terça-feira, 30 de setembro de 2008

Trancado na garganta

Meu pai está doente e, desde então, nosso contato tem sido muito superficial. Não é por conta da doença, isso jamais. Mas há bem três meses nossa relação estreitou-se tanto que limita-se ao indispensável. Isso não me faz bem. É quase inconfessável, mas não consigo fingir felicidade plena mantendo uma relação decadente com aquele cuja presença foi visceral nestes últimos 20 anos. Tento, mas o olhar dele - aliás, seu não-olhar - é inescapável punhalada no meu coração.
E hoje, tão sem porquê, ele estava na garagem da minha casa e, olhando-o da varanda, me dei conta disso. Por uma tolice. Acontece que meu pai é um homem de 52 anos e, ultimamente, é um tanto raro que homens nessa faixa etária ainda mantenham uma farta e negra cabeleira; o que é seu caso. Meu pai é e sempre foi muito orgulhoso de seus cabelos, e de repente, notei, do ângulo que o fitei, que seu cabelo perdera o viço, a cor e o volume. Notei que sua pele enrugou, empalideceu. Este vislumbre, trágico, trouxe consigo mais que uma vertigem física. Esse foi o mais memorável soco que recebeu o lado rancoroso de mim. Meu pai envelheceu consideravelmente nos últimos 10 meses. Sempre me deu tudo o que estava ao seu alcance, desde o essencial ao supérfluo, e é essa a minha grandicíssima gratidão: minha incrível capacidade de sobrepor todas as nossas picuínhas e problemas por tudo de bom que ele me proporcionou e fez durante toda a minha vida. Meu singular talento em ruminar seus defeitos, engolí-los e trazê-los de volta à boca, com um gosto cada vez pior. Em momento algum eu posso relevar o fato de que sua hepatite leva-o a tomar fortíssima vacina, que o deixa física e psicologicamente abalado, ou a fraqueza existente em mim de olhar pra dentro e reconhecer meus próprios defeitos. O que mais me dói é que, conforme alimentei esse rancor estúpido, o mesmo necrosou minha capacidade de amar meu pai, como coisa que se desaprende. O orgulho parece ter salgado o meu peito.
Centenas de pessoas, milhares até, dariam tudo para estar na minha condição enquanto filha de José Gonçalves, humilde enfermeiro, budista fervoroso, pessoa simpática e bem quista por natureza. E parece que sou a única pessoa que negligencia ou ignora este privilégio, e isto é um puro dissabor. Não dá pra esquecer um pai que, por mais ausente que tenha ficado durante a minha infância - sempre por conta de trabalho - estava lá. Me vendo, de alguma forma, orando por mim à sua maneira. É impossível dissociar assim, de uma hora para outra, todas as lágrimas que ele chorou comigo e por mim; a madrugada de seu aniversário que me levou às pressas para o hospital, quando cantava pra mim quando eu era pequena, o momento epifânico que testemunhou minha menarca. Não se esquece esse tipo de coisa; coração nenhum é capaz de tal frieza.
Eu o amo tanto, só não estou sabendo dizer isso. Seu jeito simples e atrapalhado. Suas mãos grandes. Sua teimosa positividade. Seu olhar seguro.
Eu o amo, tanto.

terça-feira, 23 de setembro de 2008

Dilemas temporários

Eu nunca nasci, tampouco estou fadado a morrer, como vocês. Eu não tenho idade, não tenho umbigo nenhum. Sou oniciente, sei tudo o que você fez tanto no verão passado como em todos os outros. Estou lá e aqui. A minha função é passar. Nada escapa do meu alcance: formigas, letras, sequóias, galáxias; eu consumo tudo, tudo me pertence. A única certeza que tenho é que por mais que eu passe, enquanto acumulo rugas no seu rosto, eu sempre sou. Não envelheço, meu caráter é o mesmo desde sempre e, ao contrário do que pensam, eu não mato ninguém. Vocês obedecem, apenas a um ciclo, como todas os outros seres vivos.

