sexta-feira, 10 de novembro de 2017

Oasis party

Guardo um estoque pisciano de lágrimas pra você
debaixo
dos meus grossos óculos escuros
redemoinhos de poás
Enquanto na piscina você banha
seu corpo de glória, cloro e sol

A festinha tá animada e as
cores das frutas trocam de lugar
com as dos balões as meninas
comem as cores dos bikinis

não um cão, mas um pavão
passeia tímido entre os copos

A pedidos
eu entro na selfie dos outros
uma fabulosa coleção de dentes disputa
os limites dos rostos

Procuro o seu no quadro azul mas você
não está
talvez tenha cavado um buraco
para ver o mar

derrubaram vinho branco na Bianca
se ela estivesse sóbria reclamaria
que vinho branco também mancha
irreversíveis de verdade
só as manchas que só nós vemos

já você não foi ver o mar, ao contrário
está de pé
nas mãos
um drink elegante
nas pernas
o exército de gotas que se agarra na corda fina e difícil
dos teus pêlos
quantas baixas enquanto andas!

nenhuma guerra é mais assimétrica
que a que acontece aqui

uma força puxa meu pulso e
entro novamente na selfie dos outros
uma fabulosa coleção de lentes
milita
pela manutenção dos sorrisos
limites desistem aos poucos debaixo
das águas venenosas de um dia de sol

a música independente que estoura a caixa
indiferente aos comportamentos
surda e disforme
cria um fio elétrico do meu corpo ao seu
tenta nos dizer alguma coisa via espasmo
mas você contempla pasmo a bunda da Renata
eu espero uma abdução e as minhas encomendas no Ali

quinta-feira, 9 de novembro de 2017

[TRADUÇÃO] O fim da solidão - William Deresiewicz



O que o eu contemporâneo deseja? A câmera criou a cultura da celebridade; o computador está criando a cultura da conectividade. Conforme as duas tecnologias convergem - redes sociais expandindo a teia de uma interconexão sem precedentes - as duas culturas traem o impulso comum. A celebrização da vida privada e a conectividade são duas maneiras de se tornar conhecido. Isto é o que o eu contemporâneo deseja. Ele deseja ser reconhecido, deseja estar conectado; ele deseja ser visível. Se não aos milhões, no Survivor ou na Oprah, então às centenas, no Twitter ou Facebook. Esta é a qualidade que nos valida, isto é como nós nos tornamos reais para nós mesmos - sendo vistos pelos outros. O grande terror contemporâneo é o anonimato. Se Lionel Trilling estava certo, se a propriedade que baseava o eu, no Romantismo, era a sinceridade, e no Modernismo era a autenticidade, então no pós-modernismo se trata da visibilidade.

Vivemos exclusivamente em relação com os outros, e o que desaparece das nossas vidas é a solidão. A tecnologia está levando nossa privacidade e nossa concentração, mas também está levando nossa habilidade de ficar sozinhos. Embora eu não deva dizer "levando". Nós estamos fazendo isto conosco; nós estamos nos livrando destas riquezas o mais rápido que conseguimos. Fiquei sabendo, por um parente seu mais velho, que uma adolescente que conheço tinha mandado 3.000 mensagens de texto no último mês. Isto quer dizer 100 mensagens por dia, ou mais ou menos uma a cada 10 minutos, manhã, tarde e noite, finais de semana e finais de semana, na hora da aula, na hora do almoço, na hora da lição de casa, e mesmo na hora de escovar os dentes. Então, em média, ela nunca fica sozinha por mais de dez minutos. O que significa que ela nunca está sozinha.

Uma vez perguntei aos meus alunos sobre o lugar que a solidão tinha em suas vidas. Uma admitiu que achava a ideia de ser só tão perturbadora que ela se sentaria com um amigo mesmo quando tivesse um artigo para escrever. Outro disse, "por que alguém gostaria de ficar sozinho?"

Para esta notável pergunta, a história oferece um número de respostas. O homem pode ser um animal social, mas a solidão é, tradicionalmente, um valor social. Em particular, o ato de ficar sozinho vem sido entendido como uma dimensão essencial da experiência religiosa, embora restrita a um eu cautelosamente selecionado. Através da solidão de raros espíritos, o coletivo revigora sua relação com o divino. O profeta e o ermitão, o andarilho e o praticante de ioga saem em busca de suas visões, convidam a seus transes, no deserto, na floresta, ou na caverna.

