terça-feira, 1 de dezembro de 2009

Mal do século



Fumaça,
Fogo,
Ferro,
é foda.
Onda,
Óleo,
Ojeriza,
é orgia.
Lama,
Lítio,
Lástima,
é lágrima.
Vidro,
Vício,
Vexame,
é vergonha
Entúlio,
Espuma,
Espólio,
é escroto.
Plástico,
Plugues,
Papel,
é putaria.
Cimento,
Concreto,
Cianeto,
é cegueira.
Desperdício,
Doença,
Detrito,
é deliberado.
Metal,
Madeira,
Merda!
é mortificado.

Caríssimos e fantasmagóricos,

Sei que tenho estado MUITO ausente por aqui. E minha ausência bateu um recorde: um mês, e uma única postagem. Por favor, me entendam. Fim de ano, eu tenho que organizar a prova dos meus alunos, me organizar para as minhas, facul-trabalho-trabalho-facul e uma night aqui e acolá. Ninguém é de ferro e eu sou mais a vida lá fora que essa.
Prometo (tá bom, eu vou tentar) compensá-los nos próximos dias.
Muito obrigada aos que vem,
Bem-vindos os que chegam - desculpe a bagunça, não repare por favor,
Boa sorte aos que vão!
Beijos,
Da interlunática. ;)

quarta-feira, 11 de novembro de 2009

Ao poema

O poema... é um corpo que
tomba na imensidão do nada. E
queda-se longamente,
tentando abraçar-se aos
galhos fluidos
que ladeiam as paredes do
abismo.
O poema canta o ordinário.
Em sua língua estão pedras no caminho,
casas entre bananeiras
moças subindo ladeiras e
dentes-de-leão alados.
Não se envaidece em castelos. Nem em reinos de areia e ar.
O poema cambaleia, e engasga
quando sai da boca negra das canetas
para aportar em segura e branca
folha de papel - até aqui
nadou a cegas braçadas pelos mares odisseicos do pensamento -
É a força de nascer.
O poema é um monstro. É um deus.
A ele o que mais interessa
é a função de caber-se em si
e escapar de si
enquanto devora as gordas beiradas que o cerca.


*Iniciado dentro de um ônibus em movimento e finalizado no apagão do Rio (10/11/09)

quarta-feira, 21 de outubro de 2009

18, outubro

Hoje aniversaria teu óbito
- espontâneo, incógnito -
que me vara o peito em silêncio e luto
sem fazer sentido.

Tens cheiro de flores frias
Incolores, vazias.
Tens tão inerte expressão
Que assim cristalizada
Não há coração que esqueça.

Cristalizado tu
aqui estais em minha cabeça.
Eu fugi, e de novo o faria
do teu retrato meramente cadavérico.
apertei os olhos e não dei aqueles passos
- não era você ali, e não é.

Mas que absurdo é a morte! Deslavada paródia!
Confere a ti onipresença,
Estereliza dos progenitores teus o sorriso,
Me assalta a crença!

Mas vai. Vá e adormeça.
Quiçá um dia eu te encontre
nos braços da paz.
Vá e adormeça!
Ainda que a sanidade feneça
e as traças roam minhas memórias
Tua imagem é o oratório
onde parte de mim jaz.

Para meu amado Marcelo, cuja ausência ainda dói em mim.

*Subitamente, o blog foi atacado. E por um anônimo. Recado pra você: esse tipo de juízo não me interessa.

quarta-feira, 7 de outubro de 2009

Tribos da lua

Anoitece leitosamente por toda a cidade. A noite veste todos os cantinhos, e com esse ato nobre de anoitecer, cobre pedaços. Pedaços dos monumentos, dos momentos, dos postes, dos posters, das pessoas. As pessoas vagam pela cidade, expondo sempre a ínfima parte do que são de acordo com o fuso. Uns estão mais à mostra quando é de dia. Outros existem mais plenamente sob a magnético-enigmática influência lunar, e é dela que pretendo falar hoje.
Vejo gente diferente por todos os lados. As tribos da lua têm legendas que estão para os notívagos e os noturnos tais quais o braile está para o cego. Ninguém aqui é bebedor de sangue, mas também possuímos as asas pontudas da imaginação que captam bem os sons, que, como nós, só existem neste horário. Sons. São um bom guia - uma vez que a vista, já meio senil, não tem a mesma eficiência que os ouvidos. As tribos da lua são muitas. São as crianças vendendo amendoim do terminal de Niterói. É o cadeirante disforme que vende pipoca. São os velhos, as barbas sujas das caras macilentas parecendo cracas em naufragadas embarcações, dormindo sobre papelões. São os loucos, babando sua secreta verdade.
Enquanto a parca luz noturna esconde parte de seus rostos, ela espraia sua face mais dura, mais crua. São crentes orando por desvalidos. São os mulatos no pagode numa sexta-feira. São as putas e os travecos das esquinas, defendendo seu qualquer, os bêbados que adormecem com um sorriso vagabundo no rosto, os cachorros magros cheirando a carniça; Rose voltando da casa dos patrões para abraçar a filha. Nenhum deles se conhece, mas todos se convergem em um único mural, onde é a noite o regente.
Seja de modo glamourizante, seja sob seu prisma mais real, todas as tribos dessa cidade lunar têm essa mesma essência de se instalar sob o clima underground que a noite traz. Pela manhã, são meros outros. A luz do sol é turbulenta, egoísta, e ofusca as partes mais interessantes e verossímeis dessas pessoas. Na calmaria da luz noturna, a retina se relaxa e se expande, conseguindo ver (e assimilar) muito melhor os contornos, os desenhos e as expressões. Na noite, o território das fantasias ganha dimensão, porque, no escuro, elas têm onde se esconder, e brincam com o nosso imaginário. Nada é tão óbvio, ninguém me garantiu que os pequenos vendedores de amendoim não são anjos; que os pobres velhos que dormem nos bancos não são piratas falidos; que os fervorosos oradores não são assassinos. A lua tem esse poder de metamorfosear, de desdobrar, feito papel de bala, a mente humana.
As tribos que ritualizam suas verdades ao luar são as mais sinceras.

quinta-feira, 24 de setembro de 2009

Vício



Dançando, sobe
em espirais azuis,
brancas,
acinzentadas.
Poluindo, sobe
e vejo dragões
pequenas gueixas,
e vejo flores estranhas
na sua transparência tão subjetiva,
tão tacanha.
Sobe, e conforme sobe,
se desdobra e evanesce,
se integra ao invisivel ar,
desintegra meu alvéolo pulmonar,
seu cheiro abrindo os matagais dos meus cabelos
seu cheiro entranhando nos meus dedos.
Póstuma, sobe
E há tanta poesia no seu pós-morte
Tanto Jimmy Dean, tanto Kerouac
que é na neblina mental - cabeça de vento, eu não penso
que ela ainda sobe,
e sobe,
e sobe.

quinta-feira, 17 de setembro de 2009

O medo

Medo é uma palavra que, no momento em que deixa a boca, altera a freqüência cardíaca. Medo que dorme debaixo de cada nervo, que dorme debaixo da cama. Medo que arregala olho, medo que levanta pêlo. O medo que mora em nós é coberto por uma redoma de grosso cristal fumê, que pretende aprisioná-lo assim.
O medo é um tabu. Não há quem goste de pensar ou falar do próprio medo, seja ele medo de barata ou medo da morte. Medo é coisa inconfessável, quando é medo de verdade, e não um mero temor. Desenvolvemos respeito por nossos medos, quando sabemos ou nos convencemos de que não podemos com eles.
É certo que muita gente encara seus fantasmas pessoais de frente, corajosas essas pessoas. Mas uma grossa parcela prefere abandonar a questão - e aqui me insiro também. Porque o medo, quando se agiganta, e se dissemina em descargas elétricas por dentro de nós tem um efeito tão devastador que anestesia e necrosa a força de vontade para lutar contra. Esse medo é perigosíssimo, porque é do tipo que descamba para depressões irreversíveis, aprisionando o indivíduo no desestímulo de viver. Pode soar um parecer negativista, mas é apenas uma realidade pontiaguda que vara a vida de tantas pessoas em segredo.
Apesar de tudo, particularmente acredito que todo ser humano tem uma tendência a se levantar. O mesmo medo que acua a espécie é também fomento da curiosidade, da busca pelo novo, o que move o homem em direções inéditas. Certos medos são necessários por nos guardarem do pior, como Ícaro mesmo ensinou. Mas na mesma medida em que se deve temê-lo, deve-se enfrentá-lo, pois é das trevas da psique humana que se dá o nascedouro das idéias.

sexta-feira, 11 de setembro de 2009

Curtinhas modernistas à Ana que nunca dorme


Amizade entre opostos

Dois mil e nove. Que ironia.
Sou sua amiga, sou por você bem quista.
Eu, moça de esquerda; você, rapaz capitalista.
Os tempos fossem outros
Me chamarías comunistóide
E eu a ti fascista.

Para Fabio Luis

Dos dedos

Antes de tudo, a música. Assim
Verlaine disse.
Mas a música não se fazia
não nascia
não havia quem ouvisse.
O som
entrecortado de anacolutos (brutos)
tinha cara de caminho
- ela era autodidata e não sabia ler
De lá pra cá
iam os dedos
desengonçados, bêbados.
Mas no fim
o arranjo e a sobriedade - de grinalda e véu
se casavam.

terça-feira, 8 de setembro de 2009

O quem

Quem viu?
Quem calou o rei?
Quem riu?
Quem é o novo fora da lei?
Quem matou John Kennedy?
Quem inventou a roda?
Quem acendeu a luz?
Quem concebeu a moda?
Quem quebrou os braços de Milo?
Quem mantém sigilo?
Quem foi embora?
Quem jogou Nardoni?
Quem desenhou em Nazca?
Quem foi a Woodstock?
Quem aí tem 'T.O.C'?
Quem martelou Cristo?
Quem estragou isto?
Quem roubou o banco?
Quem desceu do tamanco?
Quem sabe contar história?
Quem tem um cigarro?
Quem tem fé?
Quem já entrou num cabaret?
Quem mijou fora do penico?
Quem tem medo de milico?
Quem você quer tanto beijar?
Quem come frio?
Quem sente o vazio?
Quem desistiu de tentar?
Quem dorme acordado?
Quem não é amado?
Quem se suicida devagar?
Quem já andou de nave espacial?
Quem se assume boçal?
Quem ofendeu o anjo?
Quem desfez o arranjo?
Quem me pergunta, afinal?

sexta-feira, 4 de setembro de 2009

Mulheres de Almodóvar


As mulheres de Almodóvar têm todas uma boca. Um cabelo, bem no alto da cabeça, irregular; elas têm uns peitos. Peitos não, elas têm um busto. É. É isso mesmo, um busto. Mulheres de Almodóvar não têm ressacas, mas maremotos inteiros morando nas retinas. E cada olhar duma mulher almodovariana sabe muito bem o que pretende.
As mulheres de Almodóvar vão à feira, catam as melhores hortaliças. Tagarelam com o vizinho sobre qualquer bobagem, são freiras aidéticas, toureiras que temem cobras. E cagam zepelins. Ah, elas cagam! As mulheres de Almodóvar são pequenos retalhos duma plebe de saias. De renda vermelha.
As mulheres de Almodóvar facilmente engolem os (reduzidos) homens de Pedro. Fazem sexo com eles, sem que para isso precisem sair do salto. As mulheres de Almodóvar têm um sangue essencialmente hispânico, cheiram a azeite e sândalo, e se você as colocar próximo ao ouvido poderá ouvir o quente estalar das castanholas madrilenas.
Almodóvar desenhou mulheres já existentes; tudo o que fez foi acrescentar uns tantos de pimenta, cardamomo e lascívia aos naturais encantos delas. Ah, as mulheres de Almodóvar são tão humanas e tão táteis! São embrutecidas de cotidiano, e amainadas por sonhos baratos... ah, Almodóvar! Tuas mulheres são gostosas, como nacos de fruta madura, bem caetaneadas na firmeza do corpo, cheias de problemas, cheias de vícios, cheias de canções! São Marias, Anas, Penelopes, Dulces; tuas mulheres são graciosas até quando não produzem estrogênio.
E o melhor é que elas são tão possíveis...
tão possíveis, Almodóvar, tão possíveis!

