quarta-feira, 30 de outubro de 2024

"Viva os maluco"

Quando um dos meninos suspendia a bola na axila e as crianças paravam a partida de futebol na rua, era a hora do silêncio porque era a hora da passagem. Sua passagem. Certo: a rua não era delas, e quando passava alguém, precisavam interromper o jogo, o que não interrompia a algazarra, o zunido, a tagarelice; mas não quando ele passava. Era precisamente o desconcerto do silêncio que anunciava que ele vinha na outra ponta da rua, seu conhecido andar lento e pesado como se a demência fosse uma corrente invisível pendendo dos punhos moles continuados pelas mãos enormes em formato de garra, fruto de seus dedos sempre arcados, culpa de uma má-formação genética. Grandão era esbugalhado de corpo e impunha respeito sem abrir a boca, exceto pelos momentos em que pedia por cigarro a quem quer que passasse fumando perto dele. Ainda não havia nascido quem negasse. Apesar de sua mudez habitual e jeito manso, ninguém duvidaria que ele poderia esmagar um crânio com um braço só. Tinha até quem dissesse que ele já havia feito algo parecido, mas com cachorros, as únicas criaturas vivas que penetravam a sua imperturbável paz. O rumor se devia pelo seu destempero quando ouvia latido de cachorro, mas mesmo os cachorros de rua haviam aprendido a economizar seus instintos na presença dele. Certo é que onde sobra burburinho falta evidência, e Grandão nunca fora visto fazendo mal algum a qualquer animal ou pessoa. O que havia por trás daqueles olhos dispersos e graves era só mistério. Só imaginação. Era engraçado quando ele repuxava sua encardida bermuda listrada até a altura do estômago, dando a ele um aspecto de atração de circo e provocando uma gargalhada involuntária - mas por juízo, sempre contida - em quem cruzasse o seu caminho. Tudo ali era uma grande interrogação, mas do tipo que não detém muito. Se sabia que ele morava na rua, nos arredores do mercado do centro, mas não poderiam dizer quando havia chegado. Se sabia que ele não era dali, mas não poderiam dizer de onde. Se sabia que ele se irritava com cachorros, mas não poderiam dizer o porquê. Grandão era definido pelo temor que emanava de sua composição física notável, e justificado ou não, era impossível disfarçar que esse temor existia.

Nem todos eram como Grandão. Aliás, eram grandes as variações dos tipos. Alguns eram como o Homem da Cueca, que andava por ali também. Todos conheciam a história do Homem da Cueca. Enjeitado às portas da paróquia local, cresceu num abrigo para menores numa comunidade próxima a uma escola de samba. Tinha um parente, que todos pensavam tio, que às vezes o visitava, até que um dia o homem não voltou mais, nem nada se soube dele. Primeiro o Homem da Cueca se chamava Ronderson, mas lá pela adolescência deu pra perambular pela cidade apenas usando uma regata que lhe cobria apenas o tronco estranhamente desproporcional à bunda magra e às longas e finas pernas que o seguiam na vertical, e que ficavam à mostra, resultando no apelido pelo qual ficara conhecido. Uma doença rara e mal curada (diziam) ainda na infância, deformara seu rosto, o que o transformava numa alegoria viva, especialmente se se somasse a isso o inalterável sorriso de quem jamais experimentou, de maneira consciente, o escárnio social do qual era objeto. O Homem da Cueca era distraído por qualquer movimento diante dos olhos, e por isso, certa vez, sofrera um atropelamento que o deixara permanentemente manco. Ainda é possível vê-lo vagando por aí, os olhos vazios sobre o sorriso enigmático que não sorri sobre nada em especial.

Mas diferente do Homem da Cueca e de Grandão, criaturas silenciosas em seu passar, havia as que contrastavam pelo ruído. O que era o caso de Medusa. O segredo era um só: nunca, em hipótese alguma, fazer contato visual.

Como de costume, ninguém sabia de onde tinha surgido, mas deu pra circular pelas ruas no entorno da praça do skate há coisa de um ano, ou dois. Degon Barriga, um cachaceiro que vivia num bar por lá - e que só não era muito diferente deles por ter onde morar - logo chamou aquela mulher estranha e de cabelos sempre desalinhados de Medusa. E o apelido pegou rápido, até porque a pobre nem nome tinha, ou ninguém sabia, ou queria perguntar. Passar por ela e olhá-la nos olhos era considerar que um avanço era uma possibilidade. Uma vez atacou a filha do pastor Eudério, que se aproximou dela pra rezar pela sua alma, destruindo sua bíblia em mil pedaços e puxando seu cabelo. A garota não precisou gritar por socorro por muito tempo: os homens que estavam no bar e viram o ataque foram correndo apartar Medusa da menina que, assustada, presenciou, com pena - apesar de um ferimento que Medusa lhe causara à unha na cabeça - a surra que lhe deram os homens quando a cercaram. Assim, Medusa era geralmente vista de longe, e os pivetes mais ousados que lhe provocavam chamando-a pelo apelido ser serem vistos por ela, o faziam por trás de muros, árvores, carros, pilastras. Procurando a origem das vozes, ao virar-se de um lado para o outro, era como se Medusa estivesse lutando contra uma horda de fantasmas germinados na própria mente.