Ainda, vozes discretas falam apenas no silêncio. A vida social é um amálgama de questões pequenas, um atropelo de interesses cotidianos, e instituições religiosas não são exceção. Você não pode ouvir Deus quando as pessoas estão conversando perto de você, e a palavra divina e seus anseios, não obstante, se turva ao descer entre o monarca e o sacerdote. A experiência comum é a regra humana, mas o encontro solitário com Deus é o ato sublime que renova a norma. (Sublime, porque homem algum é profeta em sua terra natal. Tiresias foi condenado antes de ser absolvido; Teresa interrogada antes de ser canonizada.) A solidão religiosa é um tipo de mecanismo social de autocorreção, uma maneira de extinguir o mundano do hábito moral e do costume religioso. O visionário retorna com novas tábulas ou novas danças sua face brilhante com a velha verdade.

Assim como outros valores religiosos, a solidão foi democratizada pela Reforma e secularizada pelo Romantismo. Na interpretação de Marilynne Robinson, o Calvinismo criou o eu moderno focando o interior da alma, deixando-o ao encontro de Deus, como o profeta do velho, em "profundo isolamento". Em sua enumeração de Calvino, Marguerite de Navarre e Milton como captaneadores do eu moderno inicial, nós podemos acrescentar Montaigne, Hamlet, e até Dom Quixote. O último nos alerta ao papel essencial da leitura nesta transformação, a imprensa impressa se prestando à uma função análoga no século XVI e nos subsequentes como a televisão e a internet no nosso próprio. A leitura, como Robinson coloca, "é um ato de grande introspecção e subjetividade." "A alma encontra a si mesma na resposta a um texto, primeiro em Gênesis ou em Matheus, e então em Paraíso Perdido ou Folhas de Relva." Com o Protestantismo e a impressão, a busca pela voz divina se tornou disponível, e no limiar, quase obrigatória, para todos.

Mas é com o Romantismo que a solidão atinge seu ápice de saliência cultural, se tornando tanto literal quanto literária. A solidão protestante ainda é apenas figurada. Rousseau e Wordsworth a tornaram física. O eu agora é encontrado não em Deus, mas na Natureza, e para encontrar a Natureza é preciso ir à ela. E ir à ela com uma sensibilidade especial: o poeta desloca o santo como visionário social e modelo cultural. Mas por conta do Romantismo ter herdado a ideia de empatia social característica do século XVIII, a solidão Romântica existe numa relação dialética com a sociabilidade - se menos para Rousseau, ainda menos para Thoreau, o solitário mais famoso de todos; e então certamente para Wordsworth, Melville, Whitman e muitos outros. Para Emerson, "a alma se cerca de amigos, que talvez entrem numa autoconsciência maior ou solidão, e ela segue só, por uma temporada, que pode exaltar sua conversação ou sociedade.”


O modernismo dissocia esta dialética. Sua noção de solidão é mais dura, mais adversa, mais isolante. Como um modelo do eu e suas interações, a empatia social de Hume abre caminho para a espessa parede de personalidade de Pater e ao narcisismo de Freud - a ideia de que a alma auto-encerrada e a inacessibilidade aos outros não escolhe outra coisa se não ficar só. Com exceções, como Woolf, os modernistas tentaram evitar a amizade. Joyce e Proust desdenharam dela, D.H. Lawrence estava fatigado dela; e as duplas modernistas - Conrad e Ford, Eliot e Pound, Hemingway e Fitzgerald - todos juntos muito mais descolados que seus contrapartes românticos. O mundo agora era entendido como um assalto do eu, e com uma boa razão.

O ideal romântico da solidão desenvolveu, em parte, uma reação à emergência da cidade moderna. No modernismo, a cidade não só é mais ameaçadora que nunca; ela se torna inescapável, um labirinto: a London de Eliot; a Dublin de Joyce. A plebe, a massa humana se acotovela. O inferno são os outros. A alma é forçada a voltar-se para dentro - daí o desenvolvimento de uma forma mais austera, mais combativa de auto-validação, a "autenticidade" de Trilling, onde a relação essencial se dá apenas do eu consigo mesmo. (Assim como há poucas boas amizades no modernismo, há também poucos bons casamentos.) A solidão se torna, então, mais do que nunca, a arena do auto-descobrimento heroico; uma viagem pelos reinos interiores tornados vastos e aterrorizantes pelos insights nietzcheanos e freudianos. Alcançar a autenticidade é olhar por sobre estas visões sem vacilar; o exemplo de Trilling aqui é Kurtz. A auto-examinação protestante se torna análise freudiana, e a cultura do herói, uma vez o profeta de Deus e então o poeta da Natureza, é agora o romancista do eu - um Dostoievsky, um Joyce, um Proust.

