terça-feira, 25 de agosto de 2015

Enquanto Cassandra dormia

Fiquei meia hora olhando pra porta branca que antepunha o dia branco do lado de fora. Cassandra dormia alheia um sono de mais de 400 anos, mas agora toda a cidade estava branca: os carros estavam brancos, os telhados estavam brancos, os batentes das janelas, brancos, as flores, brancas, as marquises, brancas. Tenho certeza que você se lembra daquela vez, há dois anos, em Mondorra, quando nós dois tivemos a impressão de que todas as pessoas passavam por nós como se soubessem algum segredo nosso. E elas passavam por nós, levando os nossos segredos com elas dentro dos olhos. Os nossos segredos, aqueles mais imundos. Você sabe. Era uma sensação estranha, era como perder alguma coisa. Mondorra também estava branca naquela ocasião.

Pois deve ser o branco, então. Não é no escuro das vielas que as pessoas não se veem. É na luz. É clara e evidentemente na luz que os detalhes escapam todos, e escapam os vincos nos rostos, os vincos quase invisíveis e placentários de tantas expressões que os segundos engolem como aos infinitesimais crustáceos engolem as baleias azuis dos infinitos mares gelados do oceano Índico.

Escombros. Ontem sonhei que abria a porta branca e tudo o que havia era escombros do lado de fora. Eu começava a andar por cima deles e de repente me dava conta de que cobras retiam meus pés, mas as cobras eram os fios dos teus cabelos, e os escombros eram a tua cabeça, e quando me dei conta disso, tua cabeça ficou movediça. Eu nunca duvidei que na tua cabeça havia escombros. Mas ficou engraçado tentar me salvar da destruição pulando para um lobo mais seguro da tua cabeça. Logo a tua cabeça (eu tentei alcançar o hemisfério esquerdo - dizem que é onde mora a lógica - mas uma das suas sinapses me deu um choque no pé, e eu caí antes). Quando eu acordei, olhei pela janela. Estava amanhecendo, Cassandra ainda dormia. Cassandra iria de destruir o mundo um dia, mas que bom seria se começasse pelos hemisférios da tua cabeça.

Às vezes escuto uns estrondos, e não sei se saem da minha mente ou se são dos aviões, que mesmo muitos quilômetros depois, deixam esse rastro sonoro no ar. Você já ouviu? É feito o som de um trovão, mas mais contínuo, calmo e baixo, como se ao encontrarem as nuvens, as turbinas chorassem. Nuvens são coisas fascinantes principalmente porque apesar de tão altas e portadoras de uma das coisas mais valiosas que existem, continuam humildes, basicamente emprestando sua vida para comportar o que não pode ser comportado nem transportado facilmente. Porque somente a leveza sustenta algumas coisas. Talvez por isso sejam capazes de assumir tantas formas e continuar a mesma coisa. Só as nuvens são verdadeiramente livres. Transcendentais.

Mas não essa fina nuvem branca que turva os caminhos e as pessoas. Essa nuvem que tomou conta da cidade da noite pro dia, não como em Mondorra (aliás, fomos embora de lá antes. Não soubemos o que aconteceu.) Diferente das nuvens do céu, nuvens de chão metem medo. O mau presságio é respirável, todo mundo sabe e está na boca de todos, mas todos se recusam a falar, porque o falar, em si, é monstro que se agiganta quando mencionado. É a palavra saindo da boca e voltando, tentáculo maldito, pra sufocar a boca da qual saiu. Em algum lugar eu ouvi que existe um termo pra isso. Não me lembro. Já foi dito que falar de depressão nos deixa mais propensos a ter depressão.  Deve ser por isso que as pessoas não falam de depressão. Deve ser por isso que as pessoas não falam dessa nuvem que está aqui, entrando e saindo das nossas casas, e ainda assim não falam sobre ela. Talvez seja porque ninguém veja o rabo da nuvem.

Enquanto isso os sonhos pesam. Dentro de cada sonho, uma verdade imperscrutável, secreta. A ligação com o mundo branco ao redor da minha casa existe, mas é vitralizada pelo sonho; nunca inteiriça, frontal. Enquanto isso, ouço meus vizinhos fazendo amor. Enquanto isso, os gatos que se movem nos telhados parecem entes do próprio branco surgido. Enquanto isso, você deixou tudo pra trás e foi cavalgar a improbabilidade de uma vida sem endereços. Enquanto isso, Cassandra ainda dormia.