segunda-feira, 17 de agosto de 2009

As senhoras

Elas sempre estavam ali. E não estavam. Todo mundo via, todo mundo sabia, e ninguém confirmava. A mais nova delas era tão discreta, tão sutil, tão imperceptível quanto uma prateleira de frascos vazios no meio do espasmo sonoro da família à qual a mais velha pertencia. A mais velha. Era uma leonina tão vulcânica, mas tinha, por doutrina, a sinceridade. Quizumbeira. Costumava rosnar para os amigos e namorados novos das sobrinhas adolescentes, até que caíssem no seu gosto ou que os admitisse. E sempre bebia demais, sempre passava do ponto. Talvez isso as equilibrasse.
E elas eram amigas há muitos anos. Se amavam muito, sempre cuidavam uma da outra. As crianças não entendiam aquilo. A mais nova era uma 'tia' sempre longínqua - afinal, onde estava o tio? E aquele véu de incompreensão notório dos menores também povoava a mente dos adultos. O que havia ali? Elas desconfortavelmente tinham ciência da incógnita.
Não se assimilava muito bem. Afinal, a senhora mais velha tinha um filho criado. Sobre a mais nova, pouco se sabia. E ali sempre figuravam. Nos casamentos, nas festas infantis, nos churrascos, nos almoços dominicais. Com aquela aura de uma questão em suspenso; algo que se sabe, mas que se tabuliza para que não se firam orgulhos. Assim elas eram. Duas pretas bonitas, comedidas, que rezavam a cartilha da continência para não escandalizar moralmente os reis.
E todos convinham, sem que fosse preciso verbalizar, que essa paz um tanto hipócrita era bem mais conveniente.

E deste modo, elas sempre seriam duas senhoras obscuras tomando café.

sexta-feira, 14 de agosto de 2009

Montanha-russa


Ela começa a subir, lenta e progressivamente, num movimento retilínio uniforme. Conforme ganha altura, cresce a tensão em mim, acentuada pelo ruído das suas engrenagens dando com os dentes uns nos outros. Daqui de cima dá pra ver bastante coisa, a vista parece ter expandido ou o horizonte parece maior, enquanto o céu está ao alcance dos dedos. Não sei.
Ela pára. Atrás de mim, os outros passageiros do vagão começam a gritar euforicamente, entre uma criança e outra que chora. A cena se congela assim por uns dez segundos, tanto para que se aprecie esse mirante quanto para potencializar a taquicardia na seqüência. Em seguida, o "crack" avisa que agora ela vai descer.
Quebrando numa curva bem fechada, ela furiosamente abocanha os primeiros trilhos para então mergulhar na queda livre que provoca, mesclando medo e exitação, aquela sensação absurdamente deliciosa e única que se derrama inteira sobre cada nervo do corpo em adrenalina, e só quem já experimentou sabe do que estou falando. Eu estou no primeiro banco do vagão, e a poderosa rajada de vento deforma as expressões do meu rosto. Ela vai subir de novo, mas numa elevação menor, para novamente se lançar do alto, em uma construção de ferro e sonho tão contorcida que desafia a engenharia humana. É pura física. É pura inércia. É puro encanto.
A essa altura, quem tivesse moedas no bolso já deve tê-las perdido para a gravidade. A volta do parafuso faz o delírio da galera, que de braços para o alto, saúda a emoção de estar ali. A tarde de sol coroa o cenário, e Daft Punk pedindo mais nas caixas de som dá voz à vontade de todos nós, que sabemos que o prazer está chegando ao fim. E ele vem, enfadonho, na desaceleração do carro ao encontro da estação, como quem acorda de um sonho bom. As pessoas que vão saindo, como eu, parecem rodopiar, sem concatenar os passos. A montanha entrou nelas, e elas vão ficar presas em sua mágica.
Pra sempre.

quinta-feira, 13 de agosto de 2009

Se quer caô... vai ter caô

O funk já é polêmico desde o seu berçário. Traz, na ferocidade lingüística de suas letras, na assinatura (muito física) de sua difusão, a expressão mais forte de uma massa marginalizada pela especulação capitalista que existe e que permeia todos os braços da sociedade, tendo aqui como objeto a carioca, de onde esse movimento é originário, ainda que seja oriundo da black music produzida nos E.U.A nos idos de 70. E a cultura do funk pulou quase todos os muros: do morro pro asfalto, do pobre pro rico, do preto pro branco, do Brasil pro mundo; mostrando, definitivamente, que este estilo, tanto musical quanto de vida, se incorporou a muitas das esferas que atingiu com o seu alcance referenciário.
Com essa repercussão toda, o funk, exposto, fica facilmente atacável pelos conservadores, retrógrados entre outras pessoas de mesma mentalidade, ou, simplesmente, pelos não-adeptos do gênero, que não conseguem enxergar nele uma unidade cultural massiva, que está muito além de sexo, drogas e tiroteio. Só que o funk, dessa vez, fez barulho alto demais.
Foi aprovada uma lei estadual que visa, literalmente, barrar o baile. O correto seria que ela fosse submetida a um longo trâmite, mas quem liga para o que é correto nesse país? Fundamentada em alegações de cunho duvidoso - tangenciando o preconceito e uma repressão de caráter ditatorial no que diz respeito, respectivamente, ao 'excesso de erotismo' das músicas e à autoridade conferida à polícia para acabar com a festa, invasivamente e sem aviso prévio - a controversa lei Álvaro Lins está levantando duas grandes ondas em progressivo choque: de um lado da mesa, os defensores, que apontam uma relação associativa dos bailes com a criminalidade, e que acreditam que esta seja uma medida válida e seus opositores que, além de considerarem uma alternativa autoritária, já anteveêm sua previsível ineficácia por conta de sua má-formação estrutural. E eles não estão errados.
Essa é uma emenda descaradament fascista, em cujo bojo habita o espectro de uma polícia integralista por essência. O funk é uma arte consolidada, e não há a menor necessidade - tanto quanto essa lei é desrespeitosa - do mesmo ter de se reafirmar a todo instante enquanto tal.
Inacreditáveis episódios como este infelizmente releêm, por exemplo, a presença reativa da polícia contra os sambistas do século passado, que eram violentamente repreendidos sob a frouxa acusação de vadiagem. Agora, pode até soar hilário, mas o preconceito só teve o trabalho de mudar de nome, e hoje é velado pela tênue cortina de hipocrisia. Isso é muito sério porque, dentre muitas outras razões para a institucionalização dessa medida, figura espinhosamente o fato do funk ser música de preto, ser música de pobre. E os discursos do preto e do pobre tendem, desde sempre, a ser silenciados por "forças maiores" para não criar alardes - ou seriam arrastões?
Seja como for o andamento da questão, vai dar caô. Porque agora, talvez pela primeira vez, reverbera, em todas as direções, uma voz que, através da promoção do diálogo em inúmeras rodas sociais, vai lutar contra esse abuso de poder. Uma voz mosaical, que abrange tanto a doméstica quanto o doutor, e em seu caráter unificado, representa uma real possibilidade da mudança não só do ponto de vista efetivo-pragmático, mas também na maneira de se pensar o funk enquanto um fractal identitário.

quarta-feira, 12 de agosto de 2009

A beleza do rascunho


Penso. Repenso. Dispenso. Risco, rabisco, concateno. A extremidade da caneta pendendo no canto da boca distraida. Os olhos castanhos perdidos nas linhas azuis. A tinta que salpica a palma da mão, a folha que pensa ser coração. A inquietude dos minutos.
O prazer ordinário e simples de manuscrever. O incansável e egoístico exercício da grafia perfeita, o vai-e-vem ruidoso que faz a esfera da caneta, que com um borrão desfaz o que deu errado. O que não encaixou. O preterido. O equivocado. O papel, em patchwork de manchas; manchas cobrindo pedaços inteiros de indecisão; manchas espalhadas, indentitárias.
O calo no Seu Vizinho, o peão da (minha) escrita. A graça, a importância da rasura. Faço, desfaço, melhoro. As imagens mentalizadas, que com muito esforço se afunilam para tentar sair pelo ducto estreito e libertador da caneta. A alforria viciosa, viciosa, viciosa de escrever. A construção. A hesitação. A seleção lexical. Gol!
O déficit entre um pensamento e outro. A estrutura organizacional do texto, a estrutura organizacional do papel, a disposição das palavras na folha, tão estrategicamente deitadas. Os pequenos borrões de tinta uma vez mais, que as costas do Mindinho carrega, sujando tudo o que fica pra trás. O amassar duma idéia que não prestou, e a cíclica sem final de começar de novo.
A arte impressa no testemunho.
A imaginação dançando pelo punho.
A beleza do rascunho.

Tamanho único

Chego à loja. Mal respiro entre as araras, a vendedora de sorriso aparafusado se apresenta e diz que, qualquer coisa, é só chamá-la. E eu chamo. Pergunto se tem dessa blusa tamanho M, a predominância da mulher brasileira - aliás, alguém precisa avisar a lojas como Colcci, Cantão, Farm e afins que as gordas também existem. Qual não é a minha surpresa quando ela me responde que aquela blusa que está suspensa pela minha mão é... M. "M? Tem certeza?" Pergunto, incrédula. "Sim, é porque esse M é pequeno mesmo..." Ué? Se o 'M' é pequeno, não seria ele... 'P'? Simples: etiquetaram errado a peça... certo? M, até onde eu sabia, era a inicial de médio, mas acho que os fabricantes de roupas, principalmente de lojas dessa estirpe aí ressemantizaram esse M pra mignon. E quem sofre sou eu: roliça, baixinha, seios pequenos, costas largas, bunda grande e perna grossa. Ó, moda excludente!
Para achar calças então... uma odisséia. Sou adepta da skinny, embora a balança já esteja no vermelho, apitando que é melhor eu arrumar outra coisa pra gostar. Mesmo assim, não abro mão. Geralmente, um descomplicado 42 resolve os meus problemas. Mas e a fôrma mal feita? E o gancho muito baixo? Apesar de adorar, não, eu não vim comprar saruel, cacete. E o cós muito alto? Hello, the 90's are gone, e hoje eu só vim atrás de uma impossível skinny! Uma harcoriedade, afinal, eu não sou a Giane Albertoni - e pra ser sincera, nem gostaria.
Etiquetas, etiquetas. Às vezes, a impressão que eu tenho é que etiquetaram tudo errado só de sacanagem. P pra parrudas e G, de galetos. E o que dizer do famigerado tamanho único, que pretende, abusada e abusivamente, universalizar os contornos do mulherio? Absurdo. Não sei se os homens passam por este tipo de problema, e acredito que não passem, mas nada faz mais sentido no universo bizarro das etiquetas, e achar um M ou 42 de verdade pode acabar virando um ofício razoavelmente remunerado num futuro não muito distante, no que depender da progressiva incoerência anatômica dos fabricantes de roupas.

quinta-feira, 6 de agosto de 2009

Perdas, ganhos e danos


Começou numa dança estranha
de palavras eletrônicas
de imagens difusas
de juras sem piso nem direção.
Quando eu vi,
Já tinha largado a casa.
Amor,
juízo.
Linhas imaginárias e intáteis
que me enquadravam dentro do aceitável
e do plausível.
Quando abri os olhos
Já não tinha mais chão, não tinha teto
Já não tinha mais onde escorar
Só o vácuo
Só o vão
O pedaço vacante de peito que me sobrava
a lamentar um outro tanto que você levava.
E eu abdiquei
de tudo o que era certo
tudo que era sólido
pela via mais torta e insegura
pelo deslumbramento,
pelo perigo
E dei de cara contigo.
Dei de dentes. E de pele, e de beijos, cheiros,
Um amálgama corporal gritado. Intenso.
Não durou muito. Não durou nada.
Saí dele aos pedaços,
confusa,
sem norte,
sem sorte
e sem reação.
Mas se quer(em) saber
Com todos os cacos que ficaram pelo chão,
Com toda a razão pelo ralo na contramão,
Eu faria tudo outra vez!
Porque o que aconteceu, ficou,
E o que enraiza na memória
Não se perde na história.

quinta-feira, 23 de julho de 2009

Sutil - poesia plagiada

Descobri, através de um jornal que está circulando pela UFF, que uma poesia que fiz em 2006 foi PLAGIADA por uma paraense chamada Raiza. Ao abrir o jornal para ler os informes a cerca do ENEL (objeto do jornal) me dei conta de que lá estava "Sutil", uma poesia auto-biográfica que essa menina pegou e, não satisfeita, reintitulou como "Doloso". Seguem os links, para efeito de comparação, e, na sequência, a poesia original.