Mas nós não estamos mais numa cidade modernista, e nosso grande medo não é a submersão pela massa, mas o isolamento da manada. A urbanização deu lugar à suburbanização, e com isso, a ameaça universal da solidão. O que as tecnologias de transporte exacerbaram - nós podemos viver mais e mais separados - as tecnologias da comunicação compensaram - nós podemos ficar mais e mais próximos. Ou, pelo menos, assim imaginamos. A primeira dessas tecnologias, o primeiro simulacro de proximidade, foi o telefone.
“Vá além e alcance alguém”. Mas ao longo dos anos 70 e 80, nosso isolamento cresceu. Os subúrbios, se alastrando progressivamente, se tornaram exúrbios. Famílias se tornaram menores ou se estilhaçaram; mães deixaram as casas para trabalhar. A lareira eletrônica se torna a televisão em cada sala. Mesmo na infância, e certamente na adolescência, nós estamos presos dentro de nossos casulos. (Gráficos da violência vão às alturas, e ainda mais nitidamente, os de pânico moral, colocando as crianças longe das ruas.) A ideia de que se pode ir lá fora e dar uma volta pela vizinhança, um dia questionável, agora se torna impensável. A criança que cresceu no contexto da segunda guerra mundial como parte da extensão familiar dentro de uma comunidade urbana extremamente fechada se tornou a avó do garoto que se senta sozinho em frente a uma enorme televisão, numa casa enorme, dentro de uma propriedade enorme. Nós nos perdemos no espaço.

Dentro destas circunstâncias, a Internet surge como uma bênção incalculável. Nós nunca devemos esquecer disso. Ela possibilitou às pessoas isoladas se comunicarem umas com as outras, e às marginalizadas se encontrarem (...). Mas conforme a dimensionalidade da Internet se expandiu, ela rapidamente se tornou boa demais para ser verdade. Há dez anos atrás nós escrevíamos e-mails na área de trabalho dos computadores e os enviávamos via conexões discadas. Agora mandamos mensagens dos nossos celulares, postamos fotos em nossos Facebooks, e seguimos completos estranhos no Twitter. Um fluxo constante de contato mediado, virtual, nocional ou simulado, nos mantém ligados a uma colméia eletrônica - apesar de "contato", pelo menos contato em via de mão-dupla, parecer estar sendo deixado de lado. O objetivo agora, ao que parece, é simplesmente se tornar conhecido, se converter numa espécie de minicelebridade. Quantas pessoas estão lendo o meu blog? Quantas buscas o meu nome gera no Google? A visibilidade assegura a nossa autoestima, se tornando um substituto para a conexão genuína. Não há muito tempo atrás, era fácil se sentir só. Agora, é impossível ficar sozinho.

Como resultado, nós estamos perdendo os dois lados da dialética romântica. O que a amizade significa quando você tem 532 "amigos"? De que maneira esse dado aumenta meu senso de proximidade quando meu feed de notícias no Facebook me diz que Sally Smith (que eu não vejo desde o ginásio, e que não era tão próxima assim de mim mesmo naquela época) "está fazendo café e contemplando o vazio"? Meus alunos me disseram que têm pouco tempo para intimidade. E é claro, eles não têm tempo algum para a solidão.