No que dependesse das pessoas curiosas e ordinárias daquele lugar, Medusa tinha até marido. Não era Grandão, nem era o Homem da Cueca, mas o último tipo que compunha aquela memorável tropa: Binha Caranguejo. 

Fabiano era seu nome, e isso era sabido porque, ao contrário dos demais, a família de Binha Caranguejo era conhecida por lá. Tinha 36 anos, e era o irmão mais novo de Roberto, o Betobatuca, que tinha um grupo de pagode e a fama de ser um cara violento, especialmente com as mulheres. Todo mundo sabia que Binha tinha sido, há muitos anos, vítima da violência fraterna, e que fora provavelmente por causa dela que tinha caído nas ruas. Quando adolescente, Fabiano começou a fumar maconha, aqui e ali, escondido, até ir perdendo a vergonha. Ciente disso, Roberto, após uma briga doméstica bem feia com o irmão por outro motivo, fez da maconha o estopim pra uma atitude extrema, e um dia, enquanto Fabiano dormia, foi surpreendido com um banho de óleo fervendo em sua cama. Nada aconteceu com Roberto, que ainda era menor de idade. Alguns anos depois, começou a tocar em grupos de pagode locais, tocava bem, ganhou certa fama, e a história acabou sendo esquecida. Já Fabiano ficou desfigurado após o ataque e, sem suporte familiar, acabou de vez nas ruas, desenvolvendo esquizofrenia e virando, então, Binha Caranguejo. Alvo de escárnio constante, tanto quanto Medusa, para Binha havia até uma música, que quando cantada, o enfurecia: "Eu vou tacar uma pedra/ e vou chamar o Cacau/ meu nome é Binha Caranguejo/ E eu não sou normal". Carlos Bigflipo, o Cacau dos versos cruéis, era a única pessoa que intercedia por Binha, um skatista que dele se apiedava e defendia quando as gozações começavam. Por ele, a seu modo, Binha manifestava afeição. Outra encarnação, no entanto, encabulava Binha, justamente a que o colocava como par romântico de Medusa. Sorrindo sem jeito e sem os dois dentes frontais, a impressão era de que ele identificava alguma espécie de elogio ali.

Binha morava em um barraco no fim da rua 8, atrás da igreja, que um dia, virou notícia do jornal do bairro por ter amanhecido incinerado com ele dentro. Todos os olhos se voltaram para Betobatuca, reacendendo o antigo desentendimento entre ele e o irmão, sendo logo desestimulados pelo fato do músico estar em turnê em outro estado com seu grupo de pagode. Betobatuca, aliás, só viria a saber do ocorrido com o irmão uma semana depois, e segundo comentários, não manifestou reação alguma. Apesar de chamado para depor, novamente nada lhe aconteceria, voltando a viver sua vida normalmente, e até aparecer em um programa de televisão. O fogo que consumiu o barraco gravou no muro uma sombra escura em indefinido formato de coisa ruim, e o crime contra aquela pobre criatura sucumbiria na memória popular não fosse uma pichação, feita com tinta branca, onde se lia "VIVA OS MALUCO", que apareceu por lá algum tempo depois.

Conspiração subterrânea

Nem havia desfeito o coque bem repuxado nas têmporas para a aula de balé das terças-feiras. Não estava acostumada àquele dia, nem ela nem ninguém, mas ou era isso ou ficariam sem aula indefinidamente. A professora da casa ainda estava em coma depois da queda do cavalo; a substituta havia sido chamada para compôr a companhia de dança da Deborah Colker duas semanas antes, e só tinha horário às terças. Três alunas cancelaram suas matrículas. Todo mundo negligencia o fato de que o cavalo ainda é um animal selvagem pela ausência de dentes afiados como os de um tubarão, por exemplo. Pobres cavalos e sua dentição pouco intimidadora; mas também pobre Cecília, a professora que apostou no cavalo errado, perdeu as férias e quase a vida. 'Fica bagunçada a cabeça de uma pessoa assim', Giovana reconstitui pra si a imagem do acidente num segundo, e aturdida por sua força, treme a cabeça para os lados, tentativa de limpar seu subconsciente da cena. Ainda de collant, se despede e sai.

Nuno acorda com os feixes invasivos do sol disputando sua pele debaixo da marquise. É mais um dia, ele pensa, e seu estômago começa a trabalhar nessa intenção. Tá calor, ele sente o próprio cheiro. Precisa ir, precisa andar, hoje tem umas pendências pra resolver e na verdade não sabe como. Tudo o que ele pensa é de que maneira pode arrumar o que comer naquele primeiro momento. É mais um dia, Nuno odeia pedir e odeia roubar, mas realmente não tem ideia de como comer alguma coisa possível sem partir de uma das duas opções. É enxotado com os olhos de duas padarias nas quais tenta abordagem, e mais tarde, com recusas formalmente verbais. O primeiro, um branco com cara de otário falando inglês. A segunda, uma patricinha dessas de cabelo loiro e pele queimada, com muitas tatuagens, de óculos escuro, falando no celular. 'Esse celular salvaria pelo menos um mês de comida e parada', ele pensou. No momento em que ela deixou a padaria, rodou na Cinelândia que nem viu.