Blog da menina (e link da poesia plagiada) > http://worldraiza.blogspot.com/2008/08/ela-nunca-mais-ser-mesma.html

Blog de grande difusão na Região Nordeste onde também consta a minha poesia sendo assinada por ela > http://letras-norte.no.comunidades.net/index.php?pagina=1175648545

Link de onde a poesia foi retirada, no orkut > http://www.orkut.com.br/Main#CommMsgs.aspx?cmm=8659387&tid=2478096271811918853

É só uma questão de comparação de datas. E, por garantia, já tenho os prints salvos.
Lamentável. Uma menina inteligente se utilizando da forma mais suja de apropriação: o plágio. Essa praga.

Agora, enfim, segue a poesia original:

SUTIL

Mentiras
Existem
Estão presentes
E rondam
Esperando brechas
Para avançar
Como flechas
Para destruir
Como bombas
Para acabar
E assim
Cíclica e dolorosamente
Para azedar
O gosto, o cheiro.
Mentiras
Existem
E espreitam
Vis, gris
E sorriem
Dos enganos
E gargalham
Das desgraças.
Como traças
Para consumir
Como ódio
Para extinguir.
Como o homem
Para esgotar.

domingo, 12 de julho de 2009

A tal da espera


Há gente que não goste de esperar. Particularmente, conheço muita gente assim. A espera sempre pressupõe uma inquietação, independente do que o que vier depois dela for bom ou ruim. Ela, muitas vezes, representa um estado congelado, suspenso no tempo, que a gente torce desesperadamente pra que se adiante o mais depressa possível, posto que nos separa do objeto-valor. Mas há algo indiscutível e difícil de se perceber no meio disso tudo, que vai além de revistas num consultório, além das televisões que visam adormecer o sentido retardatário, além da fricção dos dedos úmidos de suor: a espera prepara. A espera tempera.
A espera desenha pro futuro um monte de coisas. Se é uma espera trágica, ainda assim, projeta um resquício de esperança de que tudo não corra tão mal. Mas se é uma espera para algo bom... as hipóteses são fantásticas. Inapalpáveis, tamanho é o deleite. Tudo aquilo que só aumenta o desejo pelo extermínio desse meio-tempo. No caso de uma super festa, ou um super encontro, uma super viagem ao desconhecido, por exemplo, é a espera que salpica de encanto o caminho. E até lá ninguém dorme. E ninguém come. Todo mundo quer saber como vai ser, quer antever sempre o melhor possível, sem imprevistos; fantasiar como serão as pessoas, como serão as cores, as sensações. De certa forma, esse tipo de espera engrandece tanto o acontecimento que torcemos cegamente que tudo saia exatamente como o planejado; faz parte da lógica. Esperar é ir comendo pelas beiradas, saboreando os vislumbres de diversão e delírio que antecedem os reais diversão e delírio. E quando chega... temos a ligeira sensação de que ficamos quase uma vida inteira esperando por aquilo. E aquilo está se materializando, se consumando, e é tão intenso e efêmero que a gente não têm consciência disso até que se acaba; todo mundo levantando âncora, guardando barraca, catando do chão e do ar cristais de sorriso e vozes felizes que ficaram no percurso.
A projeção dum evento assim acaba, por fim, sendo muito maior que o próprio evento. Afinal, tudo o que nós temos, no fundo, são as memórias da emoções que vivemos e que remontamos, conforme praticamos essa memória. Enquanto isso, a espera contorna, com fios de ouro e luz, tudo aquilo que será.
Ou não.

terça-feira, 7 de julho de 2009

Dejavúnico

Este é um relato dejavúnico. Vô logo avisando. É como se eu já o tivesse visto, e aqui está ele mais uma vez, se reproduzindo em mitoses sem final. No entanto, há sempre uma quebra em sua linha, que o torna distinto. DejavÚNICO.
Acontece que tô estressada. Mas tão estressada que nem 15 mil terapias em plena Kho Phi Phi me trariam a paz, essa endemoniada e impossível criança. Andando pela cidade e alimentando cânceres silenciosos, aí vou eu. Do alto da minha pobreza físico-intelectual e de um salto que me machuca; grilhão metafórico do meu caminhar rápido e pesado.
Lamentando minhas agonias, que não saem de mim tão facilmente quanto a fumaça que vomito pelas narinas. Perdão, Jefferson. Perdão, Adriano. Perdão, estratosfera. De repente, a estação. E mais de repente ainda, um assalto. Um assalto à minha culpa pequeno-burguesa sobre a exclusidade da dor. Um cadeirante debil mental mija nas calças, desamparado, envergonhado, mas não sozinho: uma louca cruel faz troças de sua incontinência, e, mal desconfia ela, me sinto tão ultrajada e ferida por saber que a debilidade física do infeliz é a figurativização do meu desengonço interno. Meu despercebido desajuste.
Unhas roídas. Estresse. Estresse. Unhas roídas. Cíclica do caralho. Tenho certeza que meu corpo é uma fábrica secreta de puríssima cocaína, muito mais forte que a colombiana. Hoje não há nenhum viajante a meu lado, todo mundo parece estar sangrando por dentro de alguma forma, e eu sinto isso porque esse sangue esguiça dos olhares desconfiados das pessoas diretamente nas maçãs do meu rosto. Saculejo no bonde mágico, que hoje me parece só mais um ordinário e enfadonho ônibus até Niterói. Mas é bem no início da ponte que um dos maiores deuses se mostra. O universo, e só ele, me beatifica com imerecido e singular presente: uma lua, madurinha de tão laranja, que nasce sobre as águas feias da Guanabara, colorindo-as de branco por onde a luz se espalha. Penso: será mesmo que tenho motivos pra reclamar da vida? Será que sou mais uma ingrata? Não. Certo que meus problemas se amiúdam diante daquele cadeirante, a ponto de me fazer questioná-los; mas será que eles somem? Não. Eles estão aqui. Depois da bênção lunar, de um encontro inusitado com uma amiga, se aquietam. Assim como a dor e o pânico não são exclusivivamente meus. Tudo permanece guardadinho, como já dizia Raul, que tudo tá na merma coisa, cada coisa em seu lugar. E certas coisas esperam pra se mostrar. Esperam a hora certa de sair.
Meu dia termina ao som (mental) de The way to Kundalini, dos Monges Budistas. Enquanto eu espero por dias mais amenos.

segunda-feira, 6 de julho de 2009

Casa nova

Tô me mudando.
Tô mudando,
me mudando de mim.
Tô trazendo na mala
Algumas fotos. Alguns cheiros.
Pedaço de biscoito
Um óculos grande contra mau-olhado
E todas as memórias.
Tô me mudando,
mas não vou tão longe.
Tô indo pra uma casinha
Bem no alto de uma terra que ninguém pisa nem governa,
e juro,
Quando eu chegar lá,
vou abrir as janelas.
Tô pegando o primeiro ônibus
Que qualquer caminho vai me deixar lá,
e no percurso,
vou me desfazer dos maus espíritos,
dos fantasmas,
dos papéis velhos amassados.
Tô me mudando.
Dessa vez é pra valer.
Por hora, não conto a ninguém do meu endereço,
já tenho por ele apreço,
por hora, não deixo ninguém entrar.
Tô me mudando.
Casa nova, tinta fresca,
A sala sem mobília e uma fome animalesca.
Eu sinto sorte.
Começos sempre começam sem cortes.

PS: Parabéns, bloguinho! E que minha criatividade/ócio/nonsenssisse continue te alimentando por muitos e muitos anos! ^^

domingo, 5 de julho de 2009

Meio assim

Eu sou meio assim,
Meio Helena de Tróia:
Venho através da guerra
E sou coroada com a glória.
Eu sou meio assim,
Meio Cleópatra:
À minha direita, meu algoz,
À minha esquerda, meu idólatra.
Eu sou meio assim,
Meio Mumtaz Mahal:
Eu nasci pra ser rainha
Por um tempo breve e imortal.
Eu sou meio assim,
Meio Maria Bonita:
Olhar matreiro, capiau,
Sob ternura do laço de fita.
Eu sou meio assim,
Meio Joana D’arc:
Atravessando o peito dos homens à lança,
Lançando-os à morte, eterno embarque.
Eu sou meio assim,
Meio Iracema:
Tão inatingível. E sonsa.
E tão desejável que tal desejo te envenena.
Eu sou meio assim,
Meio Aurélia Camargo:
Dona de mim, dona de você,
Moça de sabor amargo.
Eu sou meio assim,
Meio Pagu:
Fumando no escuro, eu te disseco,
Te irrito, te deixo nu.
Eu sou meio assim,
Meio Leila Diniz:
Transo de manhã, de tarde e de noite,
E ilumino teu sorriso feito flor-de-liz.
Eu sou meio assim,
Meio Rita Lee:
A cabeça em fogo,
A língua em jogo,
Pondo em prática tudo o que aprendi.
Eu sou meio assim,
Meio Maria Gladys:
Feia, mas sexy à minha moda;
Sexy nos meus olhos, nas minhas pernas, nos meus trajes.
Eu sou meio assim,
Meio Amelie Poulain:
Jeito simples e discreto
Com gosto fresco de lima e romã.
Eu sou meio assim,
mora uma Ana dentro de mim
E dentro da Ana que me habita,
moram mil mulheres sem fim.