Mas ao menos a amizade, senão a intimidade, ainda é algo que eles desejam. Tão chocante quanto essa nova dispensa pode ser para as pessoas na casa dos 30 ou 40, o problema real é que isto se tornou absolutamente comum para adolescentes e pessoas na faixa dos 20 anos. Os jovens, hoje, parecem não ter qualquer desejo pela solidão, nunca ouviram falar nela, não conseguem imaginar o porquê de tê-la. Na verdade, o uso que fazem da tecnologia - ou, pra ser justo, o uso que fazemos da tecnologia - aparenta envolver um esforço constante de prevenção da mera possibilidade da solidão; uma tentativa contínua, conforme nos sentamos sozinhos em nossos computadores, de manter a presença imaginária dos outros. Há muito tempo atrás, lá em 1952, Trilling escreveu sobre "o medo moderno de ser cortado do círculo social mesmo por um instante." Agora nos equipamos com os meios afim de prevenir que este medo jamais se materialize. O que não significa que demos um fim a ele. Muito pelo contrário. Lembre-se da minha aluna, que não conseguia nem escrever um trabalho sozinha. Quanto mais mantemos a solidão à margem, menos conseguimos lidar com ela e mais aterrorizadora ela se torna.

Ao que me parece, esta é uma analogia com a experiência da geração anterior ante ao tédio. Essas duas emoções, a solidão e o tédio, são estreitamente alinhadas. Ambas são características modernas. As primeiras citações no dicionário de Oxford de cada palavra, pelo menos no sentido contemporâneo, datam do século XIX. A Suburbanização[1] pela eliminação do estímulo, bem como a socialização da vida urbana ou interiorana tradicional, exacerbou a tendência de ambas. Mas a grande Era do Tédio, acredito, vem com a televisão, precisamente porque a televisão foi designada como paliativo a esse sentimento. O tédio não é necessariamente uma consequência de não se ter nada pra fazer; é apenas a experiência negativa deste estado. A televisão, por evidenciar a necessidade de aprender como fazer uso da falta de atividade, radicalmente impede as pessoas de descobrirem como aproveitá-la. Na verdade, ela alimenta uma noção de temor sobre essa condição, seu prospecto intolerável. Você fica apavorado com a ideia de ficar entediado - e então você liga a televisão.

Falo com propriedade. Eu cresci nos anos 60 e 70, a era da televisão. Fui treinado para ficar entediado; o tédio era cultivado em mim como valioso produto. (Já foi dito por aí que a sociedade de consumo deseja nos condicionar ao tédio, uma vez que é ele quem cria o mercado do estímulo.) Levei anos para descobrir – e meu sistema nervoso nunca irá se ajustar totalmente a essa ideia, eu ainda preciso lutar contra o tédio, estou permanentemente corrompido quanto a isso – que não ter nada pra fazer não necessariamente precisa ser algo ruim. A alternativa ao tédio é o que Whitman chamou de ociosidade[2] : uma recepção passiva ao mundo.
E assim é com a experiência da geração atual em ficar sozinho: este é precisamente o reconhecimento implícito na ideia de solidão; que é para a solidão o que a ociosidade é para o tédio. Solidão não é a ausência de companhia, é o sofrimento sobre a ausência. Uma ovelha perdida está só; o rebanho não está sozinho. Mas a Internet é uma máquina poderosa na produção da solidão como é a televisão na manufatura do tédio. Se seis horas de televisão por dia criam aptidão para o tédio, a inabilidade de ficar consigo, uma centena de mensagens de texto por dia cria a aptidão para a solidão, a inabilidade de ficar consigo. É de se esperar algum grau de tédio e solidão, especialmente entre pessoas jovens, dada a forma com a qual nosso ambiente humano tem se amortizado. Mas a tecnologia amplifica essas tendências. Dava pra ligar pros meus colegas de classe quando eu era adolescente, mas não dava pra fazer isso 100 vezes por dia. Dava pra curtir com meus amigos quando eu estava na faculdade, mas não dava pra fazer isso sempre que eu quisesse pelo simples fato de que não era possível sempre encontrá-los. Se o tédio é a grande emoção da geração da TV, a solidão é a grande emoção da geração da Web. Nós perdemos a habilidade contemplativa, nossa capacidade para a ociosidade. Eles perderam a habilidade de ficarem a sós consigo, a capacidade para a solidão.          

E ao perder a solidão, o que eles perderam? Primeiro, a propensão à introspecção, aquela avaliação do eu que os puritanos, os românticos e os modernistas (e Sócrates, portanto), situaram no centro da vida espiritual – de sabedoria, de conduta. Thoreau chamou isso de pesca “no lago de Walden das (nossas) própria naturezas”, “arma(ndo)nossos anzóis para (com) a escuridão.” Perdida, também, está a tendência para sustentar a leitura. A internet trouxe o texto de volta ao mundo televisual, mas o fez em termos ditados por este mundo – ou seja, por seu remapeamento, nossa atenção se fragmenta. Ler, agora, significa dinamizar e compactar ao extremo; cinco minutos na mesma página é considerado uma eternidade. Esta não é a leitura conforme descreve Marilynne Robinson: o encontro com o segundo eu no silêncio da solidão mental.

