segunda-feira, 14 de fevereiro de 2022

Insólita captura

 O primeiro a sair de casa foi o Carlinho. Sendo sua casa a única casa de fundos de toda a rua, de dentro dela ele não poderia se inteirar do babado. Dona Fátima olhou para o homem do alto do parapeito de sua varanda com desprezo, "velho fofoqueiro desocupado", falou baixinho pra si, como se ela mesma não tivesse corrido do banheiro para a varanda tão logo ouvira o toque único da sirene do carro de bombeiros ao chegar.

E pelos terraços e janelas daquela rua pequena iam se constelando cabecinhas mais e menos discretas, em grande mosaico construído pela curiosidade inevitável diante do carro de bombeiros. Afinal, pulando do vermelho vivo, em letras brancas bem grandes lia-se SALVAMENTO, e se eles foram chamados, motivo havia. A mulher do Carlinho vinha pelo corredor que dava para a rua com uma faca na mão e as mãos molhadas. Perguntava ao marido o que estava havendo. Fosse um incêndio, é claro, a comoção seria maior e mais dramática, mas seria também reação de outra ordem, emoção conhecida. "Um incêndio, socorro!", e todos ficariam receosos, com razão, do fogo se espalhar em direção às suas casas, porque com fogo não se brinca. Mas o chamado ali era quase discreto. E vinha atender necessidade outra.

Os bombeiros estavam em três, e o mais alto deles retirou da parte de trás do carro um instrumento composto por um cabo metálico e uma espécie de grua em sua extremidade. "Ave Maria, é uma cobra!" teorizou a mulher do Carlinho. "Esse breguete é parecido mesmo com aquele negócio de pegar cobra, mas como que uma cobra poderia chegar aqui?" "Só pode ser cobra!" gritou Zé do Baile, de sua laje, dando força à tese da mulher, "mas não pode ser cobra não, minha gente, não tem nem terreno baldio aqui", contestou o velho João, debruçado no parapeito de seu terraço e também tentando entender. "Pode ser um lagarto", suspeitaram as jovens gêmeas Laura e Maura ao mesmo tempo, confirmando que é verdadeiro que os gêmeos partilham, sim, a mesma consciência. Era de Seu Oscar o terraço mais alto da rua, e de lá ele, onça antiga, tudo observava sem contudo interagir.

Então os bombeiros entraram na casa. Era a casa de Fagundes, uma casa pequena e modesta, guardada de todo o mal por um São Jorge estampado num azulejo bem acima da porta de entrada. Fez-se um breve silêncio (provavelmente o o dono da casa instruía, em voz baixa, os bombeiros do que estava havendo) que então deu lugar a uma algazarra contendo uma classe indistinguível de barulhos. A mulher de Carlinhos se aproximava devagar do local, mas, com medo, fez o sinal da cruz e voltou pra dentro de sua casa. As gêmeas engirafavam de sua varanda, silenciosas. Carlinhos conversava paralelamente com Zé do Baile, e alguém - mais tarde suspeitou-se que tenha sido Seu Oscar - lhes mandou calar a boca. E calaram. Aquilo era quase cinema.

De dentro da casa ouvia-se som de luta, mas nem o mais absoluto silêncio dos espectadores facilitaria qualquer depreensão do que se passava. Repetidos estalidos metálicos faziam intuir que o que quer que se estivesse tentando capturar resistia. O som dos impactos percorria as paredes. A criatura voava? Som de conversa entre os homens, mas não se ouve palavra que clarifique. Uma mulher dá um grito. "Acuda sua mãe, Fernando!", é a única coisa que se ouve com certeza. Um silêncio. Os vizinhos se olham. Pessoas que passam na rua se detém, sem entender. Será que pegaram? É quando alguém grita "SEGURA!", e novamente a barulhada irrompe no ar. Os cachorros da casa ao lado, então, desatinam a latir, e feito coral, os outros cachorros das outras casas acompanham. O alvoroço é geral, e, do lado de fora, todos esperam o desfecho. Quem antes se escondia por trás das cortinas já não carece de vergonha, e de reprimível antes, a curiosidade estabelece ampla aceitação.

Os bombeiros saem da casa tropeçando de gargalhar e conversam entre eles. "Vou tirar uma foto pra mandar pro Marcelo", diz o que segura o cabo metálico. Os outros riem, e falam coisas absolutamente inconclusivas. Não se salva uma pista. Carlinho, que permanece na rua, não se encoraja de perguntar aos bombeiros o ocorrido, e mesmo notando os vários olhos intrometidos, eles nada revelam. Parecem até nutrir, de propósito e com gosto, certo mistério sobre aquela operação. Dona Fátima acena para Carlinho com a mão, e quando consegue contato visual, ela faz um gesto com a cabeça em direção aos bombeiros, mas ele não lhe corresponde. Os bombeiros entram no carro e partem. Ela, então, deixa sua varanda contrariada, e pouco a pouco as pessoas vão voltando pra dentro de suas casas. A mulher do Carlinho volta com uma lata de cerveja que abre, dá um gole, olha pro marido com um olhar perdido e resmunga baixinho, "Ué, já acabou?"