No entanto, foi poucos dias antes de você chegar que eu entendi. O estresse, a tensão, o desequilíbrio. Eu pude ouvir o gelo rachando a quilômetros de distância. Eu pude ouvir aquela revoada anormal dos pássaros. Foi dias antes, e tudo pareceu tão óbvio, tão óbvio. Dos meus vizinhos, que se amavam com regularidade, eu passei a ouvir a discórdia. Vários acidentes de carro aconteceram no mesmo dia, mas não pela falta de visibilidade provocada pelo branco, mas porque as pessoas estavam irritadas, num estado coletivo de suspensão do juízo. A água de toda a cidade se tingiu dum ocre forte na cor e no cheiro. Deus, como fui perceber tão tarde. Era você voltando, não tinha como ser outra coisa.

E você chegou às 5:28 de uma manhã na qual eu não conseguia dormir, coincidindo com o despertar de Cassandra. Ninguém nunca poderia imaginar. Quando finalmente abri a porta branca, eram você e Cassandra juntos entrando dentro de mim. Eram todos os meus vizinhos, olhando tontos para cima, como se estivessem em dormente processo de abdução. Ainda era escuro, mas Cassandra se revolvia lá de cima, e gritava violentamente com ódio de nós, em linhas verticais de fogo líquido e selvagem, sucessivas vezes. Você segurou minha mão sem acreditar. Eu vi Cassandra nos teus olhos, dentro das tuas lágrimas quentes, porque a gente iria morrer e sabia. Você veio pra morrer comigo. Cassandra olhou pra nós mais uma vez, e brilhou da cor da morte. Da cor da nossa morte. Veio num trote negro e quase macio. Mas ainda tive tempo de rir: o branco não existia mais. O espaço não existia mais. Eu vi cada centímetro do que o tempo fez em você naqueles últimos meses. E nunca no mundo um abraço poderia ter sido mais completo ou mais pontual ou mais necessário.



quinta-feira, 20 de agosto de 2015

Sem título

Muitas coisas poderiam ser ditas sobre a aversão de Adorno com relação às unhas escuras das mulheres. Nenhuma delas que consta nesses escritos é verdade, mas poderiam ser. Adorno, afinal, morreu ontem, sem nunca ter me dito o porquê de tamanha repulsa. Ele sequer conseguia fixar o olhar em unhas femininas que haviam sido pintadas em tons de roxo, vinho, preto. Mas, morto Adorno, qualquer conjectura é assumível. Crível, inclusive.

Uma vez, em uma conversa de porta entreaberta, ele teria dito a um amigo que, quando criança, foi passar uns dias na casa de uma avó que morava numa cidade pequena na região do Gratário. Privada de maiores modernidades, estas nem mesmo faziam falta: a pequena cidade era conhecida pelos seus fortes vendavais, que varriam tudo a qualquer época do ano e, ao espalhar as folhas coloridas das árvores pelo chão, reconfiguravam a aparência do lugar diversas vezes por dia. Adorno corria pela casa da avó, e gostava de imaginar que cada vez que as portas se fechavam bruscamente pela força do vento, diziam NÃO! a quem tivesse ficado do lado de fora. Apesar de tanta beleza, teria sido nessa cidade que a paranóia de Adorno teve início.

Numa tarde como qualquer outra, sua avó sofrera um pequeno acidente doméstico oriundo da fantasia de Adorno. Coisa de criança. A avó o perseguira pela casa, insistindo que almoçasse. Mais rápido ao chegar a seu quarto, Adorno, deitado na cama, se recusava a comer e, quando a avó o alcançou, o NÃO! da porta encontrou suas unhas num choque forte. A velha deu um grito que o vendaval espalhou pela casa, atordoando o menino. No dia seguinte, todas as unhas da sua mão esquerda, a excetuar pelo polegar, estavam tingidas do profundo roxo do sangue pisado e da insolência de Adorno.