Mas nós não acreditamos mais na mente solitária. Se os românticos tinham Hume, e os modernistas tinham Freud, o atual modelo psicológico – e essa constatação deveria surgir sem surpresas – é o da mente interligada ou mente social. A psicologia evolucionária diz que nossos cérebros se desenvolveram para interpretar sinais sociais complexos. De acordo com David Brooks, o índex do zeitgeist social-científico, cientistas cognitivos dizem que “nossas decisões são poderosamente influenciadas pelo contexto social”; neurocientistas, que nós temos “mentes permeáveis” que funcionam, em parte, por um processo de “profunda imitação”; que “nós somos organizados por nossos afetos”; sociólogos, que nosso comportamento é afetado pelo “poder das redes sociais.” A mais refinada das implicações é de que não há espaço mental que não seja social (a ciência social-contemporânea se encaixando aqui com a crítica teórica pós-moderna). Um dos fatos mais impressionantes sobre o modo como os jovens se relacionam hoje é de que eles não parecem acreditar mais na existência da escuridão proposta por Thoreau.

A página do MySpace, com sua tipografia gritante e imagens apelativas, tem substituído o jornal e as letras afim de criar e comunicar a essência do eu. A sugestão não é apenas que tal comunicação seja feita ao mundo ostensivamente em detrimento de si mesmo ou às pessoas íntimas de alguém, ou graficamente mais que verbalmente, ou performaticamente mais que narrativamente, ou analiticamente; mas também de modo que isto possa ser feito completamente. Os jovens de hoje parecem sentir que podem se tornar completamente reconhecidos uns pelos outros. Parecem não ter noção de até onde vão suas próprias profundezas, e o valor de manterem-nas escondidas.

Se eles a tivessem, entenderiam que a solidão possibilita assegurar a integridade do eu bem como explorá-la. Poucos demonstraram isto de maneira mais bonita que Woolf. Pelo meio de Mrs. Dalloway, entre suas andanças pelas ruas e a organização da festa, entre o amálgama urbano e o amálgama social, Clarissa ascende, “como uma freira se retirando”, ao seu quarto no sótão. Como uma freira: Ela retorna a um estado que ela mesma considera como um tipo de virgindade. Isto não significa que ela seja uma puritana. A virgindade é, tradicionalmente, o sinal externo de uma inviolabilidade espiritual, de um eu imaculado pelo mundo, uma alma que preservou sua integridade por meio da recusa ao se rebaixar ao caos e à autodivisão através de relações sociais e sexuais. É a marca do santo e do monge, de Hipólito, de Antígona, de Joana d’Arc. A solidão é tanto a imagem social deste estado quanto os meios pelos quais nós podemos nos aproximar dela. Em Mrs. Dalloway, a imagem suprema da dignidade da solidão em si é a velha a quem Clarissa observa de sua janela. “Aqui havia um quarto”, ela pensa, “ali, outro.” Não somos seres meramente sociais. Nós também existimos em separado; cada um, uno, cada um sozinho em nosso quarto, cada um milagrosamente existindo em nosso eu único e misteriosamente encerrado nesta individualidade.

Pra lembrar disto, manter-se à parte da sociedade é começar a pensar o caminho para além dela. A solidão, diz Emerson, “é para o gênio o amigo austero.” “Aquele que deve inspirar e liderar sua raça deve privar-se da companhia das almas de outros homens; de viver, respirar, ler e escrever na cotidiana algema comum de suas opiniões.” É preciso proteger a si mesmo da corrente do consenso moral e intelectual – em especial, Emerson acrescenta, durante a juventude. “Deus está sozinho,” disse Thoreau, “mas o Diabo, ele está longe de estar sozinho; ele vê grande proveito na companhia, ele é legião.” A universidade era para ser apreciada, Emerson acreditava, apenas se proviesse seus custos com “um quarto individual e uma lareira” – o espaço físico da solidão. Hoje, claro, as universidades fazem tudo quanto podem para privar seus estudantes de ficarem sozinhos, para que não perpetrem atitudes autodestrutivas, e também, talvez, pensamentos antiquados. Mas nenhuma excelência de verdade, pessoal ou social, artística ou filosófica, científica ou moral, pode surgir sem solidão. “O santo e o poeta buscam a privacidade,” Emerson diz, “para encerrar o mais público e universal.” Nós nos voltamos à figura do visionário, buscando sinais para o futuro, em esplêndido isolamento.