sábado, 4 de julho de 2009

Cretinices e calhordagens

Sabiamente já dizia Lispector: o que obviamente não presta, sempre me interessou muito. O pior disso é que não tenho como discordar dela. Cigarros me interessam. Insônia me interessa. Maus hábitos me interessam. Pornografia me interessa. Mais de um homem também me interessa.
Eu já vinha pensando há algum tempo sobre esse tema, sem ter a mínima idéia de como articulá-lo, talvez até dada a sua complexidade de organização. E, voltando da rua numa tarde cinzenta de sexta-feira, duas palavras simplesmente não me saíam da cabeça: cretinices e calhordagens. Enquanto pensava nessas palavras, eu lembrava de um veeelho blues de Peggy Lee, chamado "Why don't you do right?" - que ficou ainda mais famoso na voz de Amy Irving, vivida pela lânguida Jessica Rabbit em "Uma cilada para Roger Rabbit" - que basicamente trata do poder que um homem bem estúpido pode ter sobre uma mulher que está dormente de amores. Cretinices.
Homens são danados pra aprontarem as tais cretinices e calhordagens. Mentir, trair, roubar, matar, iludir. Mas devo reconhecer aqui que não só eles. Mulheres também conseguem ser demasiado cruéis quando querem alguma coisa. Vagina e coração são os músculos mais traiçoeiros de uma mulher. Eles desempenham uma função dupla: podem, tanto catapultá-la para onde quer ela queira ascender, como podem lançá-la à pior desventura. Nós, mulheres, temos o dom de sermos laconicamente cretinas quando queremos. Basta classe. O batom e o decote certos.
Não é nada digno dizer isso, mas que verdade não dói? Em algum momento da vida, toda pessoa usa de certa calhordagem pra poder transpor algum obstáculo. Em algum momento, todo mundo mente. Omite. Usa de favores, faz favores; e estes podem ser razoáveis, ou bem imundos. Desde sempre, esse é o tipo de cadeia que rege não todas, mas muitas das relações humanas. E nós todos bem sabemos que estas existem, ainda que veladas. Tabulizadas. A problemática das cretinices/calhordagens é ampla, e está bem no seio de toda estrutura onde se projete qualquer sociedade. Existe isso, tanto na Daslu quanto na Rocinha, com diferenças apenas glamourizantes.
Leitor meu, não entenda a questão do ponto de vista apenas sexual - se é que o texto aqui o está inclinando para tal. As cretinices podem ser diárias, e muito mais comuns do que se imagina, e se distribuir em graus. Um beijo no escuro no namorado da colega é uma cretinice. Uma banda na promoção do parceiro da firma é uma calhordagem. Uma mentira bem engendrada, a fim de não magoar ninguém, é uma boa cretinice. O Sarney ter nascido, porra, é uma calhordagem. Da grossa. Como é possível observar, a calhordagem está num plano um pouco maior de filhadaputice que a cretinice. No entanto, o ideal - ideal - seria se afastar das duas. Aí que está o grande desafio.
Certas coisas na vida são demasiado sedutoras para se resistir. Não é apologia ao errado; é só uma simples exposição da mazela humana da fraqueza. A culpa é da carne. Se formos parar pra refletir, esse embate com requintes barrocos existe desde que mundo é mundo. O certo e o errado, razão e emoção. Por fim, andar na linha é sempre muito difícil e, parafraseando Bial, é só você contra você mesmo.
Fuja das cretinices e calhordagens da vida. Mas devagar, para que elas tenham tempo de te alcançar.

Lindos e lindas,

Tenho um comunicado pra fazer a vocês:
De agora em diante, passo a administrar, junto com o Luís Martino, o blog http://peliculofagia.blogspot.com/ , que trata de cinema com paixão!
Os posts vão se alternar entre resenhas minhas e resenhas dele, comentários, dicas, críticas e etc, sempre visando a promoção do diálogo entre o cinema e o público. Os imaginários leitores cativos do neversleeps agora têm outra opção!
Como tudo ainda tá bem fresquinho, aos poucos vou informando a vocês, por aqui, as atualizações de lá.
O recado tá dado. Espero que vocês nos felicitem com suas leituras!
Um beijão,
Aninha!

sábado, 27 de junho de 2009

Michael e eu - uma homenagem

Pensei em escrever sobre Michael. Mas o receio de cair em xerox de todos os editoriais que saíram a seu respeito ao redor do mundo me fizeram voltar atrás. Mas ainda queria escrever sobre ele. Então, numa conversa que estava tendo com um amigo, que também prestou uma elegia ao rei em seu blog, ele me disse, sabiamente, que a única forma de escrever sobre Michael era se utilizando da única fonte imiscível que temos ao nosso dispor: nós mesmos. Michael e nós. Eu, você, João, Maria, Alberto e todo mundo. Apesar de ser a mesma estrutura, a argumentação muda a partir do momento que varia de pessoa pra pessoa, porque, elementar, cada experiência é única.
Então é isso. Michael e eu.
Com todo o sucesso dele, eu vim a conhecê-lo, oficialmente, aos meus (aproximadamente) seis, sete anos de idade, com o clipe que entraria pra minha história: Remember the time. Ambientado no Egito antigo, contando com Eddie Murphy e a linda modelo negra Iman - que à época eu dizia repetidas vezes ser a cara de uma das minhas primas -, o clipe tinha o estilo jacksoniano, trazendo uma trama introdutória pararela à aparição de Michael. Eu me lembro perfeitamente da minha relação com aquele clipe. Era em cassete, eu sempre rebobinava. Adorava, desde a mini-trama à coreografia incrível orquestrada pelo maior dançarino do pop de todos os tempos.
Assim, Michael entrou na minha vida. Depois de um tempo, assisti a Thriller. E, como quase toda criança, fiquei chocada com aquilo, ainda mais por ser uma menina muito medrosa. E me apaixonei por Moonwalker. Como eu adorava "Smooth criminal"! Tudo o que se passava de Michael eu me prestava a assistir. Não era o que se possa chamar de uma fã inveterada, mas eu certamente nutria por ele grande admiração.
Eu cresci. E, do nada, voltando pra casa depois de mais um dia, vejo uma notícia que não processo. Michael é encontrado morto. Michael? Michael Jackson? Impossível! Como, se ele estava se programando pra turnê? Como, sendo ele quem é? Mas a morte, o único mal irremediável de Guel Arraes, não espera turnês, caprichos, lamentos, preces. A morte arrebata tudo, todos. E até Michael.
A causa específica da morte de Michael ainda é um mistério. Toda a mídia internacional noticiou como sendo uma parada cardíaca seguida de coma profundo. Será? Minha mãe sustenta, desde que se falou na morte de Michael - e eu estou de pleno acordo - que as circunstâncias que desencadearam a morte do Astro foi uma overdose de anti-depressivos, o que é bem cabível se observarmos o estilo de vida que Michael levava, desde o começo.
Mesmo sendo o artista pop mais bem sucedido de seu tempo, com cifras-recorde em vendas, o menino Michael era, como tantos outros artistas, mais um infeliz. Um homem frustrado por seus complexos, e na desesperada tentativa de ocultá-los, o que mais fez foi expor os mesmos. Michael jamais deixou a infância. Ela ficou guardada nele, e era externalizada em suas atitudes excêntricas. Daí todas as polêmicas envolvendo menores. A conjectura de minha mãe é muito razoável, e Michael talvez estivesse vivendo o zênito de uma depressão irreversível. A injestão desses supostos medicamentos teria sido um suicídio (in)consciente.
Para mim, Michael é o tipo de pessoa que só vem ao mundo milenarmente, dada a sua singularidade. Ele marcou todas as festas-ploc que eu já fui. Eu já fiz o imitável, nunca inigualável moonwalker. Quem não fez? Em algum ponto da vida das pessoas, Michael entrou. Invadiu. Ficou. E agora, que a gente se vê sem ele, sente uma falta de si mesmo que é estranha. Não que Michael fosse indispensável à vida de todos. Mas, de alguma forma, ele costurou sua história à, pelo menos uma parte, da nossa.

Descanse em paz, Michael. Depois de toda uma vida procurando por ela, pode ser que finalmente você a tenha encontrado.

Para Michael Joseph Jackson - 29 de agosto de 1958 - 25 de junho de 2009.

quinta-feira, 25 de junho de 2009

Os ladrões

Flávio Silva está no seu horário de almoço. Ele cumprimenta a todos do restaurante, costume habitual que se repete há bons cinco anos. Está feliz. Acaba de negociar uma modesta propriedade no interior do Rio de Janeiro, onde pretende passar, com sua família, as férias. A barriga, levemente inchada da mesa farta e os resquícios oleosos da comida no sorriso de Flávio são apenas detalhes que denotam uma pessoa que progrediu na vida; um mosaico de um homem feliz e realizado sob todos os aspectos. Flávio paga a conta, e deixa o restaurante entre amistosos acenos para os funcionários.
Na contramão de Flávio está Lúcio. Mas como o registro geral só fica pronto em um mês, este atende melhor por Lucinho. Depois de mais uma briga séria com a mãe, Lucinho sai de casa disposto a fazer algo que mude pra sempre sua vida. Alguma coisa não necessariamente positiva. E Lucinho vinha avançando pela esquina com os pés, com as mãos, coração e tudo; num rompante medonho, de encontro a um Flávio tão absorto em sua própria vida que passaria por ele tão incólume quanto por uma folha seca deitada no chão, não fosse pelas palavras que invadiram espinhosamente os tímpanos de Flávio:
Perdeu, mermão. Essa porra é um assalto.
Flávio engoliu seco. Toda a sua pele começou a esquentar, como se todos os seus nervos estivessem sendo ligados em altíssima voltagem. Com os dedos trêmulos, ele tentava tirar a chave do carro do bolso.
Como é que é mermão, abre logo essa porra!
Flávio gaguejava, pedindo para que o infrator aguardasse. Não ordenava seu medo. Lucinho gritou e ele finalmente abriu a porta do carro.
Olha só mermão, se tu me enrolar eu te mato aqui mermo.
Calma cara, só ficar calmo que a gente acerta tudo.
Acerta é o caralho. Tu vai passar tudo o que tu tiver, começando por aquela mala ali.
Mala? Que mala?
Aquela ali atrás do banco, tá achando que eu sou otário? Lucinho acerta a cabeça de Flávio com a pistola, e o carro sofre um movimento brusco. Dirige essa porra.
A mesma sensação espinhosa que entrara pelos ouvidos de Flávio no momento da abordagem de Lucinho agora se intensificava. Flávio não contava com um assalto. Não naquele dia. Não podia ser. Todo aquele dinheiro, aquele dinheiro dos cinco meses. A mala no banco de trás, que Lucinho havia notado estava recheada com muitas cédulas. Cédulas de um suado processo que Flávio movimentara, coisa de três dias antes. Com um pequeno detalhe.
Flávio estava desviando da conta de Yolanda Pereira dos Reis, aposentada e viúva, a pensão que seu falecido marido lhe concedia mensalmente. Yolanda, já idosa e sem recursos tanto financeiros quanto físicos de recorrer à justiça, tinha como opção única aceitar o fato de ser lesada por um adevogado de gravata e postura acima de quaisquer suspeitas. Flávio, por um instante, viu-se diante da possibilidade impensada de perder, deliberadamente, para alguém do mesmo nível intelectual de Yolanda, todo o dinheiro conseguido às custas de tramóias, insubordinações, falsas petições e tudo o mais que tão comum é no ramo do direito. E que direito era aquele de Lucinho, de arrebatar-lhe seu sítio no interior do Rio? Sua renda extra, o lazer de suas lindas Marcela e Juliana, às quais havia prometido um pônei? Não. Aquilo sim era uma injustiça. Uma agressão ao inalienável direito à propriedade. Lucinho, trincando os dentes, jogava a pistola no nariz de Flávio, ameaçando sujar o vidro e todo o painel do carro de uma massa disforme de sangue e ossos. Flávio sua. Pensa na mulher. Pensa em Yolanda. Lucinho o ameça, enquanto debocha de sua condição. Por que não havia depositado a merda do dinheiro quando teve tempo?
Vai caralho, vai!
Apesar de ter sido sempre o mestre das muitas situações que lhe surgiam, Flávio se viu pertubadoramente acuado naquele momento. Lucinho falava o tempo todo em matá-lo, e ele não duvidava de suas palavras por ver crack em seus olhos.
Desce.
Mas cara... meu carro!
Desce agora porra! Quer morrer?
Flávio desceu do carro aos solavancos, tão abruptamente quanto havia entrado. Ainda processava tudo o que havia lhe ocorrido. A pistola na cabeça. Aquele moleque nem vinte anos tinha. Mas não poderia denunciar Lucinho. Apesar de estarem social e diametralmente opostos, havia algo em comum entre eles. Ambos estavam atrelados a crimes. Eram diferentes criminosos, comungando da impunidade sob a qual se ancoravam. Uma estranha interdependência. Um desconcerto de mundo que faz tudo andar.
O homem, então tão indigente quanto Lucinho, faz seu caminho de volta a pé. Com o bem mais precioso que o ladrão lhe deixara: sua história. Sua vida. E, principalmente, sua memória.