Na adolescência, tinha um grande amigo, Fabrício. Na época em que se conheceram, ambos eram muito novos, e estavam descobrindo o amor. Pelo menos Fabrício. Adorno tendia à frieza. O que se sabe é que Fabrício havia tido uma paixão arrebatadora por uma menina, Fernanda. Mas por alguma razão, Fernanda e Fabrício não podiam ficar juntos. Melhor: não conseguiam. Fernanda era dona de um gênio fortíssimo, uma mulher enorme, engolidora de gente, e cabia, inteira, em uma certa música de Caetano Veloso. Quando o romance problemático entre Fernanda e Fabrício chegou ao fim, este entrou em depressão, e passou as duas últimas semanas de sua curta vida ouvindo insistentemente tal música. O laudo pericial confirmou que, no último momento, Fabrício havia se arrependido do suicídio, mas era tarde. Não adiantaram todas as palavras de Adorno dispensadas ao amigo, nos muitos meses que antecederam sua morte; todas as noites não dormidas, toda cachaça entornada. Por alguma razão, não era à Fernanda que Adorno atribuía a responsabilidade do infortúnio; mas à música de Caetano, que, por descrever Fernanda, cimentava sua imagem na mente de Fabrício, repetidamente. Sob o efeito da hipnose auditiva, Fabrício perdera a guerra para o amor. E Adorno ganhara seu trauma de unhas negras.

Diz-se ainda que Adorno também tinha medo de aranhas. A fobia teria começado quando, numa feira de ciências da escola, ele teria ficado de frente com uma tarântula imensa que havia escapado de um dos aquários que havia quebrado no transporte de uma sala para outra. Na ocasião, Adorno não só teria encontrado a aranha, como ela andou sobre ele, e, apesar de inofensiva, só a mera imagem do animal movimentando suas presas levou o garoto ao desmaio. Por algum motivo, tempos depois, ele passara a associar as unhas escuras às presas da aranha, e todas as mãos de mulheres tornaram-se tarantulares quando tamborilavam as unhas escuras sobre qualquer superfície. Eram todas a tarântula perdida da feira de ciências. Aquela que caminhou sobre sua pele provocando sinistras cócegas psicológicas. Eram mil tarântulas, e sempre duas por vez.

Mas nada disso é verdade. Só pode ser. Adorno, o próprio, nada pode dizer. Se pudesse, talvez o pavor lhe devolvesse a vida: havia inúmeras mulheres de vestes e unhas em luto ao redor do seu corpo frio na noite de ontem.


domingo, 9 de agosto de 2015

Sempre

Gosto da assunção de determinadas palavras. Curioso em si: parece uma percepção contraditória já que as palavras são arbitrárias, mas de tanto transitar da boca pros ouvidos elas parecem se deitar eternamente dentro do sentido que propõem, como se sempre estivessem estado lá. Quando foi mesmo que começaram a florescer as cracas no peito dos navios afundados?

A palavra marca, primeiramente, o que existe. O conceituável. O nominável. Num esforço, muitas vezes se esmerilha entre combinações laboriosas de prefixos e sufixos para atender até o que parece mais imprecisável. Inexistente a palavra, desconsiderada a existência. Lovecraft já havia nos dado a dica em 27.

Mas gosto da assunção de determinadas palavras.

Do vasto universo de palavras que por si só pesam toneladas, me amedronta e fascina tudo o que gira em torno dessa invenção que se grafa "sempre".

"Sempre" é uma palavra universal.

Traduz a ideia de uma paz absoluta e imperturbável, de uma serenidade abstrata e corrosiva; de estado inalterável de qualquer coisa: gente, rochas, governos, matéria, forma. Inexorabilidade. Nem mesmo "nunca" é páreo para "sempre". "Sempre" é a palavra que vencerá todas as outras pelo cansaço. "Força" cede, todo "invencível" tem um ponto fraco, e mesmo Drácula prova que "imortal" tem seus limites. Mas "sempre" segue se imiscuindo pela vida de todas as coisas, incansável e oxidante, desde a primeira planária a todos os mistérios que se seguem depois do que for último. Não há antes ou depois diante de "sempre". "Sempre" ignora recortes, impetuoso.

"Sempre", portanto, não é apenas um mero advérbio de tempo.
"Sempre" é o próprio tempo em si.