A solidão não é fácil e não é pra todo mundo. Indubitavelmente, nunca fora o território de mais que uns poucos. “Acredito,” Thoreau diz, “que homens, de modo geral, ainda têm um pouco de medo do escuro.” Teresa e Tiresias sempre serão exceções, ou por assim dizer, em termos mais relevantes aos jovens – e eles ainda existem – que preferem vagar e olhar pra dentro, que cantam enquanto andam à batida de um baterista diferente. Mas se a solidão fenece enquanto valor e ideia social, será que mesmo as exceções permanecerão possíveis? Ainda, o indivíduo não tem o poder de reverter o curso da cultura. O indivíduo pode salvar apenas a si mesmo – e tanto faz o que aconteça, ele ainda poderá sempre fazer isso. No entanto, isto custa a apatia de ser impopular.

A última coisa a considerar sobre a solidão é que ela não é muito elegante. Thoreau sabia que a “ambiguidade” que a solidão cultiva, a habilidade de dar um passo para trás e observar a vida de forma desapaixonada, é capaz de nos tornar um pouco desagradáveis aos nossos companheiros; não dizer nada e, na ofensa implícita, evitar a companhia deles. No entanto, ele não se preocupou muito quanto a ser cordial. Ele nem mesmo gostava de ter que falar com as pessoas mais de três vezes por dia, durante as refeições; imagine só o que ele teria feito das mensagens de texto. Nós, entretanto, fizemos da genialidade – o sorriso fraco, o interesse educado, o convite falso – uma virtude cardinal. A amizade pode ser escorregadia ao nosso controle, mas nossa amistosidade é universal. Não é á toa que “gregário” significa “parte do coletivo.” Mas Thoreau entendeu que salvaguardar a própria autonomia custava pequenas mágoas. Provável que ele tivesse enxotado vizinhos, mas ao menos era seguro de si. Aqueles que pretendem encontrar a solidão não devem ter medo de estarem sozinhos.

William Deresiewicz escreve ensaios e críticas para uma variedade de publicações. Lecionou na Universidade de Yale de 1998 a 2008. Esta é uma versão compacta de um artigo publicado na The Chronicle Review, em 30 de janeiro de 2009.

[1] No contexto americano, os subúrbios são bairros afastados dos grandes centros urbanos nos quais as classes mais abastadas localizam-se, diferentemente do Brasil, por exemplo.

[2] idleness. conceito abundantemente explorado por Whitman, Thoreau, Emerson e outros. "Contemplação" é uma boa alternativa à palavra "ociosidade", mas dentro do texto torna-se ruidosa.

O texto completo pode ser encontrado em http://chronicle.com/article/TheEnd-of-Solitude/3708

Tradução: Ana Líbia Fernandes, 09/11/2017



segunda-feira, 6 de novembro de 2017

[CRÍTICA] [TRADUÇÃO] Ela (Spike Jonze) - o cinema e problemas de tradução de títulos


 Certa vez, no meio de uma conversa, um amigo compartilhou comigo a estrofe de um poema brilhante de Carlos Drummond de Andrade para ilustrar uma consideração a cerca da tradução. Parte da estrofe do poema em questão, Procura da Poesia, assim seguia: "Penetra surdamente no reino das palavras./ Lá estão os poemas que esperam ser escritos./ Estão paralisados, mas não há desespero,/ há calma e frescura na superfície intata./ Ei-los sós e mudos, em estado de dicionário./ Convive com teus poemas, antes de escrevê-los.[...]". Meu amigo valeu-se da expressão contida no quinto verso, estado de dicionário, para colocar um dos maiores problemas da tradução. É justamente esse problema um selecionador de tradutores. Para efetuar uma tradução no mínimo competente - uma vez que a tradução perfeita é uma ilusão - é preciso compreender que, no texto escrito, as palavras já deixaram o estado de dicionário no qual se encontravam antes; estão despetrificadas. Traduzir, portanto, é acompanhar o movimento que realizaram no deslize textual, aprender a andar com essas palavras, respirar fundo e humildemente pedir licença para replicar a trilha feita pelo indivíduo que pensou o argumento fundamental, transpondo-as para outro território, outro lugar, com uma leitura que, de preferência, ainda estabeleça uma conexão possível com o original. Entre muitos outros poetas, Ferreira Gullar também já ruminou a complexidade da tradução em Traduzir-se, 1980, poema no qual empresta à construção de duos a condição de corda-bamba na qual a tradução permanentemente se situa.