Há toda sorte de definições a meu respeito, mas por decerto não visto nenhuma delas. Eu estou aqui antes de Deus, tanto o que foi criado por vocês quanto o que realmente existe.

A despeito da concepção individualista, em primeiríssima mão venho te confessar um grande segredo: eu sou absolutamente constante. Uns alegam que não me têm; outros dizem que me têm demasiadamente e não sabem o que fazem comigo. EU te digo: mentira. Todos me possuem exatamente na mesma proporção; o que os difere é a forma com a qual me administram. Pôr a culpa em mim? Desaforo. Logo eu, que sou tão solícito, justo, invariavelmente imparcial e, como dizem tantas culturas populares, sábio.

Sabedoria. Sou sábio de verdade? É sábio observar tudo o que eu passo? Não, não é. É interessante. Acho que os seres humanos admitem esse conceito baseado em coisas, cargos ou pessoas que demoram pra conquistar, daí dizem que eu sou sábio. Mas sábio, eu? Não. Sábia é a perseverança; eu só sou a distância entre ela e o que quer que for.

Eu sou passagem, sempre. Nesse ponto, eu e você convergimos. Eu obedeço a uma função imorredoura de passar, e passar, e passar, e passar. Nada é eterno, somente eu, que aqui estou e para sempre ficarei. Mas vocês podem fazer a diferença, e ficar em mim por um bom tempo.

Por um bom tempo.
Nada é eterno além de mim, como eu já disse.

sexta-feira, 19 de setembro de 2008

Fale baixo!

Hoje, voltando da faculdade de ônibus, percebi que havia um pai exemplar. Atencioso com os filhos, que eram dois casais, divorciado, e um tanto quanto chateado por não poder estar com eles amanhã, num sítio em Magé. Ele provavelmente ainda tem problemas com a ex-esposa, parece não ter digerido muito bem a separação e não gosta do marido-namorado-parceiro dela. Ah, e se você está pensando que sei disso porque eu levei uma longa prosa com ele no percurso Niterói-Caxias, está enganado.
Acontece que este senhor não estava falando no celular. Ele estava aos berros, de modo que da cobradora ao motorista a conversa (e inclusive o contexto) eram perfeitamente audíveis. O cara parecia estar dando uma palestra, e de um hábito que eu o-deio, por sinal: a deselegância de não saber conversar ao celular. Fiquei pasma. E ele mesmo não estava nem aí. Falou um monte de palavrões, e, não satisfeito, fez "psiu" para a moça que estava do outro lado do corredor do ônibus e começou a contar toda a sua vida. Das duas, uma: ou é excentricidade ou carência. Extremas.
Lembro de outro dia que, também no ônibus, fui testemunha de uma memorável conversa alheia. Uma moça, aparentemente muito distinta, virou uma verdadeira metralhadora de palavras ao celular. Aquilo não irritou somente a mim, mas às outras pessoas que olhavam, curiosas, pensando haver um megafone por perto. Gente, eu acho isso tão feio! E o pior é que a conversa denunciava que a menina em questão era uma bela fofoqueira. Bom, você deve estar aí pensando: "mais fofoqueira é você, ouvindo a conversa que não lhe diz respeito!" Na verdade, no tom de voz desse tipo de pessoas, fica impossível tornar-se alheio à conversa, porque, de qualquer maneira, acaba chamando a atenção. E o ser humano é naturalmente curioso.
Nada contra mostrar que você é uma pessoa que tem sentimentos puros e reais em relação a outra. Nada mesmo. Exalte quem você ama, beije, abrace, diga todas as palavras bonitas DIANTE da pessoa, não o faça em um celular, principalmente a grandes decibéis. Até porque, como dizem por aí, a inveja tem sono leve.