Post dedicado à minha avó, Yolanda Pereira dos Reis.
E pelo fim da impunidade dos crimes de todas as espécies neste país.

sábado, 20 de junho de 2009

A preguiça de olhar

Não sei se isso ocorre com mais alguém além de mim. E é justamente querendo saber que me proponho a escrever este post.
Os meus olhos são dois mundos castanhos ligados involuntariamente em 220 o dia inteiro. Não sei se já mencionei isso, mas eu sou algo como o Tyler do Clube da Luta de saias: se esses mesmos olhos que reporto se fecham por mais de 6 horas seguidas, têm-se um recorde. Não quero falar de insônia, não é isso. Meus olhos são dois buracos-negros não pensantes, alimentados de luz, bytes e novidade. Inutilidades? Muita. Faz parte, não importa o quanto eu tente me desvincilhar delas. Acontece que sofro de um fenômeno, que julgo raro - porque nunca ouvi ninguém falar que tem.
Tenho preguiça de olhar.
Não pense que é de ler. Tipo quando um amigo nos oferece um texto e dizemos que estamos com preguiça de olhar. É preguiça de olhar mesmo. É um cansaço visual que eu não sei explicar. E você pensa que fecho os olhos quando isso acontece? Nada disso. Eu os descanso, mas não com óculos. Desfoco-os completamente, e isso me abraça com uma sensação de desligamento parcial que é tão boa que me reintegra. Às vezes - acontece muito - estou diante de um vídeo, que pode até ser do meu interesse, mas aí bate a tal preguiça exótica. E preciso desfocar. É no desfoque que hidrato minhas retinas.
Meu leitor, não pense que eu minto, apesar disto poder lhe parecer um bocado absurdo. O desfoque funde as cores, as texturas, as luzes, em um grande liquificador, potencializado pela necessidade de fugir do turbilhão informativo ao qual estou exposta que se derrama sobre mim como uma chuva ácida. É uma lisergia particular. Ele uniformiza. Dura uma média de 10, 15 segundos; mas já ajuda. Depois dele, quando a visão normal me retorna, parece que ganhei novas córneas.
Não sei porque tenho a preguiça do olhar. Eu posso aqui supor que ela é fruto de um monte de coisas, mas não vou achar um eixo de exatidão pra sua causa. Encaro essa preguiça como algo saudável, instintivo e repositor. Como o ouvido exaurido que chega da rave pedindo silêncio. Como a boca, cuja língua é músculo tentacular, que precisa repousar deitando-se entre os dentes. Essas danças todas são equilíbrios vitais dentro de um sistema maior, e precisam atingir sintonia, senão desandam. E isso - eu acredito - não vale só para o corpo humano, mas como para tudo o que está fora dele e além. É uma lei secreta que rege todas as coisas. Uma metáfora de vida.
Paro por aqui. Acho que já me fiz entender.
(Mentira. É porque estou com preguiça.)

Bom sábado!

domingo, 14 de junho de 2009

Carta de amor

Uma carta de amor não se faz, necessariamente, de puro desejo. De espasmo erótico, de asfixia existencial quando a outra metade está in absentia. A carta de amor de verdade abriga em suas linhas um bocado de cansaço. Uma decodificação, automática e meio sem graça sobre a mínima expressão gestual da metade.
A carta de amor, quando madura, é quase um relato, tão pouco envaidecida de metáforas e impregnada de cotidiano. É essa espécie de diário de bordo duma embarcação que navega-se parcialmente às cegas, onde reencontramos o fosco conceito de amor que só existe nas novelas e em contos infantis. Uma carta de amor que se preze conhece cada defeito, cada pinta, cada peculiaridade do caráter da metade, e não admite acobertá-los sob uma colcha de qualidades duvidosas.
Para conceber uma carta de amor, o primordial é ser sincero. É não omitir nem ronco nem dedo no nariz. É velar, com discrição e uma ponta de encantamento, um pedacinho de pele, de olhar. É, depois de todo esse tempo, ainda ser louco por alguma coisa que a metade faça.
Particularmente eu ainda não sei escrever tal carta, eu apenas a teorizo. Porque esse tipo de carta é tão absurdamente complexo e simples, pela facilidade de se tropeçar em centenas de clichês e de simplesmente descarregar sobre a inocente folha de papel tudo aquilo que se sente. Logo, é meio ridículo, tanto quanto improvável tentar amarrar-se (a) parâmetros na construção de tão difícil documento.
Bem verdade, a carta de amor reflete a dificuldade que existe na própria conceituação de amor. Essa praga barroca, impossível e necessária. Então, amantes de todo o globo, escrevam suas cartas, e ignorem os meus vãos preceitos, que uma boa carta amorosa está sempre embotada de loucura e é tão abstrata e subjetiva quanto o próprio sentimento que é dela objeto; mas ainda assim é uma boa tentativa de eternizar tal sentimento.
Passando-o a limpo.

Feliz dia dos namorados. (Post para 12 de junho de 2009, com um atraso justo porque viajei)

terça-feira, 9 de junho de 2009

Ao Rio

Rio. Rio.
Eu amo o Rio. Ele me é vital, e pulsa em cada um dos meus vasos sangüíneos. O Rio é mais que lindo, é mais que isso. É alguma palavra outra que ainda não inventaram, dada sua propriedade difícil de ser comportada. E sobre tudo isso, o Rio é.
Eu amo o Rio. O Rio dos estigmas. Rota 1 da prostituição internacional. Da violência ocular das calçadas, das meninas cuca-fresca de Ipanema; o Rio que não parece tão Rio de Duque de Caxias. O Rio, que só é bonito e só é Rio em sua totalidade.
O Rio é o maior caldeirão cultural do Brasil. Sei que soa por demais presunçoso isso de minha parte - visto que eu não conheço todos os Estados do Brasil - mas dada a sua complexidade espacial, me sinto confortável de apontar assim. Você anda pela Presidente Vargas e consegue identificar praticamente todos os retalhos da sociedade brasileira, ali dispersos em sutil sinergia. Chega-se à Lapa e a explosão regional que se descortina às retinas é sem dimensão, tragando todos os estilos, todas as esferas, englobando as pessoas numa tribo onde todo mundo é cada um e cada um são todos, louca e simultaneamente. O Rio é uma tribo de prazeres. Infandos, infindos.
O Rio é um deleite. Gosto de bradar, a plenos pulmões, minha carioquez, com um "x" bem arrastado no final, por favor. É bom olhar pras praias cariocas. Sentir maresia. O Rio é pluralista, desde sua concepção histórica até os dias de hoje. Há tempos que toda sorte de gentes vem desembocar aqui, constituindo o retrato da cidade como um todo, um mosaico de caras, de peles e de bocas sincrônico, embebidos de sua cultura que se costura à história do Rio. E isso é bonito demais, único demais. Se o Brasil é um país legitimadamente miscigienado, o Rio é a cidade que melhor reflete esse fenômeno - apesar de que preciso reconhecer que São Paulo, quanto a isso, não fica muito atrás. Mas é no Rio que isso se dá com maior plenitude, com maior repercussão.
E é esse Rio que eu quero. Um Rio de Janeiro cheio de máculas, de espinhos, de funk e bossa que só existe de verdade em suas esquinas com cheiro de mijo, cópula e carnaval. Minha amada cidade, paisagem-alvo de escritores, artistas, cantores e compositores que a imortalizaram em versos e sonetos apaixonados, afinal, o Rio é uma paixão pra vida inteira. Uma paixão que se imprime na pele, na ginga, na memória. O Rio é de todos que moram nele, e que o levam para onde quer que vão no recôndito do olhar.
Rio de Janeiro, Rio de Janeiro... saravá!

sábado, 30 de maio de 2009

A noite em que Eles saíram pra dançar

Aos não-cariocas, meu sincero perdão por este post. Porque ele tem a abençoada cidade do Rio de Janeiro (Zona Sul e adjacências apenas, infelizmente), como ponto de partida para que eu dê início ao meu relato. Ok, se você for um paulista, amazonense, ou curitibano com um certo conhecimento geográfico do Rio, poderá visualizar melhor o que direi. Mas não que essa seja a peça imprescindível na compreensão do texto.
23 de maio de 2009. Esta foi a data escolhida pelo artista californiano Peter Coffin para rechear de graça e ineditismo os céus da Zona Sul e Oeste do Rio de Janeiro. Se você está por fora, deve estar se questionando: mas que obra é essa capaz de tomar todo o céu? Simples: - mentira, é bem complexo - Peter, num momento de profunda inspiração, teve a brilhante idéia de construir um disco voador, que, na sua exposição, sobrevoará, além do céu carioca, outros por aí, mundo afora. Ou seja: foi massiva a repercussão dessa obra de arte contemporânea, que atraiu olhos curiosos ao negro firmamento do dia 23. Mas a questão que quero chegar ainda não é essa.
Sou moradora de Duque de Caxias, Baixada Fluminense do Rio de Janeiro. Logo, a supervalorização das zonas sul e oeste automaticamente excluem os suburbanos como eu do espetáculo, e o seu moço do disco voador não daria as caras por aqui. Entretanto, na mesma noite, eu teria um festival de música eletrônica a comparecer: o tradicional Chemical Music Festival, situado no Riocentro, Barra da Tijuca, o que poderia, talvez, me possibilar o vislumbre da obra de Coffin nos céus. E o céu noturno naturalmente me atrai tanto por medo quanto por fascínio. É uma sensação de mergulho na imensidão inapalpável, linda e desconhecida; é o receio de que ela subitamente possa me engolir com todo o seu bem estruturado sistema de vácuo e segredo.
Ao chegar à festa, isso lá pelas duas da manhã, meu coração dançava dentro e fora de mim às batidas alucinantes de Paranormal Attack, mas meus olhos estavam colados no céu. Eles pareciam imantados pela possibilidade de ver aquele disco voador fake, e captavam o menor deslize do menor corpo celeste. Pacientemente esperei. Eis que tenho a vaga impressão de... não, há de ter sido só uma impressão mesmo. Já sem esperanças, e muito afim de cair dentro da festa, ignoro o céu. Mas nas espaçadas vezes que o fito, tenho a estranha sensação de ver o disco voador de Coffin.
É aí que eu percebo o quão incauta eu fui.
Que Peter Coffin, que nada! Que legitimidade melhor poderiam usar os próprios amiguinhos intergaláticos para valsarem pelo belíssimo céu que se descortinou como um presente naquela noite? Com todo mundo muito ocupado com a exposição do californiano, eles poderiam exibir-se sem medo de nada. Ninguém acreditaria se falassem que foram vistos. "Que nada, o que você viu foi o disco voador daquele americano", é o que todo mundo naturalmente diria. E, movidos pelo desejo, e também pelo sentimento de provocação a nós, tolos terráqueos, que estamos sempre com a cabeça nas nuvens afim de solucionar nossas inquietações, eles livremente se exibiram, bem debaixo dos nossos narizes, despidos do cerimonialismo que estão habituados quando têm a certeza de que habitam a noite sós. Coffin pode ter escolhido a noite do dia 23 para expôr seu projeto, mas acredito que a noite os escolheu para a diversão. A noite em que Eles saíram pra dançar foi assim, tão óbvia, tão óbvia, que nós nem mesmo nos demos conta.
E foi linda. Mas só para quem viu - e quem vê - além de Coffin e de todo o deserto de obviedade.