Quando saiu no Daily Mirror que uma espécie de anfíbio havia sido descoberta por uma equipe de pesquisadores ingleses baseada no Pará, Gary já sabia, de ouvir por alto, que teria que estar lá. Não só porque dois dos pesquisadores eram seus amigos, mas porque seria a oportunidade perfeita para, finalmente, visitar o Brasil. Se a coisa toda já tinha ido pro Daily Mirror, já tava rodando o mundo e cedo ou tarde toda a área estaria infestada de mais pesquisadores - o que, por si só, representaria um risco à própria espécie recém-descoberta. O anonimato é a sorte curta das espécies ainda não-catalogadas. Só os peixes abissais dentro da escuridão eterna e os microorganismos nos cumes dos montes gelados têm alguma possibilidade de sobrevivência. Contudo, o caso daquela espécie era diferente, dividindo opiniões entre os pesquisadores. Uma coisa era certa: não se tratava de uma espécie antiga, mas muito recente, estranhamente recente, de modo que parte deles a qualificaram como a primeira espécie do Antropoceno. Um apêndice longo e rugoso nas costas do pequeno anfíbio, assim como o aumento de suas patas, seria uma degeneração na constituição da espécie, e mesmo seu sistema respiratório não era completamente semelhante ao dos anfíbios regulares, não sendo uma evolução, mas o que corroborava, de fato, o surgimento de uma nova espécie. Tudo indicava que a nova espécie era fruto direto da mudança do ecossistema local devido à ação do homem, especialmente durante as prospecções mineratórias nos anos 80. Aquilo iria suscitar uma infinidade de discussões em todas as áreas. Um reboliço científico que Gary precisava ver de perto.

Os padrões da calçada orientavam os passos leves e bem-coordenados de Giovana, que, por algum momento mais demorado de atenção, poderia ser vista dançando discretamente sobre eles. O balé entrara na sua vida aos cinco anos e lhe deixara memória, postura e joanetes. Era boa o suficiente para vislumbrar uma carreira como professora. Mas preferia a crueza de sua dança, e até os eventuais erros de suas passadas, a instruir alguém. Uma música nos seus fones de ouvido dizia, noutra língua, que tinha muitos problemas na sua cabeça, enquanto conferia no celular o agendamento da terapia, também bagunçado pelo novo horário do balé. Precisava comprar ração pro gato, porque o gato comia melhor que ela. Precisava terminar de escrever dois artigos e precisava terminar um namoro. Precisava de muitas coisas enquanto andava pela cidade enganando a própria pressa, com os olhos fixos nos padrões da calçada e suas pedras portuguesas.

O conselho dos pesquisadores iria se reunir no Rio de Janeiro ao final da primeira parte das pesquisas para discutir a coleta dos resultados parciais. Era essa a informação que Gary havia recebido por e-mail de Timothy, que já estava no Pará. Por hora iria observar o desenrolar dos acontecimentos de casa, mas não gostaria de chegar lá quando toda a junta de cientistas já tivesse reclamado o local pra si, mas não gostaria de ter que adiantar tanto sua ida. Gostava de pensar que a falta de adaptação dos seus corpos estrangeiros naquela terra seria difícil, o que os expulsaria antes, por enfado, e achava engraçado, até. Um monte de cientistas juntos tem sempre muita razão. Gary era cientista também, e sabia disso. Mas preferia o riso, apesar da ansiedade. Também tinha suas questões. O que seria quando chegasse por lá, e desse com aquele campo montado de pesquisadores de todos os lugares? Pensava na espécie nova como um novo elo, not a missing one, but a found. 

Ondas brancas e ensebadas na fronha do travesseiro, cabelos em todas as direções. O peito palpitando forte num trote reemulando o sonho, era Giovana despertando do pesadelo que tivera com uma tropa de cavalos varando violentamente um campo aberto, enquanto ela dançava, só, sobre uma pequena plataforma de madeira. Trouxe a cabeça a noventa graus do corpo, num impulso rápido, esparramando as pernas na outra ponta do sofá em que cochilava. Virou devagar o pescoço de um lado, do outro não conseguiu, torcicolo. Revirou os olhos de incômodo, levantou; no espelho do banheiro, discretas olheiras sobre sua pele negra.