domingo, 14 de setembro de 2008

Etiqueta orkutiana

Acho que orkut hoje em dia virou CPF. Identidade; pessoal, intransferível e que não fica só no plano virtual, não mesmo.
É cada vez mais comum a gente ver as pessoas reagindo por aí conforme atitudes tomadas no orkut. Quer simples exemplos? "Viu aquele scrap queima-filme que aquela garota deixou no orkut do namorado dela? Eles até brigaram por isso!" "Aí cara, tá ligado daquela mina que fuçou meu perfil, da faculdade? Tô achando que ela tá me dando mole!" "Caraaaaaca amiga, aquela pessoa fuxicou meu perfil e nem sequer me adicionou! Tá vendo!? Se fosse um desconhecido, mas pô, é aquela pessoa! Como pode, né? Também fucei o dela e, CLARO, não add." Tenho certeza que você se familiarizou com, pelo menos, algumas das três frases. Eu mesma disse a última, hoje. Isso não é estranho??
Acredito que a etiqueta orkutiana permeia sempre o que nós temos em mente, e está constantemente à frente das relações olho-no-olho em sociedade. Tem gente que acha muito mais fácil se comunicar mandando um scrap a falar diretamente. Uma mínima reação no orkut pode desencadear todo um mal-entendido dos grandes, pôr amizades e relacionamentos a perder. Nunca houve uma moda tão forte e influente quanto essa. Também penso ser uma grande babaquice tudo pôr a culpa no pobre orkut. Ele apenas externa o que muita gente quer dizer, mas não diz.
Incrível como o orkut determina as coisas e diagrama as pessoas. Tem gente que leva o orkut tão a sério que vai mais pelas comunidades de alguém que pelo que realmente conhece da pessoa, na convivência. E tem pessoas que se criam inteiras no orkut. Outro rosto, outro coração, outro si.
O orkut é um quase-você, só que de fibra ótica.

segunda-feira, 8 de setembro de 2008

O mundo misterioso dos andróginos

Sempre achei a androginia um tipo de dom natural. Fico impressionantemente estática ao ver um andrógino passar por mim na rua, na faculdade ou em qualquer lugar. Fico tentando decifrar o código genético, sua impressão no mundo e o seu natural deslocamento. Nunca vi anjos, mas se tivesse esta maravilhosa oportunidade, creio que eles seriam assim, como os andróginos que vagam por nós.
Eles são tão bonitos. E têm uma graça diferente, própria do seu "dom". São suaves. Prendem o meu olhar em seus rostos. Antes de mais nada, não estou falando de homossexualidade, que eu também respeito muito. Estou falando de androginia mesmo. Aquele valsar lento e que, quando termina, deixa nossos olhos com vários nós. Afinal, não sabemos se o que vemos é um homem ou uma mulher; à primeira vista ou sempre. No mundo artístico, minha andrógina favorita é a Tilda Swinton (As crônicas de Nárnia, Constantine, A praia). No filme Constantine então... nossa, ela atingiu o máximo da androginia e este post está sendo criado ao som de "Coming", música de Jimmy Sommerville e trilha de um filme chamado Orlando, de 1992, também com Tilda no elenco. Essa música é maravilhosa, mas ainda é melhor na voz de Edson Cordeiro e adivinham do que ela fala??? rs. Recomendo demais. Pra quem não conhece a super Tilda, tentem David Bowie, o eterno E.T mímico e andrógino Ziggy Stardust. Hoje eu nem o considero tão andrógino quanto ele foi, no pico dos anos 70, mas essa é a melhor imagem que ele produziu de si - e sempre a que lhe é mais associada/lembrada - até hoje. Lembro de uma reportagem que li numa revista sobre androginia, que trazia fotos de pessoas andróginas, logicamente. Achei muito interessante, mas também foi a única que vi nesta revista - minha mãe era assinante. Engraçado, quase não abordam desse tema, que eu acho tão interessante. Por que?
Gente andrógina pode carregar até um mundo inteiro no olhar. Elas bagunçam o nosso campo visual, porque, ao menor desequilíbrio da realidade o homem inquieta-se, e é exatamente isso o que os andróginos fazem. Eles desestabilizam tudo o que era exato, e desfamiliarizam nossas concepções mais primórdias e elementares do que mamãe ensinou sobre menininho e menininha. Eles, no fundo, riem disso, porque sabem que não se enquadram em nenhuma categoria, e têm essa estranha sorte de poder transitar entre os dois sexos com a liberdade de uma ninfa pelos bosques da eterna infância.