Se no meio literário a tradução configura um problema prolífico, a velocidade de distribuição do cinema, especialmente o comercial, aterra as possibilidades de teorização sobre a tradução em embalagens prontas e rápidas para o consumo de massa, o que dá origem a traduções de títulos que variam de mal-efetuadas a preguiçosas; de imprecisas a estapafúrdias. Às vezes, no entanto, há filigranas que reforçam ainda mais a intradutibilidade de certos exemplos.

É o caso de Her, ou como foi chamado no Brasil, Ela, de Spike Jonze, 2013. Mas a tradução não confere? A resposta para essa pergunta é o que diretamente retroalimenta questões da tradução: sim e não. O caminho mais curto para se entender - jamais solucionar - esse problema é se voltar justamente ao corpo do filme.

Her é um filme que se passa em um tempo distópico, no qual a singularidade já foi atingida por máquinas com propósitos aparentemente benignos, e um homem na casa dos trinta e poucos, Theodore, adquire um sistema operacional com o qual começa a se relacionar. O sistema operacional tem um nome e a promessa de interagir naturalmente com ele, baseando-se em todas as suas informações levantadas num escaneamento feito em alguns segundos, vasculhando suas memórias como um amigo de longa data. Na escalada do filme, Theodore e Sam, o sistema, desenvolvem uma amizade que parece dar acalanto aos anseios do homem, e tendo o sistema a voz feminina mais sensual do cinema contemporâneo - ninguém menos que Scarlet Johansson - a amizade esperadamente evolui para o envolvimento afetivo.

Spike Jonze, então, desenrola com classe o fio de sua narrativa, explorando de maneira rica e criativa as possibilidades de interação entre orgas e mecas, termos usados em outro filme que também trabalha a questão da inteligência artificial. Acontece que as (i)limitações trazem complicações que a fita espiraliza em seu terço final, e mesmo assim o filme não entrega um panfleto direto sobre as consequências da inteligência artificial. Mas já que este texto não é uma crítica de cinema, nos voltemos a outros aspectos.

Her recebeu a melhor tradução que poderia, e ainda assim, entre o título original e o título brasileiro existe uma grande, e ao mesmo tempo sutil lacuna, que na verdade representa o filme todo, em um patamar que está além da gramática, da sintaxe, da semântica, da própria palavra. Em inglês, her serve a dois propósitos que em português são impossíveis, atuando tanto como adjetivo possessivo feminino quanto pronome oblíquo feminino. Em português, ela é um pronome pessoal do caso reto. Na ordem oracional convencional, o pronome encabeçador é o pronome pessoal, que em inglês tem sua versão feminina em she.

Existe uma razão para que o filme tenha sido chamado Her, e não She. Apesar da tradução ser exatamente esta, ela desconsidera uma instância crucial de hierarquia existencial entre os sujeitos; hierarquia esta que determina a passividade e a ação dos atores na narrativa. Mesmo sendo uma máquina de raciocínios sem competição, Sam, a priori, existe em função de. Lhe falta uma subjetividade inalcançável, que se reflete em seu permanente estado de coisa, de instrumento. Ela não é um indivíduo com agência, e o palpite aqui é que seja esta fundamental falta de agência o que relega a ela o título de obliquidade, o lugar do outro, da dependência para ser; enquanto Theodore, por mais ordinário que se mostre, um homem como todo mundo, tem a provável última coisa que o legitima enquanto ser humano: um pronome pessoal e intransferível. A hierarquia existencial está aí: ele independentemente existe, ele está sobre ela. E não importa que ela seja o objeto de seu afeto, o que o colocaria em alguma posição de vulnerabilidade, porque não é disso que se trata. Ela ainda é justamente isto: objeto. Um objeto que está subordinado a Theodore; sintática, e - por que não - existencialmente.