Com esse calor do caralho vai cair mó torozão, Nuno se vira para Ney, um amigo, e diz com a voz preocupada. Tu já sabe pra onde vai se arranjar, Ney? Ney dizia que havia um abrigo perto da Praça Tiradentes pra quando chovesse assim, da forma que se estava ameaçando chover. Nuno ficou pensando na chuva antes dela cair, em como o céu sempre parecia tão escuro em plena luz do dia momentos antes de um temporal, em como sempre pensava na chuva como alguma coisa que aliviava o céu engasgado. Ficava pensando se existia algum deus de verdade se escondendo atrás das nuvens, até das mais escuras. Tu acredita em deus, Ney? Ney acredita em deus ao limite de duvidar da sanidade do amigo pela pergunta em si. Já Nuno não tem tanta certeza. Quando era criança havia uma avó que fazia bolo quentinho, quando dava, pra comer com sessão da tarde. Aquilo era deus. Nuno sabia de pouca coisa, mas entendia muitas, e das poucas coisas que sabia era que, às vezes, entender era mais importante. Se não tivesse aprendido isso, a essa altura já seria um homem morto, porque a rua cobra dos desatentos que aprendam cem vezes mais rápido que as pessoas que têm um teto. Todo esse arranjo doido de pensamentos se desfez ao toque grosso e frio do primeiro pingo de chuva, que anunciava que teriam de procurar logo um lugar pra ficar.

quinta-feira, 15 de agosto de 2024

É velho - e é isso o que fez meu!

Que se esclareça que estimação não é apenas aquela palavra que usamos quando nos referimos aos animais domésticos. Tenho, por exemplo, um short jeans da minha mais antiga e completa estimação, cujo preço não faço ideia (esqueci ao longo desses mais de 15 anos de convivência), mas cujo valor foi se agregando justamente com o passar do tempo. Não é um short em nada especial: como dito, é apenas um short jeans curto; nem é de nenhuma grande grife, mas de uma loja de departamentos de qualidade duvidosa. Já passou por pelo menos um ajuste na cintura, e graças à minha estimação por ele e à minha capacidade de equilibrar o peso, continua a me vestir até o presente dia. Ao longo de nossa trajetória, o shortinho encontrou detratores: um ex-namorado ciumento já ameaçou nossa relação (e esta pode ser uma pista sobre seu status de ex, posto que o short, este sim, continua em minha vida); e também minha mãe, que não acha seu comprimento apropriado (o que é ótimo, afinal, assim ela não pode usá-lo). E a quantos lugares fui, quantas pessoas conheci, quantas fotos já tirei com esse short específico. Sim, houve até um outro, que em anos mais recentes ameaçou seu posto, mas em uma certa situação foi avariado de maneira aparentemente irreversível. O que conheço é a permanência do shortinho jeans sobre as circunstâncias, o que por si só já lhe insufla certo ânimo fantástico, um ar aventureiro. 

Me voltei para o tal short porque andei pensando no conforto que só as peças que já conhecem tão bem o formato do nosso corpo nos dão. Moro no Rio de Janeiro, e por aqui, mesmo o mais ameno dos invernos costuma fazer o carioca bater o queixo pela falta de costume, e o que pode haver de melhor, nessa ocasião, que aquele velho moletom no armário para ser nosso campeão nessa guerra térmica? Só uma peça que já conhece os segredos das nossas dobras, pele e caimento nos defende adequadamente não só nessa, mas também em situações que requerem coragem para encarar o não navegado mar cheio de criaturas extraordinárias de um primeiro encontro, por exemplo. Ousadia e destemor são necessários se nos propomos a desbravar um caminho diferente, mas sem segurança e um mínimo de conforto e provisão, é certo que não se vai muito longe. 

Essa sequer é uma percepção isolada, ou mesmo inovadora. Há alguns bons séculos, o maior dos frugais já dizia que reis e rainhas que usavam uma roupa apenas uma vez, apesar de confeccionadas pelos mais talentosos costureiros, não poderiam experimentar o conforto de uma peça que realmente aderia, por uso, às linhas do corpo. Que as nossas roupas do dia-a-dia se assimilam a nós, assim recebendo a marca de quem as usa, até que decidamos, um belo dia, pô-las de lado. O pensador em questão ainda recomendava cuidado com as empreitadas que exigiam roupas novas ao invés de um novo Eu para os ditos eventos. Imagina que revolucionário se fôssemos para um encontro com um possível interesse afetivo não com uma roupa nova, mas com uma cabeça nova? Esse é o conselho, válido até hoje, de ninguém menos que o velho Thoreau, que valorizava mais o simbólico de um retalho em uma roupa velha à falta de personalidade em uma roupa nova. Quantos vestidos você já deixou de usar por pequenos furinhos aqui ou ali; quantas peças de roupa você já aposentou porque a vitrine de hoje insiste em dizer que elas ficaram velhas? Se pensarmos nisso, entra um detalhe importante. 