sexta-feira, 5 de setembro de 2008

... Essa inquietação gostosa de procurar

Ah, se a gente se contentasse. Que merda, que insosso, que inferno seria. Contentamento: s.m. (contentar + mento). 1. Ação ou efeito de contentar. 2. Estado de quem está contente. 3. Alegria, satisfação. Mas com verdades miúdas, pela metade? Nunca.
O ser humano é sempre descontente das conclusões que lhe chegam, por mais felizes que sejam. Se foi assim, poderia ter sido de outro jeito; se foi do outro jeito, poderia ser assim e a partir daí a cíclica gira, eterna. A graça só existe enquanto ainda não se tem o que se quer, enquanto a hora fatal ainda não chegou. Depois de vencida a obstrução ao objeto de desejo, a gente sempre vai procurar outro objeto de desejo ainda mais difícil pra superar. Essa é a graça. É o desafio que move o coração humano e, só quem vive de verdade, lutando contra o próprio contentamento é que pode ter a noção do que eu estou dizendo.
Não curto essa cantora, mas ela uma vez disse, muito inteligentemente numa de suas músicas: "Minha procura por si só já era o que eu queria achar". Todo mundo leva um pouco dessa frase como doutrina de vida; consciente ou inconscientemente. Essa inquietação gostosa de procurar é que vai desenhando a vida da gente, por mais que às vezes pensemos que estamos aqui a toa. De alguma forma, a maioria das pessoas está procurando alguma coisa, ah, está. Um emprego, um namorado, um biscoito, um cachorro, um cadinho de felicidade, um pedaço de coração. Essa busca é muito válida. É equivalentemente válida ao próprio objetivo da mesma, até porque a gente consegue medir a importância do que as pessoas procuram pela intensidade com a qual o fazem. Se você pensa que não é muito normal por ser uma pessoa inquieta, ah-ha! junte-se a mim, vamos dominar o mundo! [/pink e o cérebro]
Tá aí, essa é minha sorte de hoje pra você: procure as coisas ou as pessoas. As que acha que perdeu, as que sabe que tem competência para encontrar e, inclusive, as que estão perto de você. Sim, isso mesmo. Porque, a menos que você seja Deus, assim como eu, ainda tem muito o que procurar também.
Bom dia.

terça-feira, 2 de setembro de 2008

Nadismo? Ah, faça-me o favor...

Que os praticantes me desculpem o preconceito prévio, mas aos meus olhos, as pessoas não têm mais o que inventar. A moda agora é o tal do nadismo, uma prática inventada por um portoalegrense cuja finalidade é... fazer nada. Nada. Nadinha. Não gente, não é pra ver TV, entrar no orkut, dar uma cochiladinha, pensar em alguma outra coisa: é nada mesmo. Tudo bem, todos nós temos um invencível desejo, de, pelo menos durante um minutinho do dia praticar o tal nadismo. Mas eu bem disse: por um minuto. O que vejo de absurdo no nadismo é o total desligamento das pessoas com a realidade durante horas - isso mesmo, horas inteiras. Ah, peraê né?
Com tanta coisa interessante pra fazer, tantos livros magníficos pra ler, tanta gente pra ajudar, tanta louça pra lavar, um grupo de pessoas se retira e simplesmente adota uma louca filosofia de vida. Sabe qual é? Porque eu estou me incomodando? A cada dia que passa a gente vê uma coisa mais doida que a outra surgindo - e virando febre. E não temos nada com isso, a partir do momento em que ignoramos por completo a questão. Mas... a partir do questionamento e da pesquisa, já estaríamos inseridos? Ah não, lá vou eu refletir de novo... :S
Não sou ninguém pra julgar qualquer pessoa, e quero deixar isto expressamente claro aqui. Pode ser até que algumas pessoas se desestressem, que isso traga algo de bom para alguns, o que, se traz benefícios às pessoas, é um bom sinal. Acontece que, na minha tão limitada visão, toda essa estória não passa de uma porca desculpa para vagabundear com os olhos no teto. Sem culpa.