segunda-feira, 27 de setembro de 2010

Grain of salt

Eram felizes em sua pequena bolha de sorrisos. Estavam confortáveis quando se entreolhavam e conseguiam ver, além do seu amor refletido na córnea do outro, o amor que transbordava de dentro do olhar alheio. A rotina nunca havia sido tão deliciosa: só o fato de estarem juntos seria o bastante para um dia nada menos que fantástico; seria o equivalente àlguma viagem para o lugar que eles tão bem já conheciam: a bolha de sorrisos fáceis. Ele era tão atencioso; ela era tão compreensiva, e quem quer que os fitasse de longe poderia facilmente imprimí-los num filme tão à Doris Day. Talvez tenha sido isso.
 Um dia ele acordou com dúvidas. Perguntou a ela coisas que ela havia dito no dia anterior, num descuido de atenção; algo que disse na infeliz tentativa de soterrar uma lacuna em uma frase. Ela esclareceu, nada passou de uma colocação mal feita e sem propósito, e de volta à bolha de sorrisos. Mais tarde, ela sentiu a ponta traiçoeira do ciúme. A ponta que não dilacera e nem queima, mas cujo incomodar lento o inconsciente perfura e se espraia pelo sangue, feito um maldito câncer.
 Viu, numa gaveta onde velhas palavras inofensivamente dormiam, um pretexto estúpido para que a dúvida - agora, sua - a invadisse sem esforço. Conforme revirava a gaveta, revisionava o que sentia. Leu sobre felicitações dos amigos dele sobre um noivado proposto antes que ela entrasse na vida dele, antes, muito antes, quando ele tinha outra vida e uma outra moça. Pondo a confiança à prova, vasculhava incessante, como quem deseja que a mente, de tão cega, comece a ver o que não há. E afundando-se naqueles papéis avulsos, contestou seu amor. Fez a indecência de contestá-lo, apenas por experimentar na língua fria a onda nauseante e amarga do ciúme, e pior: um ciúme do passado; do que não volta. Um ciúme que ela estava exorcizando, com esses fantasmas irrequietos que nascem nas paredes da consciência que não está tranquila, afinal. Ciúme. Do que ficou.
 Ela então fechou a gaveta, mas acabou trancando o pé do lado de dentro. Amava-o demais, e aquelas considerações em nada abalariam o caminho que eles dois estavam trilhando juntos. Ficou alguns momentos pensando sobre o que havia feito, devassando, assim, a intimidade daquele que amava. E não sentiu culpa; só havia sido tomada de um medo fútil e efêmero que quiçá desaparecesse com a voz dele dizendo para ela exatamente o que desejava ouvir. Passou, está no passado. Não há motivo pra se preocupar. E então encontraria novamente o ponto por onde havia se enviesado nessa trama escura de fotos, de cartas, de detalhes cujo tempo, para o bem ou para o mal, havia conservado nessa gaveta de Pandora que sua curiosidade a levou a investigar.
 Voltou à bolha de sorrisos com o calcanhar ferido.