 A frugalidade thoreauriana ainda, e principalmente hoje, tem muito a nos ensinar sobre consumo, acabando por se revelar uma resposta involuntariamente anticapitalista. O que pode ser mais ameaçador ao mercado consumidor, de qualquer segmento, que um cliente satisfeito? Aquele que, por entender que tem o que precisa, não é atingido pela sedução barata do supérfluo? Assim colocada, apesar de parecer um tanto lógica e algo simplista, é evidente que esta não é a solução mais simples de pôr em prática, justamente por demandar uma educação realmente filosófica em relação à atitude humana, sua postura e seu status em sociedade. Não é à toa que, enquanto discurso, o upcycling tem enorme popularidade na comunidade da moda, e ainda mais surpreendentemente nos círculos de brechós por parecer uma alternativa moderna e descolada, mas quando se trata de vivê-lo filosoficamente, tem-se aí um esvaziamento total justamente porque sua implicação direta é o estacionamento da esteira capital que movimenta estes mercados. O hoje maior fast fashion online do mundo, a Shein, juntamente com a Temu, tem seu consumo baseado, sobretudo, no tédio - o que, por si só, nos devolve à uma perspectiva que deveria olhar mais filosoficamente para este tipo de consumo. Tem quem evite olhar para o político nas coisas, mas imagine só se a gente considerasse, aqui, a memorabilia soviética, não é? 

Infelizmente - ou não, também - mais razão tem o Marcelo Jeneci, quando diz que a gente é feito pra acabar, e que isso nunca vai ter fim. Se isso é verdade sobre o humano e sua formidável capacidade de criar, que dirá do nosso vestuário. Meu short jeans, por exemplo, tem um franco rasgo na nádega esquerda, e um que está se formando na direita, ambos por uso. Me deixa um pouco triste que sua vida útil esteja possivelmente chegando ao fim, mas você é capaz de se lembrar da sensação justa de conclusão de uma peça de roupa que você precisa jogar fora por ter cumprido totalmente seu tempo de função? Ou mais comum tem sido observar, penduradas em seus cabides, roupas sensacionais nunca usadas envelhecendo sem uso? Quanto a mim, escolho a finitude dessa peça - na ilimitada janela de peripécias que já me deu.  

domingo, 17 de setembro de 2023

O coiote e o carcará no meio do Sertão

O bom de se ter um blog como se ainda se estivesse em 2002 é que aqui dá pra ser cringe sem culpa. E por isso me sinto autorizada a falar das minhas cringices.



Coisa interessante é observar o que o tempo faz com a gente. Às vezes nem tanto com o nosso corpo, mas definitivamente o que faz com as nossas percepções de mundo.

Desde a adolescência eu desenvolvi uma relação muito estreita com língua inglesa, de modo que cedo entendi que trabalharia com ela. Não deu outra e me tornei professora. Mas preciso ir um grau além nisso. 

Não conheço nenhum professor que não tenha uma relação de vida com aquilo que ensine, até porque não tê-la faria da sua profissão uma prática vazia. Quando a gente fala de um professor de línguas, então, acredito que todos pensem, em alguma medida, sobre cultura e território. Pois bem. 

Apesar de apaixonada pela língua inglesa, sempre cultivei um profundo sentimento anti-imperialista porque: sim, né? É tosco ver caboclos querendo ser ingleses; mas é um embevecimento, sim, vê-los empoderando-se não apenas ao aprender a língua do império, mas instrumentalizando-a para criar respostas à altura que combatam sua influência. Só que não sejamos ingênuos: nem a consciência dessa apropriação nos blinda dessa influência completamente.

Eu, por exemplo, aprendi a gostar muito de inglês vendo filme, e filme americano, claro. E eu não sei quantos filmes americanos eu vi nessa vida que não trouxessem imagens do que acho que existe de mais bonito nos Estados Unidos: suas belezas naturais. Convenhamos: nesses termos, esse é um país riquíssimo. Mas (e com dificuldade de afirmar isso) talvez nada me atraia mais que a arquitetura milenar dos desertos americanos. Tiveram responsabilidade os beatniks? Tiveram. Teve responsabilidade o cinema? Teve. Teve responsabilidade a própria história de disputa desse território? Teve. Enfim, um caldeirão de referências moldou o meu olhar em relação a esses desertos, que tenho até hoje muita vontade de conhecer, com uma motivação bem próxima do que seria uma contemplação espiritual sobre eles.

Mas, ei. Falei ali em "caldeirão", né? Não foi à toa.

Ontem estava ouvindo uma música que gosto muito e já ouvi várias vezes, mas que, por razões que já descrevo, me bateu diferente. Seu nome é Caldeirão dos Mitos, e não consigo pensar em ninguém melhor que Elba Ramalho pra interpretá-la, mas a composição ficou ao encargo de Braulio Tavares - que até o momento da produção desse texto, eu não tinha conhecimento algum a respeito e foi ótimo dar uma pesquisada pra saber quem é (recomendo que vocês façam o mesmo). Mas voltando, a Caldeirão dos Mitos de Elba e Braulio ontem me bateu diferente. E esse impacto só pôde acontecer depois de muita caminhada pelas veredas infinitas da vida que só existem pra provar pra gente que não existe caminho perdido.

Estou lendo A Guerra do Fim do Mundo, do peruano Mário Vargas Llosa. Comprei esse livro por acaso, em um sebo, porque não tinha, até então, lido nada dele e essa era uma pendência pessoal. Poderia ser qualquer outro livro, mas calhou de ser esse, e não poderia ter me atraído mais o seu assunto: a ainda pouco compreendida, principalmente no Sudeste, Guerra de Canudos. 