Post dedicado a Fábio, um querido amigo que é um apaixonado pelo cosmo.

sexta-feira, 29 de maio de 2009

Pequenas maravilhas do terceiro mundo

Bate meio-dia e dois no relógio biológico de Alina. Ela deixa o arroz cozinhando, cata o molho de chaves, calça os surrados chinelos de borracha de desbotado azul e sai de casa para buscar o irmão menor, Ruan, na escola. Passa a mão pela nuca, o dia estava abafado. O furioso astro maior lhe sorria, latente e amarelo, incontáveis quilômetros acima.
Ao atravessar a rua, um hidrante estourado fazia o alívio de dois vira-latas que ali se encontravam. Os cães refestelavam-se naquela sensação e, pensou Alina, quem dera que pudesse se juntar a eles sem que aquilo fosse interpretado como um óbvio e perigoso acesso de loucura. Ela tinha medo de cachorros, mas não acreditava que aqueles fossem capazes de abocanhar-lhe um bom naco de perna como havia feito o maldito Tota, da Mirtha, há dois anos. Aquele infeliz evento quase invalidara a perna esquerda da frágil e quebradiça Alina.
Uma rua à frente, o colégio São Dominguez. Os olhares debochosos das meninas de cabelo aloirado e camisas curtas e a gesticulação expansiva e afobada dos meninos causavam desconforto em Alina. O cheiro de cigarro e de promiscuidade era insuportável dentro das rodinhas deles. Aos olhos da menina, toda aquela superficialidade era a mais pura vontade de aparecer. Ou era Alina que não se encaixava? pensando bem, a segunda opção era a mais provável.
Sinal fechado. Eis que na direção dela, corre uma pequena manada de estudantes do mesmo colégio para tentar alcançar um ônibus que ia embora. Claro, tudo gritado, gargalhado, à trote. Alina não se encaixa. Enrola seus cabelos ensebados da gordura de cozinha, num discreto coque no topo da cabeça. Prossegue.
Chega à escola, onde o irmão já a aguarda há uns minutos. Ao vê-la, Walkíria, a mulher gorda de pernas finas que coordena a saída das crianças chama pelo nome do irmão. Alina fica a observá-la, com a descrição que lhe é característica. O suor no buço. O buço. O suor na testa, onde os cabelos começam. A feiúra dos sulcos, o corpo disforme. Ainda assim, ela ostenta uma aliança. Como uma pessoa daquela poderia ter algum atrativo? Alina não entende.
O irmão chega em alguns minutos, também suado. Tagarelamente conta como foram as atividades escolares. Ele é o oposto da seca Alina. Por dentro e por fora. O arroz no fogo! Alina então agarra a mão de Ruan e toma a rua da feira, que é um bom corta-caminho. A feira multicromática, com cheiro de salada de frutas, com cheiro de podre. Os filhos de alguns feirantes com o pé no chão. Apesar de toda a pobreza, havia certa felicidade naqueles olhos todos. Todo aquele desconcerto leva Alina a crer que, de alguma forma, é por causa disso que o mundo funciona. Por causa das mini-putas do colégio público, por conta dos cães e seu banho de sol inusitado. Até a desgraça tem sua graça.
Ruan pede um churros que Alina não pode comprar. Ruan pede figurinhas que Alina não pode comprar. E os dois rumam para casa; Alina, com o coração mais feliz.

quarta-feira, 20 de maio de 2009

O jogo-do-contente de Benigni

Não sei se todos vocês aqui gostam de cinema cult. Essa que vos escreve gosta, e muito, e recomenda. Afinal, um filme que chafurda a tela grande de efeitos em CG deve ter - muito provavelmente, tá? - muito pouco a dizer, e sobretudo a acrescentar. Tá bom, um ou outro até vai (pra passar o tempo). Mas eu considero a musculação cerebral decorrente de uma boa sessão cult bem mais saudável.
Enfim, vamos ao que me propus. Dissociada de uma assinatura à Janot - até porque eu nunca conseguiria alcançar esse grau de intelecto - , eu gostaria de compartilhar com vocês aqui uma válida coisa que aprendi com o ilustríssimo Roberto Benigni e sua mais famosa produção, vencedora de 3 oscars pela Academia e indicada a muitas outras: "A vida é bela".
Diferente, mágico, único. Neste filme, Benigni prova que é possível viver à Pollyana mesmo nos secos tempos de guerra, mesmo que esta guerra possa retirar-lhe a vida, que, barata, pode ser deliberadamente tomada por uma fuzilada errante ou proposital. Com uma performance chapliniana, de arrancar risadas de qualquer público, sabiamente temperada com uma atuação forte e tocante, Benigni explora muito além do que um filme óbvio de guerra é capaz: ele consegue fazer humor com a temática bélica sem perder o tato da problemática muito séria que a envolve; sem se alienar. O fato de seu pai ter passado dois anos em um campo de concentração também exerce um peso bastante relevante em todo o filme.
Trata-se de um filme apaixonante. Delicioso, devorável. Eu, pelo menos, nunca havia tido o prazer de apreciar uma produção do gênero, salvo por boa parte da filmografia Chaplin que já assisti. A metáfora presente em "A vida é bela" é inconspicuamente análoga à vida real. Por mais cabeluda que possa parecer ou ser a questão, é levando-a com um pouco de frouxidão e, sim, com amor, que se tem uma percepção melhor a seu respeito, catarticamente ou não. O desespero nunca resolveu nada. É rindo das adversidades que as contornamos, e, sem demagogia alguma, eu garanto que dá certo. Tenho exemplos muito, muito próximos a mim adeptos dessa metodologia.
Fica a minha dica: assistam a esse clássico. E bebam da fonte de sabedoria de Benigni.

segunda-feira, 18 de maio de 2009

Mais belo amor

Comecei a pensar nessa postagem considerando a Literatura e o Cinema como irmãos. Dois doces irmãos, duas crianças deliciosamente travessas. Sua afinidade seria tamanha, como não poderia deixar de ser. Muito freqüentemente seria possível que os espreitássemos fazer arte, e definitivamente a melhor que seriam capazes de produzir seria aquela que realizassem gozando de plena conjunção. Tudo ia bem com esta prévia definição, até que comecei a tropeçar e duvidar dos meus próprios argumentos, quando percebi que existe algo bem mais carnal, por assim dizer, entre esses dois. E constatei que o laço que os une é outro.
Passei a vê-los como primos, por serem muito fisicamente parecidos, mas há uma coisa que imanta os dois que não pode ser compreendida como um claro amor familiar. Foi quando abri meus olhos.
O estreito liame que eles mantem é, de fato, muito mais íntimo. O Cinema, muito mais moço que a Literatura, atrai esta pela questão do frescor, de sua capacidade indescritivelmente realista e sincera de representar a arte escrita. O Cinema, como provar de amor, fala pela sua amada. A Literatura, por sua vez, exerce sobre o Cinema a forte influência da experiência; aquele charme irresistível da melhor idade que acintosamente acompanha o conteúdo. Eles flertam. A disparidade entre suas idades é só um mero detalhe aos indiscretos. Trocam olhares, carícias. Perspectivas. São amantes e publicamente o fazem, imprimindo no produto desse sensual encontro sua expressão máxima da gratidão aos artistas idealizadores desta relação - gratidão por sinal, mútua. Como todo casal, têm crise por nem sempre concordarem com tudo. Às vezes, a Literatura diz uma coisa e o Cinema diz outra. Aliás, entre eles essa é uma constante, e raros são os casos em que partilham de absoluto consenso.
O Cinema e a Literatura são interdependentemente crônicos. A Literatura, antes do cinema, já era magistral; mas foi com o nascimento deste que adquiriu o viço que faltava. Quando fundidos, estes belos nos presenteiam com "Lolita", "Forrest Gump", "O bebê de Rosemary", "Tróia", "O silêncio dos inocentes", "E o vento levou", e um sem número de outros. E qual não é o meu deleite em folhear as belas saias da Literatura, provocando os ciúmes do Cinema, ou mergulhar no denso universo dele, que me traga e me devora. Seja como for, em uníssono eles já brilham. Mas, em parceira, ofuscam.
Ave a longevidade deste casal. E que este continue a nos brindar por toda a vindoura história.

segunda-feira, 11 de maio de 2009

O darwinismo internético da mediocridade

Juro que custei a acreditar quando li, mas qual foi minha cara de paisagem quanto à mais nova babaquização da elite, na deplorável tentativa de destacamento do que a gente - simples, de carne e osso, e sem BMW na garagem - denomina "reles mortais". Pode ser ou parecer anacronismo meu, mas eu simplesmente não concebo que ainda existam pessoas que medem por seu poder aquisitivo a deliberada - e por que não - deturpada legitimação em ser superiores a todo o resto.
Não sei se sua mente funciona como a minha, caro leitor, mas se sim, a essa altura você deve estar se perguntando a que se deve essa repulsa gratuita que ainda não justifiquei, certo? Pois bem. É que fui tomada de um assalto crescente ao encerrar uma leitura que me foi tão desgostosa por ter me feito constatar - não que eu não soubesse - até onde vai a pequenez do caráter humano em suas sórdidas relações, que encontram principalmente no vil metal um terreno fertilíssimo para se explodirem de si.
Chega de deixar meu leitor orbitando. Falo do mais novo frisson chamado http://www.elysiants.com/; cujo fútil e bem sucinto tema resume-se a "Celebrate life in style". Esta é mais nova idiotice a serviço duma minoria a que interessa somente alimentar a impossível idéia de importância suprema, não-contato com o reles resto, de uma superioridade nefelibatística e sem propósito. Desenvolvido por Arthur de Groot e Ronald de la Fuente-Sanchez, com sede em Hong Kong, o site tem por volta de 15 mil usuários, e só não está se espalhando com a rapidez característica das comunidades virtuais de relacionamento por sua enfática e claríssima proposta: foi feito pra quem 'pode'. Marcadamente com uma postura opulenta e ostensiva, a novidade ignora toda e qualquer pessoa que não corresponda ao perfil de seus idealizadores e membros, delineando assim um tênue círculo seleto de artistas e figuras do jet set nacional e internacional. O Elysiants é a impressão máxima do status que a posse é capaz de conferir a um indivíduo, não importando aí sua procedência e discriminando por completo a idéia - quiçá ultrapassada - de que todos são iguais.
Vão? Estúpido? Eu poderia nominar com N adjetivos nada amistosos a minha visão sobre este modismo que visa delimitar 'os melhores', e ainda acredito que seria pouco. E com base em que? Na criação de uma ordem intolerante à imiscuição social, totalmente individualista e absurdamente voltada para os valores capitalistas mais elementares. E o pior é que, na dança sem fim nem compasso dessa alienação, vão, iludidos, os lacaios dessa sub-cultura do nonsense: as assistentes de madames, os papagaios de pirata dos empresários, os robôs humanos da escória bem-sucedida que toda pirâmide social apresenta, que compram com o último resquício de suas voláteis personalidades toda uma simbologia que nunca será condizente com as origens que tentam maquiar, e tudo isso para penetrar no seio de uma sociedade cuja frivolidade é o lema. Parem tudo, que eu quero descer.

