherme é o mais desconfortável com a ideia de tomarem a Avenida Dois, mas sendo seu voto minoritário, não faz mais que seguir os dois amigos. Dali, tomam a segunda rua esquerda, que desemboca nela. É uma rua extensa e larga, muito movimentada durante o dia, mas que à noite transforma quase todos os pedintes da região em condôminos. O trio passa pelo centro da avenida ouvindo as conversas abertas e os monólogos delirantes dos habitantes noturnos. Era ali que estavam os olhos da cidade. Coleções de imagens que a queda do dia fratura com uma implacabilidade débil, recontações de fatos esquartejados, notas sobre homens de merda e putas que ainda haveriam de perder para eles alguma coisa, qualquer coisa. De uma das extremidades da rua surge uma mulher enorme, imunda, com os seios livres, que se aproxima de Guilherme e murmura alguma coisa que não faz sentido a ele, mas que se recolhe de onde surge sem tocá-lo. Um homem velho grita com outro, acusando-o de ter roubado um de seus caixotes. Duas mulheres jovens se queixam da briga dos homens, e são repreendidas por uma terceira, que não parece tomar partidos e cuja irrupção na querela tem como propósito único atiçar os ânimos já esquentados. Vários gatos ondulam a silhueta da escuridão, enquanto fogem de ratos que não se podem ver. O resultado de tamanha pressão é que alguns minutos depois de discreta caminhada, a Avenida Dois deixa de ser um lugar amedrontador para dilatar-se no registro da retina como qualquer outro, e os diálogos que não dizem respeito aos três intrusos na paisagem de fato se parecem com algum tipo torcido de comédia da vida privada, esquete a céu aberto. Já deixando a rua, Pedro finalmente entorna, verbalmente, sua vontade de urinar; fato não só manifestado como compartilhado fisiologicamente por Isidora e Guilherme, que vinham sustentando a mesma vontade em silêncio e agonia. Num trecho mais claro, e à tal altura, já distante do centro da Avenida Dois, os três tomam para si árvores que lhes remontam uma sensação aproximada de privacidade. Todos se mijam inteiros, mas por conta de certas configurações biológicas, é pior com Isidora, que não só erra o lugar onde mirava bem como se atrapalha, mija na própria bolsa, e no ápice do desequilíbrio se desabraça de sua árvore, anda pra trás quase caindo sentada sobre a própria urina. Pedro, Guilherme e ela desbaratinam num riso tão incontinente quanto a urina com a qual empapuçaram aquela terra rala. Metros adiante, um monólito marca o mapa da cidade. Descontraídos enquanto erram os passos, já aliviados pelo que ficou para trás, Pedro e Guilherme veem Isidora se distanciar em uma breve e enfurecida corrida ao encontro do marco. Ao debruçar-se sobre ele, esfrega, em círculos inexatos, sua bolsa por sobre o mapa protegido pelo acrílico, e emenda num grito. Agora, querendo o mundo ou não, sabendo o mundo ou não, sua olorosa boceta estaria para sempre guardando o centro da cidade.<br />
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Com relaxada demora, os três chegam a uma praça próxima. A desertidão local lhes lembra que havia sido segunda-feira há pouco mais de 30 minutos. Pedro põe a culpa no horário, os amigos não entendem. Vencido o percurso, se sentem em obrigação patriótica de beber mais uma cerveja, e ao se sentarem num bar que já tinha organizadas as cadeiras de ponta-cabeça, o fazem com intensa sensação de merecimento. Antes de desembainharem os copos ao alto, no entanto, Pedro solicita uma pausa. Quando eu morava com a minha mãe, ela sempre me dizia que tudo o que eu tivesse que fazer pela rua, que fizesse até a meia-noite, isso é, se a gente tivesse falando de um dia da semana, pro caso de trabalhar no dia seguinte. Uma advertência pra não pirar o cabeção demais, sabe? Ela nunca me explicou muito bem o que ela realmente queria dizer com isso, mas hoje eu entendo. Eu acho que entendo. Pelo menos comigo é sempre assim. Acho que até dar meia-noite a gente tem uma chance, do que quer que seja, de chegar em casa, de beber uma na saída do trabalho sem muitos danos. O que eu quero dizer é que até a meia-noite ainda temos tempo. E é um tempo de qualquer coisa. Olha o formato desse horário. São quatro círculos. São quatro portas abertas. O que vem depois é mistério, ninguém sabe, acontece uma perturbação no próprio tempo. Depois disso é ladeira abaixo, a hora cresce sempre maior, depois disso é precipício. Guilherme olha curioso. Isidora gargalha. Isso é sério, Pedro? Não sei, mas acredito. Os três então levantam seus copos, e brindam.<br />
<br />Ana Líbia http://www.blogger.com/profile/08251435057520511338noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-2471188335449032060.post-11697117897672852642019-06-01T19:14:00.002-04:002019-06-02T07:24:05.470-04:00Amor-de-aquiEstou pensando em escrever um poema de amor profundo<br />
como tantos outros<br />
vou desembrulhando palavras<br />
cavuco o avesso<br />
monto o verso <br />
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Tateio com as aranhas do pensamento tuas hesitações de charles manson <br />
ali mansinhas <br />
no canto negro do olho <br />
no ponto cego do recorte desse frame pleno<br />
na sala de estar<br />
teu sorriso de monalisa a dois<br />
pesados quilômetros no mesmo sofá<br />
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Perscruto - só uma palavra <br />
tão feia para um ato tão ignóbil -<br />
Perscruto com ignóbeis pinças uma forma <br />
a forma<br />
de te fazer gritar <br />
de te expurgar a raiva <br />
mais me interessa a dor visível nessas horas<br />
que vem com água e dispensa <br />
a formalidade cordial das despedidas<br />
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(você sabe que sempre gostei das violências)<br />
<br />
problemas astrológicos <br />
o tempo, sempre Ele <br />
10 anos ou 6 meses e esta tarde<br />
é cedo ainda<br />
na vida gentil dos intervalos<br />
gratidão, diz a Internet <br />
em verdade o grande mantra <br />
que deveria forrar o chão da experiência<br />
nessa tarde com metálico gosto<br />
de ponto cirúrgico <br />
na qual o tempo se organiza <br />
com a mesma exatidão que nascem as estrelas<br />
<br />
Eu ainda penso em escrever um poema de amor sincero<br />
E despido de vaidade<br />
e tudo o que encontro no caminho<br />
são os escombros de expectativas mal plantadas <br />
Regadas com a água doce do desejo<br />
O desejo fino de inaugurar um mundo <br />
O desejo legítimo de inaugurar um mundo <br />
Vão saber os deuses <br />
E estetas da métrica <br />
Não é esse o amor?<br />
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Não é esse o amor que me aturdiu <br />
Que abriu no céu de novembro a luz <br />
bela e agressiva das tempestades?<br />
Não é esse o amor que enfeita esperas<br />
que não conhece oponente à altura?<br />
<br />
Eu pensei em escrever um poema de amor-de-aqui <br />
aqui é o lugar que conheço <br />
aqui pode ser profundo e sincero <br />
e talvez o tenha encontrado como encontrei<br />
tudo aquilo que não procurei<br />
são evoluídas as coisas que surgem sem propósito <br />
com a mesma exatidão que nascem as estrelas.<br />
<br />
<br />Ana Líbia http://www.blogger.com/profile/08251435057520511338noreply@blogger.com1