Só que a Canudos de Vargas Llosa conta com vários personagens ficcionais, o que (eu acho) deixa a História de Canudos ainda maior em suas contradições - como acontece em todas as revoluções.

E é nesse cenário que eu começo a pensar em coisas. Coisas que a canção de Braulio Tavares saúda na voz acesa da Elba.

Um dos livros que mudou minha vida foi Grande Sertão: Veredas. Ao contrário do romance de Vargas Llosa, esse é 100% ficcional. Mas à semelhança daquele, compartilha a paisagem e o modo sertanejo em seus personagens. Enquanto leio A Guerra do Fim do Mundo, aliás, frequentemente imagino Riobaldo dando em Canudos por acaso, sentando-se quieto num canto, ouvindo a palavra do Conselheiro, tendo uma cumbuca d'água servida por Maria Quadrado e partindo em seguida pelo inexpugnável Sertão. E o Sertão, como diria o mineiro, é o mundo. Só que o mundo, principalmente o mundo sertanejo, é fundado no mistério. 

Por isso que abri esse texto notando o quanto é curioso ver o que o efeito do tempo sobre as nossas percepções de mundo.

Há uns 10 anos eu não imaginaria que seria capaz de relacionar os sertões americanos - não é o que são? - com os sertões brasileiros. E ao pensar nessa comparação, cuidadosamente considerando tudo o que me atrai nos sertões de lá, me dou conta que o nosso em nada deve em potencial histórico e por isso mesmo fantástico - ou como melhor diria Braulio Tavares, "insólito". Lá eles têm os rituais indígenas com peyote, e aqui não temos a ayahuasca? Lá eles têm os canyons, e aqui não temos os sambaquis? Lá eles têm os cowboys, e aqui nós não temos os jagunços? Se lá moram os últimos tricksters americanos, os coiotes, não encontraríamos aqui uma correspondência na implacabilidade do condor do sertão, o carcará? ambos, inclusive, potenciais representantes do Outro Mundo em sua sentinela?

O que se vai buscar no Sertão que tem o descaminho como princípio? O misticismo que emprenha as histórias sobre estes espaços se inclina sobre o próprio inconsciente desejo humano por isolamento, silêncio e se arrisco um palpite mais fundo, transcendência. Em um ensaio poderoso, o crítico literário William Deresiewicz faz um resgate ao fundamento bíblico de que não seria possível ao homem ouvir a voz divina na multidão, recorrendo então, à fugere urbem. Mas nesse contexto, cabe lembrar que foi no deserto que, segundo as escrituras, Jesus teria sido tentado pelo Diabo. Sendo assim, seria o Sertão uma espécie de portal por onde o Invisível entra e verbaliza, ou mesmo o contrário, entrando o homem no terreno do Invisível?

O pacto de silêncio feito por sertanejos e cowboys em relação aos seus territórios parece justamente ser o terreno fértil onde me sinto encorajada a plantar minhas conjecturas. E se antes eu pensava que a resposta pudesse estar em Nevada ou Utah, hoje acredito ser possível encontrá-la mesmo é na Bahia ou em Caruaru.


terça-feira, 11 de julho de 2023

O vácuo da imagem


Death of an Image n.5, Andrea Galvani, 2006

como a geração brasileira que adolesceu na primeira década dos anos 2000 pode ter sido a última a não ter imagens de si própria neste intervalo - e de que maneira isso permite sua reinvenção  


Existe um intervalo entre o fim do analógico e o início do digital que foi percebido de maneira peculiar por uma classe média que não podia fazer uma viagem por ano para a Disney. Essa classe média, valores inflacionários corrigidos, nominalmente a classe C, que se espremia entre pagar a mensalidade do colégio particular (isso quando, muitas vezes, não inseria seus filhos no ensino público), água, luz, bens de consumo e pôr a comida na mesa era aquela que, diante dessa transição tecnológica, não tinha dinheiro sobressalente  para custear os primeiros celulares com uma câmera - e mesmo as câmeras de qualidade só surgiriam no fim da primeira década dos anos 2000, quando acontece a ascensão do IPhone e com ela a implementação definitiva do sistema Android, permanentemente desbancando o império escandinavo-gêrmanico da tríade Sony Ericsson-Nokia-Siemens, até hoje lembradas pela durabilidade de seus aparelhos de então. Neste período, correspondente aos dez primeiros anos da década de 2000, quem não podia Nova Iorque ia de Madureira: era, para esta classe, a era da câmera digital (que já era popular entre as classes A e B nos últimos anos da década de 90). E aqui mora a peculiaridade.