sábado, 9 de maio de 2009

E todo mundo salva o mundo

Salvar o planeta ficou cult. Aliás, cult não; virou uma febre. Tá todo mundo um bocado cabreiro com essas previsões - antiiigas, mas agora muito em voga - nada animadoras sobre os prejuízos incalculáveis que o homem, em sua insana ganância, já produziu ao meio-ambiente, e já tem um monte de gente batendo em retirada quando o assunto é high-technologic ou, pelo menos, freando seus impulsos capitalistas. De repente, ostentar ficou cafona. As eco-bags estão vendendo mais que banana em feira. O reciclado é o novo chic. Todo mundo fazendo Yoga. Cada vez mais as pessoas, os antenados, os velhinhos da zona sul e as crianças estão aderindo à moda, devidamente orientados pela propaganda massiva em torno da redução drástica do consumo.
Mas ei. Vamo devagar.
A mesma propaganda que apregoa apelativamente o repensamento quanto à questão ambiental ainda é, majoritariamente, uma sombra sobre o maior motor de degradação do nosso cansado planetinha. Sim! É um tiro no pé, mas uma maneira sabiamente estratégica de se eximir da culpa. Por exemplo, eu não consumo Mc'Donalds. Preceito meu de ontem e hoje. Acho aquilo ali o cúmulo do auto-desrespeito com a saúde, apesar de reconhecer o quão saborosos são seus Sundae's. Mas outro dia, calhou de me mostrarem um daqueles panfletinhos que vem com as bandejas. Nele, o Ronald Mc'Donald ensinava formas simples de extender o prazo de vida útil do nosso mundo com atitudes simples. Coloridinho. Louvável. Quase um cartaz do greenpeace. Mas será que já se parou pra pensar na quantidade de lixo que uma única pessoa produz com um só Mc' Mínimo Lanche? É papelzinho pra tudo quanto é lado, dezenas de sachês, plástico, caixinha do hamburguer, da batata. Agora multipliquemos o número por... ah, numa escala global, dá pra ter a dimensão, né? E a amistosa e responsável mensagem da bandejinha vai para o mesmo lixo, mas a gente acaba não percebendo isso.
Entretanto não peguemos o Mc' Donald's pra Cristo sozinho. Hoje em dia, existe uma ascenção monstruosa no número de pequenas, médias e gigantes empresas que tentam passar, de alguma forma, o quão preocupadas estão com o futuro da nossa casa; quão respirável será o ar das crianças de 2.200, quanta água vai haver pra saciar as gerações dos próximos séculos, se é que eles chegarão. O tal 'desenvolvimento sustentável' é muito mais que essencialmente toda a precaução em torno do mundo que virá. Ele foi infelizmente convertido na maior estratégia de marketing do mundo, que contraditoriamente alimenta toda a indústria que continua - pasmem! - agredindo tão descaradamente o planeta em que vivemos, sob a égide falaciosa de que estão assumindo um compromisso com o amanhã. Não que toda empresa que se diga pró-planeta seja sempre falsária; mas com a estatística assombrosa de que muitas o são, fica de fato muito difícil confiar em alguma. Afinal, todo bom empresário de século XXI tem na cabeça que é preciso preservar o globo - e difundir essa mensagem atrelada ao seu negócio não é nada, nada mau. Semioticamente, a manipulação bem feita projeta o enunciado (a mensagem de um planeta feliz e saudável) estrategicamente para o seu enunciatário (o povo, que necessariamente precisa acreditar nisso pra fazer a coisa andar). E pelo visto, todos esses grandes gerenciadores e administradores prestaram muita atenção a esse pequeno e relevantíssimo detalhe.
Teoricamente, a positividade reina. Nós, detestáveis terráqueos, fomos, por muito tempo, seres irresponsáveis, que não davam a mínima para esse presente que recebemos e não merecemos chamado natureza. Mas agora será completamente diferente.
No que depender da nossa boa ação e das grandes corporações, o mundo já foi salvo. E há muito tempo.

Dedico este post a Renata Ciampone Mancini, uma incrível semioticista.

quinta-feira, 23 de abril de 2009

23

Não era jogo do Flamengo,
Não era Natal,
Nenhuma copa do mundo.
Não era a eleição de novo presidente,
Nenhuma revolução,
Não era o juízo final.
Mas as crianças saíram de suas casas.
Pessoas vestidas de branco
elevavam suas vozes aos céus,
Subindo, subindo,
Na velocidade dos fogos de artifício,
que gritavam a toda vizinhança
sua estridente, bonita, barulhenta fé.
Houve dança,
houve canto
e atabaques ecoavam:
não era o meu aniversário,
não era nenhum natalício republicano:
era 23.
era Jorge coroado em todos os lugares.

domingo, 19 de abril de 2009

Mazel tov

Um brinde ao nosso amor doente. Nosso manco amor, que se arrasta vicioso. Uma ode à loucura conjunta, à obsessão recíproca. Nosso débil amor.
Uma canção ao nosso amor. Um amor cheio de buracos, cheio de cacos, cheio de espinhos. Nosso amor sangrado, suado, violento, intempestivo. Uma salva de palmas à ironia cruel deste laço que nos ainda nos une, traiçoeiro. Um olhar profundo por dentro de cada poro desse amor vicissitudinal, inconstante, fragiforte.
Uma elegia à cegueira de nós dois, ratos cegos se buscando pelo cheiro de mijo, de coito, da impossibilidade de se ver só; do medo letal de se entregar ao mundo outra vez. Nosso amor problemático. Bruto. Insustentável.
Mazel tov à essa insanidade inarrancável, que se uniu às nossas vísceras por fios de câncer e desgraça que, conforme nos alimenta, nos destrói. Um chopp a todo esse nojo bem aceito pelas nossas famílias. Um sorriso à nossa hipocrisia em aceitar esta condição!
Um grito em solene homenagem ao nosso indissolúvel amor. Nosso amor de merda, nosso amor sem sentido, eu te amo; nosso amor vital.
Uma missa ao nosso sexo, com altar, cálice, vela. Ao nosso sexo grosso, seu esperma espesso, sua genitália suja, minha boca na sua, essa imundície procriativa.
Uma salva de tiros a tudo isso. Com sorte, eles nos acertarão.

sábado, 18 de abril de 2009

A barra

Essa barra, pequena, inquieta
Pisca. Inquisitória.
Fora, outrora,
uma pena hesitante
que ansiava pelo mergulho no tinteiro.
Essa barra, irrisória
Espera por mim. Me desafia.
Fora, outrora,
O lápis que segurei aos cinco anos de idade
quando esboçava garranchosamente
o meu próprio nome.
Essa barra, que marca meu intervalo,
Esfrega toda sua recente tecnologia na minha cara
dotada do mesmo espírito que indaga de milênios atrás.
Essa barra, que nem um centímetro tem,
Sabe o que pensa. É quase diabólica
e aguarda. Por um sopro de inspiração,
por qualquer bobagem.
Essa barra, questionadora,
Me cobra. Me quer.
E conforme pisca, me pergunta:
"O que você tem a dizer?"
Essa barra, essa barra!
Tão fininha, tão maldita!
Muitas vezes esperando palavras que não posso dar-lhe;
ela é constante, eu não.
Essa barra, que corre em momentos de fertilidade literária,
Que brinca de pique-esconde em instantes de total déficit mental
É a divisa entre o 'eureka' e o 'bah',
É a escrita do bem e do mal.

sexta-feira, 10 de abril de 2009

A neo-cultura da foto

Confesso que adoraria criticar aqui essa coqueluche que se espalhou entre as pessoas e espezinhá-las dizendo o quão ridículo isso é. Mas me responda: como fazê-lo sendo integrante descarada dessa tribo? Não há maneira de dizer que não.
A princípio, eu achei que fosse só uma modinha que não iria demorar, mas depois de todas as raves, passeios, shows, eventos e festas que fui, constatei que a neo-cultura da foto veio pra ficar. Mas não é uma foto que se tira para guardar quando a saudade apertar, ou quando se pretende encontrar com ela para reviver um momento bom; mas cuja única finalidade é adornar focebooks, blogs, orkuts e virar fruto de vários comentários.
Bom? Ruim? Nem um, nem o outro. É tão só e simplesmente o choque de duas culturas que chegaram a um ponto de fusão. Há coisa de uns 10, 15 anos atrás, as fotos tinham esse fim, de virarem álbuns que guardávamos em alguma caixa que pensava ser coração. Mas houve uma mudança, que pode ser chamada de evolução, e hoje, com a facilidade de aquisição de câmeras digitais - a propósito, as tão exaustivamente usadas câmeras polaróides e 'toco-preto', que você colocava o olhinho e focalizava o objeto a ser fotografado já devem estar nas estantes vintage mais próximas - e a facilidade também de divulgação desse tipo de foto por toda a rede afora em questão irrisória de segundos, foram aliados nessa revolução cultural da foto. E haja photoshop, coreldraw, efeitos, técnicas; tudo para tornar uma foto comum num banner publicitário.
Não me ponho aqui como defensora de um lado ou de outro. Nada é imutável ou estaciona permanentemente no tempo. Daqui a alguns anos, quiçá, está cultura também será transposta por outra, sabe-se lá qual. Mas é interessante seu estágio contemporâneo. Acredito que nosso envelhecimento como um todo será melhor recortado e observado. Bom, quando eu tinha 18 anos eu era assim, olha o quanto eu envelheci em dois anos, etc. É a sucção da informatividade, da atualização-câncer. Todo mundo, no fundo, quer ser visto. Quer, de alguma maneira, se mostrar, dar seu melhor, passar sua mensagem com uma assinatura muito física. E não há nenhum pecado nisso.
Efêmera ou não, toda tendência reflete o timão de sua sociedade. E com a neo-cultura da foto não é diferente.

Boa segunda-feira!

quinta-feira, 9 de abril de 2009

Os contos dos viajantes (Parte II)

Chovia muito quando o viajante Seu Luís sentou-se a meu lado. Como o viajante Roni, me ofereceu uma bala que, desta vez,aceitei. Seu Luís é pai de quatro filhos crescidos que moram em diferentes lugares do Brasil. Como Celeste, também estava às vésperas de seu sessentenário, que pretendia comemorar na companhia de sua mulher e de um grupo de aniversariantes do mesmo mês, num hotel-fazenda no interior do RJ. Esse costume já estava se repetindo pela sétima vez. Acredito que, de todos os viajantes, ele foi o mais falante. Relatou-me, entre outros, dois memoráveis episódios de sua vida: a morte de sua mãe em seus braços - e seu estranhamento/despreparo com relação à esta, afinal, infartos não avisam - e de quando, com 20 anos, sofrera um assalto que resultou num coma seguido de uma cadeira de rodas durante um ano. Um tiro na cabeça que poderia ter sido o fim. O doce viajante lembrava de tais epifanias com lágrimas discretas no canto dos olhos, vangloriando-se da oportunidade única de viver após um ano numa cadeira de rodas. Grande prazer o meu em conhecê-lo.
O sol chicoteava as maçãs do meu rosto quando uma senhora passou a minha frente na fila, no momento que os passageiros começavam a ingressar no bonde mágico. Todos apressaram-se em esclarecer que ela havia chegado antes, e havia se abrigado sob o toldo para aplacar a fúria do astro-rei, ao que imediatamente cedi sua passagem no instante em que vi nela uma pessoa educadíssima. 6,50. Passe.
A princípio, ela procurou outro lugar para se sentar, então só depois instalou-se à minha direita. "O cara tava achando que o ônibus era dele, todo esparramado nas poltronas!" e a partir disso, eu descobri que ela era Dona Jandira, que morou 53 anos em Caxias e agora tinha se mudado para Niterói pela qualidade de vida superior. Em casa, o marido lhe esperava, bonachão. Ela tinha dois filhos com 18 anos de diferença entre eles, mas falava do mais novo com um certo pesar implícito. O que seria? Eu jamais perguntaria.
Meu último viajante eu conheci quando voltava para casa. Com licença. Toda. Aceita uma bala? Era tamarindo, e como eu negaria? Boa noite, meu nome é Paulo. Prazer, Paulo, eu me chamo Ana. Oi Ana, tudo bem? Tudo sim, e você? Tudo ótimo.
Paulo então começou a me contar sua breve biografia. Estude, Ana, mas principalmente trace um objetivo e nunca desista dele. Lembrei das minhas aulas de semiótica e do objeto-valor. Você faz o que? Letras! Que legal... eu faço direito agora, mas pela falta de um direcionamento eu ainda não me formei... eu sou baiano... de Salvador. Nossa, terra boa! Fui lá tem pouco mais de um ano. É sim, eu sinto falta da Bahia... agora divido o meu tempo entre faculdade e quartel. Ah, você é do quartel? Sim... entrei neném... com 17 anos. Nossa! Pois é... lá eu sou cozinheiro. Pronto. E toma-lhe receitas de bolos, massas, pratos, etc, etc. Avenida Brasil, aqui é meu ponto... foi um prazer te conhecer, Paulo, fica com Deus! E da janela eu acenei para ele.
Os viajantes que cruzam o meu caminho não me apresentam defeitos. São bons de coração e prodigiosos. Suas histórias são como arenas outras que não ouso pisar, mas observo atentamente. Trajetórias. Caminhos entrecortados. Tudo aquilo que pode ser alterado pelo mero contato com o alheio, tudo aquilo que muda o dia no fim do dia. Aventureiros sozinhos, corajosos, que não temem conhecer outras pessoas, cada uma com uma propriedade inalienável chamada índole. E meus viajantes se misturam ao mundo que também ajudam a delinear, posto que são todos peça deste grande quebra-cabeça. E então ninguém é mais ilha, todo mundo comunga da história e não consegue ser sozinho.
O bonde mágico tem um quê de salvador da sanidade a cada insólito dia que termina.

