sábado, 27 de agosto de 2011

Esfacelamento

Passos. Lentos. A grande entrada para a Casa dos Mortos parece estar sempre aberta, como uma grande boca, numa ironia muito cruel e fina de que, em vida, só a morte é eminente. E democrática.
 Por todo canto, colunas brancas de um mármore velho e cansado. Logo à direita, uma placa onde se lê "embelezamentos, jazigos, promoções". A morte é mesmo um mercado rentável. Muito rentável. Funcionários batem um papo animado sobre o jogo do flamengo da noite anterior, porque o mengão, além de imbatível, é o outro feijão com arroz dos brasileiros. Também comentam sobre a vontade de sair pra namorar, porque é sexta-feira. Esperam o almoço.
Tédio por toda parte, especialmente acentuado pelas colunas brancas daquele mármore triste. Uma senhora, uns quarenta anos e um grande sinal ovalado na testa, vende biscoitos de isopôr amarelo que dão câncer e enganam a fome. Um vira-lata late. Nada digno de nota naquele dia. Tudo o que havia nas pequenas capelas era o cheiro discreto dos que passaram por elas e cascatas curiosas de cera, com uma grande variedade de formatos. Umas bem esdrúxulas. Uma outra parecia, com um pouco de imaginação ou fé, ter o rosto de uma santa sem nome.
Escadas. E uma rápida vista detecta um panorama singular de gavetas funerárias, marcadas com números e letras, tão impessoais. Em algumas, está grafado "saudades", com caligrafia mista de letras de imprensa e manuscritas; e em boa parte das demais gavetas estão depositadas flores desbotadas e sujas.
Passos. As lápides chamam atenção pela grande quantidade de fotos e datas, mas não pelas mensagens de despedida, tão impessoais quanto as gavetas funerárias. Maria Alberta Ramos Silva, 28 de abril de 1953 a 11 de outubro de 2005. Eu arriscaria que um câncer levara essa mulher. João Firmino, 12 de janeiro de 1887 a 20 de setembro de 1985. Um negro retinto, jeitão de recém-alforriado, deveria fumar uns cachimbos e ter visto tanta coisa. Morrera de velho, sem hesitação nem dor. Bruno Fernandes Lopes, 15 de julho de 1998 a 03 de maio de 2000. Que triste enterrar um bebê. Ou Andréia Santana Neves, 27 de julho de 1970 a 27 de julho de 1990. Datas redondas.
 Muitos têm medo de caminhar entre as catatumbas. É o peso das crendices. Mulher grávida ou menstruada não pode ir a funerais. Ao chegar de um, deixar os sapatos na porta e colocar toda a roupa de molho em água com sal. Não levar bebês.
Tais lendas não se dão à toa. O mundo que não vemos certamente desperta a curiosidade, e não há incréu ou ateu que não creia, por mais que o diga, pelo fato de ser humano. Humanidade pressupõe dúvida, dúvida pressupõe humanidade.
Há uma beleza estranha pelo lugar. Beleza inusitada, com uma sensação de não-pertencimento. Mas está ali. Mora na revoada de passarinhos e seu canto carpideiro sobre os que apodrecem, no coveiro que só enxerga de um olho e que - fruto de uma herança comportamental medrosa quanto às assimetrias humanas - parece a própria morte. Nas coroas prontas e um tanto cafonas de perfume enjoativo. Mora até nas colunas brancas de mármore triste, que inutilmente, também esperam pela hora da partida.
 Nem aos cemitérios escapa impetuosa poesia.