Para a geração brasileira da classe C que entrou na puberdade no início dos anos 2000, era comum um certo bordão num programa de TV que dizia "Agora vamos falar de coisa boa, vamos falar de TekPix!". Teria sido o Juarez da TekPix, anunciante do produto, o primeiro meme brasileiro? É possível. TV FAMA, o programa em questão, numa era pré-smartphones e pré-internet como conhecemos, gozava da mesma popularidade que outros contemporâneos, encabeçados por Pânico na TV e seguidos por demais programas de auditório distribuídos por canais abertos. Depois das novelas, estes eram os programas mais populares, mas se nas novelas a merchandising é, até hoje, relativamente velada, nesses programas ela era estridente. Ocorre que o anúncio desse tipo de câmera, feito em programas com uma vultuosa audiência, surtia um interessante efeito de vendas. Se a propaganda cria o desejo, e se em cada época existe um bem de consumo supérfluo que captura o zeitgeist (como foi o Discman nos anos 80, seguido pelo Bip nos anos 90), o desejo do trabalhador brasileiro em 2002 era adquirir uma TekPix. A essa altura, as câmeras analógicas mais práticas (aquelas, que o meu pai e o seu tinham, não a Leica do filho do patrão deles) já estavam saindo de circulação. 

Estabelecidos os supracitados critérios de classe, quem nasceu no fim dos anos 80 teve, durante a infância, certa intimidade com o analógico. É claro: a relação das pessoas com câmeras varia bastante, mas isso não importa muito durante a infância, pois seus primeiros detentores de direitos de imagem são os pais. Para muitos destes, que tinham crianças em casa nos anos 90, as fotos poderiam ser abundantes. E tome fotos em aniversários, em viagens pro sítio, pra casa de praia (em Iguaba), no trabalho da mamãe, no passeio da escola, do cachorro. Toda família certamente continha ao menos um membro que tinha alguma relação com o ato do registro, o que, desde as pinturas rupestres, é a atividade mais genuinamente humana da qual se tem notícia. Foi o último momento em que reinou absoluta a Kodak, subestimando a ameaça que já surgia com o desenvolvimento das primeiras câmeras digitais, ainda na década de 90. Em seu conforto e garantia monárquicos, não anteviu a própria queda.

Mas de que maneira isso afeta a adolescência do grupo em questão? Voltemos ao início do texto.

A transição dita provoca uma vacuidade de registros que, em 2023, já não é possível, salvos estejam os eremitas digitais. Se aqueles que foram adolescentes nos anos 70 possivelmente tiveram sua infância e adolescência fotografadas em câmeras analógicas (sempre sendo considerado aqui um parêntese socio-econômico), os nascidos em 1988, a exemplo de quem vos escreve, experimentaram uma suspensão temporal de, aproximadamente, 7 anos no mínimo, a 10 anos no máximo, que foi o tempo que durou essa transição. É improvável que estejam preservados, por exemplo, registros feitos, em 2005, por um Motorola V3, em meio a tanto lixo digital. Nesse período, este era considerado um super-celular, e tremendo sonho de consumo para a classe C. Quem não poderia comprar um, apelava para TekPixes ou similares (parceladas em até 12x sem juros). 

A isso, some-se a questão da funcionalidade e portabilidade. Em 2023, já não há mais quem diga que "celular é pra falar", por menos íntimo que seja de redes sociais ou mesmo que se abstenha delas por completo. A menos que você fosse um fotógrafo (ou aspirante a um), não seria muito comum carregar uma câmera digital na bolsa - principalmente se você fosse um adolescente. Desse modo, a câmera digital continuava com status de pequeno luxo, sendo reservada às ocasiões pontuais já comentadas anteriormente. Além disso, havia certo trabalho em transferir as fotos de uma câmera digital para um computador, para que pudessem ser visualizadas em uma tela maior, uma vez que revelá-las não seria a ideia - e mesmo falar em "revelação", aqui, sequer faz sentido, pois este é um termo intimamente ligado à mecânica do aparelho analógico. A ideia do digital era sua conexão com um computador pessoal, necessariamente. Retomando o recorte socio-econômico aqui feito, não era toda família da classe C que tinha um em casa há vinte anos atrás. Havia, ainda, o risco de perda: câmeras digitais poderiam ser perdidas. Uma coisa era perder uma câmera analógica que já teria seu filme revelado; a outra era perder uma com todas as fotos dentro. Tudo isto posto, calcule: quão seguras estavam as fotos desta época? Abra o baú das suas fotos físicas. Quantas fotos digitais deste período você tem? Os primeiros celulares com câmera miraram justamente esta lacuna, e como se vê, encontraram aí um nicho tecnológico sem precedentes econômicos.

Mas com o desenvolvimento deste nicho surgem problemas que não poderiam sequer ser calculados.

Não há dúvida que o suicídio sempre tenha sido uma constante na história da humanidade, mas o surgimento das redes sociais cria uma relação entre ele e o cyberbullying, sendo o primeiro caso documentado em 2006, quando do suicídio da jovem americana Megan Meier, aos 13 anos, vítima de uma difamação que tomou proporções trágicas. Deste momento até aqui, há um crescimento exponencial de suicídios que têm alguma origem no cyberbullying. A geração Z é a maior vítima, justamente por ser aquela conhecida como nativa digital. Sua adolescência se dá a partir da primeira década dos anos 2000, pouco mais de dez anos atrás, momento em que a internet já está assentada como conhecemos. Por mais nativos digitais que sejam, falta aos membros dessa geração o desenvolvimento da sensibilidade para lidar com aquilo que, antes, se restringia ao tempo e ao espaço da escola, e que assim sendo, permitia rotas de fuga. Em lugar desse desenvolvimento, o que tem-se é uma supressão violenta, que reveste esses adolescentes de uma casca emocional frágil que, quando se fratura, tem potencial arrasador, quer para o ofendido, quer para os ofensores. O aumento dos ataques em massa em escolas também pode ser observado como um desdobramento desse fenômeno. Se antes você tinha, ao menos, o direito a um mano-a-mano na saída da escola (e não que isso tenha acabado), hoje o tipo de vingança mais comum é a exposição indevida de alguma foto ou vídeo conseguidos ilicitamente e replicados a perder de alcance. O poder da imagem é implacável. E a internet não esquece.

É muito provável que a geração nascida no fim dos 80 seja a última com direito real ao esquecimento do período que costuma ser o mais problemático para todo ser humano. Geralmente é na adolescência que surge a vergonha, a sensação de ser ridículo por alguma coisa, a timidez e tudo o mais que caracteriza esta fase. Se uma imagem vale mais do que mil palavras, as fotos da adolescência de alguém podem ter o poder de cristalizar todo esse momento, reduzindo o sujeito a uma imagem estereotipada que pode ser simplesmente passageira. Experimente contar quantos artistas mirins seguiram na indústria e estabeleceram carreiras sólidas crescendo diante das câmeras. Entre outros fatores, é mais do que comum a constatação de que muitos sucumbiram à pressão das expectativas criadas sobre eles, voltando para o anonimato no melhor dos casos. Em um ensaio revelador de 2019, a escritora Nausicaa Renner reflete sobre a premissa contida no livro de Kate Eichhorn, O Fim do Esquecimento: Crescendo nas Redes Sociais, de 2015. Neste, a autora defende que a facilidade com a qual crianças hoje geram e administram a própria imagem no mundo virtual pode prejudicar sua capacidade de filtrar as memórias que realmente desejem reter, e que isso viria a impedi-las de reinventarem-se ao longo da vida. 

Renner menciona que, segundo Eichhorn, todos se beneficiam da experimentação na adolescência. Em um dos pontos centrais de seu ensaio, ela chama atenção para o que postulou o psicanalista Erik Erikson. Ele acredita que, durante este período, nós vivemos no que ele intitulou de "moratória psicossocial", um estágio no qual oscilamos entre "a moralidade aprendida pela criança e a ética a ser desenvolvida pelo adulto". A moratória é um período de tentativa e erro em que a sociedade deixa livres os adolescentes, a quem permite correr riscos sem o medo das consequências, na esperança de que, agindo assim, eles irão construir o núcleo de sua personalidade - um senso pessoal do que dá sentido à vida. A internet interrompe a privacidade dessa era, com a tendência de escalar pequenos deslizes a erros monumentais que constarão em uma espécie de ficha permanente. Se delimitarmos a questão por gênero, as coisas podem tomar proporções dantescas. Por exemplo, na minha adolescência tive uma amiga que namorou com um rapaz durante algum tempo. O namoro terminou quando ele gravou e divulgou um vídeo íntimo dos dois na internet. Requintando a falta de caráter, foi capaz de gravar um DVD e vendê-lo no camelódromo no centro da cidade. A menina deixou a escola e, no boom do surgimento das primeiras redes sociais, como Orkut e Facebook, ela nunca fez um perfil pra si, tamanha foi a repercussão do caso. Havia se tornado um fantasma de si mesma. Era o primeiro revenge porn do qual eu tinha notícia. Desabrochando em sua vida sexual, ficara marcada definitivamente. Por quanto tempo não terá carregado esse trauma para outras relações? De que maneira o crime que foi cometido contra ela não tornou-se a imagem mais forte de sua adolescência, até para si própria? Após algum tempo mudou-se, e nunca mais tive notícias dela. Como dito, a internet não esquece.

O vácuo da imagem sentido pelos que podem ser chamados de late millenials, ou simplesmente aqueles nascidos no final da década de 80, permite a eles uma melhor capacidade de seleção da memória, o que faz com que valorizem as experiências boas em detrimento das ruins, de modo que essa agência crie uma personalidade menos suscetível a provocações e ao bullying feitos internet adentro. Quem aprendeu a se defender na vida real e cresceu tendo sua privacidade relativamente preservada tem mais chances de sobreviver nesta espinhosa selva de informação. Assim sendo, será mais fácil lembrar de como o Luizinho ainda tinha cabelo naquele passeio para Petrópolis em 2002 e das risadas naquele dia, ou mesmo recriar, mentalmente, um primeiro beijo que nunca aconteceu enquanto o ônibus voltava da serra. Já nos dizia Waly Salomão: a memória é uma ilha de edição. A magia que amplia a criatividade humana acontece no ato de recontação - uma sorte que, depois da exatidão inflexível do Google Photos, pode estar perdendo o seu encanto.