domingo, 5 de abril de 2009

Os contos dos viajantes (Parte I)

O ponteiro menor do relógio já se prepara para abraçar as treze horas. Espero na fila pelo meu bonde, que é, em verdade, encantada aldeia das mais distintas gentes. Subo a escadela. Boa tarde, motorista. R$6,50. Passe.
Eis que se aproxima a primeira viajante. Celeste. Uma viúva bem resolvida e serelepe, no mais puro realismo do termo. Viajante viajada. Dois anos antes havia estado na Grécia e em outros países. Alguns dias depois, faria 62 anos, e sua saúde física e espiritual eram tão formidáveis que reduziam este número em pelo menos uma dezena. Simpática, com um ótimo gosto, adepta de festas com a neta e residente de Cabo Frio, abençoado recanto. Tranquilamente ainda degustaria de mais alguns bons 60 anos.
Dias depois do meu encontro com Celeste, à mesma hora e lugar conheci Roni, o paraense. Me ofereceu uma bala que recusei não por medo, mas por falta de vontade. Contou-me de sua odisséia até o Rio de Janeiro, e espantou a hostilidade do carioca nas relações humanas, quando disse ter sido ignorado nas vezes em que foi pedir informação. Ficou à beira das lágrimas quando começamos a conversar sobre times, que nele sucitaram lembranças do irmão, vascaíno inveterado como eu, de 14 anos, que a morte levou muito cedo. Atualmente, trabalha numa empresa niteroiense. Simples, humilde e promissor. Roni.
Não posso deixar de mencionar também o fiel Francisco de Oliveira Chagas, como ele mesmo se apresentou. Evangélico e fanho, tentou, num primeiro momento, peregrinar cruzadorescamente sua fé, mas direcionei a conversa para outro ponto. Aparentemente de origem pobre, o beata esperava por Jesus. E começou a me contar que estava aprendendo a tocar teclado, e o assunto fermentou quando eu disse que possuía um, e embora não soubesse ler as partituras, tocava conforme os meus ouvidos. Disse a mim que adoraria aprender (sic) latino, e quando eu lhe contei que estava tendo noções dessa língua, ele abriu um baú de perguntas deslumbradas, muitas das quais eu não tinha a mínima base para responder. Francisco de Oliveira Chagas. Siga em paz.

terça-feira, 31 de março de 2009

Meu guri

Do meu quarto eu já consigo ouvi-lo. Ele vem subindo as escadas, trotando, ofegante, feliz; quebrando deliciosamente minha concentração nos meus intermináveis textos de teoria literária. Vou à cozinha e lá está ele. Desajeitado, a mãozinha de unhas roídas e encardidas apoiada na parede, a outra a remover a meia do pé. Ele olha pra mim, e me dá o melhor presente: seu sorriso sincero, que na ausência dos dois dentes frontais só se torna ainda mais angelical. Então eu o abraço. A camiseta de seu uniforme cheira a refrigerante e suor, mas um suor cheiroso, puro. Ele me envolve, e como num passe de mágica, me transmite toda aquela felicidade que me parece tão distante nas outras horas em que ele não está perto.
E então dispara a contar dos feitos na escola, comendo partes inteiras das palavras, - tão dispensáveis quando sua visibílissima empolgação e vitalidade embriagam o meu olhar - relatando suas descobertas, a pinta da tia, o sobrenome engraçado do amigo, a hora do recreio. De súbito, ele lembra do horário de seu desenho predileto, e corre da cozinha para a sala, se jogando no chão fresco, colando seus olhos atentos à tela como se fosse a programação mais incrível do mundo. Mesmo reprisado, o desenho ainda o faz cantar sua música-tema, vibrar com o sucesso do heroizinho, torcer contra o mau elemento.
Ele pede 'necau'. Há alguns bons anos ele já conhece a pronúncia certa, que é 'nescau', mas reitera esse pequeno tatibitate talvez até por (in)conscientemente saber que ainda mais graça e ternura isso lhe confere. Ele não come açúcares, mas os únicos que tolera são os presentes neste achocolatado, em refrigerantes, em sorvetes (morango, only) e - pasmem - no leite condensado. Alguma meia hora depois, hora do almoço, ele nutre o péssimo hábito de adorar aquelas pequenas e venenosas carnes congeladas - os mini chickens - e só come mediante a presença daquilo em meio ao arroz e feijão. A digestão é obviamente acompanhada de guaraná.
Logo após isso, ele espaçosamente pula na cama do quarto de minha mãe, e pede para que eu ligue o video-game. E o tempo parece se congelar durante o jogo, tão maravilhosa que é a minha tarde com ele. Para ele, eu sou uma heroína, tanto quanto a princesa Zelda. Eu sou muito esperta, ele nunca vai ser igual a mim, eu tenho a letra bonita, eu sei ensinar o dever, ele me ama de quinze em quinze minutos. A sua vozinha rouquenha e pueril inunda meus ouvidos de alegria, faça chuva ou sol. Quando chega a hora de voltar à sua casa, geralmente vai sob protestos - e secretamente, também o faço (quisera eu ser sua mãe). Chora, mas aos poucos vai calando quando eu digo que no dia seguinte, ele estará de volta para fazermos tudo de novo, inclusive chegar ao mestre do jogo, pesky Skullkid. Temos umas bobeiras só nossas. Inventamos uns nomes que só nós sabemos. Suas axilas ele chama de Peter Parkers. Seu pipi eu apelidei de 'biriguelson', o bumbum tranformou-se numa onomatopéia irreproduzível por qualquer outro estranho, entre outras, que citamos no banho por exemplo, e tudo é festa, nós dois desmaiando de rir.
E eu não tenho como agradecê-lo por isso. Nem nunca terei.

sábado, 28 de março de 2009

Unplugged

Vamos desligar.
Vamos desacelerar. Tire tudo da tomada. Impressora, microondas, modem, telefone, coração. Aperte o power do celular, do bipe, do IPOD. Vamos dar um tempo. Não, não se trata de nenhuma "hora do planeta". É a sua hora. Sua e de cada um.
Vamos respirar. Tudo desligado, o som da respiração é precioso, e pede atenção. Vamos voltar nosso olhar pra nós mesmos, recortando mentalmente tudo aquilo que realmente é importante e separando da cinza impureza mecanicista. Ora esguardai.
Fechemos os olhos traguemos fundo o ar que, com um pouco de imaginação e positivismo, convertemos em puro oxigênio. Fechemos os olhos, fechemos mesmo. Olhos abertos são como tomadas de alta voltagem, conectoras do mundo externo que, de tanta informação, entontece. Descansemos. A ordem hoje é desligar. Vamos desligar.
Vamos entrar na água. Já que tudo está desligado, não há perigo. Primeiro, delicadamente e sem pressa nós inserimos as pontas dos dedos dos pés, para que cada nervo sinta o prazer que mora na água. Depois, os pêlos das pernas vão encontrando na sensação aquosa um beijo inédito. Mergulhe agora. Deixe que a água preencha suas narinas, seus cabelos, e tudo o que mais houver. Deixe. Permita.
Não se importe em desligar. É preciso desligar. A cabeça que trabalha sob muitos volts todo o tempo se desgasta muito rápido, muito fácil. Uma bateria é uma bateria. Uma pilha é uma pilha. O corpo não é uma pilha, mas se recarrega apenas em descanso. Não saia correndo. Não faz mal estar em ponto morto. Felicite-se por se dar essa oportunidade única, cado estúpida e individual de sentir-se. Sinta-se. Toque-se. Bombeie energia natural pelo seu corpo com a força do pensamento - a mais poderosa força que há.
Vamos desligar. A tomada tem pouco mais de um centenário, e viveu-se muito bem sem ela. Aliás, vale lembrar que foi imerso na escuridão que Galileu observou o heliocentrismo. Desligue a luz. No escuro, a gente desenha mundos imaginários incríveis. Não tenha medo do escuro. Medo do escuro é uma crença moderna feia, propaganda melhor de sua necessidade pela luz. A luz é boa, mas também cega. Enxergue pelas pontas dos dedos, com a boca, com o pulso. Vamos desligar.
Desligue absolutamente tudo. Desligue o ar-condicionado, o ventilador, o rádio, e principalmente a televisão. Se também for o caso, desligue o aparelho. O aparelho só está adiando o inevitável, aliás, o que já era para ter acontecido. Se você ama, você deixa ir. Dê a liberdade a quem se ama. Desligue. Desligue totalmente.
A intensidade não está na eletricidade. A eletricidade é sim, necessária para muitas coisas, mas permita-se alguns minutos de sua total abstinência, todos os dias, se conseguir. Afinal, qual condutor é maior que a vida?

quarta-feira, 25 de março de 2009

Adoráveis excêntricos

Segredinho aqui: adoro excêntricos. Diferente dos "esquisitões" que eu já citei, uns vinte posts atrás, esses querem holofotes. Enquanto os weirdos estão sempre cortando pela tangente, com o olhar desconfiado e o rabo entre as pernas, os excêntricos gostam de puxar todo tipo de olhar para si mesmos, por arbitrário que pareça isso em relação à própria palavra. Excêntricos são bacanas. Muito constantemente, alvos de gozação e ovação. Acontece que esse tip(ã)o nunca passa despercebido, e, reitero, faz questão justamente de não passar. Aliás, o não-reconhecimento, no caso deles, beira um ultraje.
Agora, leitor, um exercício de memória. Pense em quantos excêntricos você se lembra, porque os considera excêntricos e se tem alguma coisa contra eles. É provável que você se lembre de três, ou cinco (dependendo do universo cultural no qual você está inserido, esse número pode se elevar bastante). E contra? Bom, eu tenho quase certeza que não. Que você pode achar, no máximo, que eles têm uma desesperada vontade de aparecer no seio do olhar-comum.
Boa parte dos excêntricos têm um fundamento - and a good one - para ser assim. Para ter a certeza do que digo, pode procurar em suas biografias. Sua crônica insatisdação com o mundo é o berço de todas as outras razões. Eu tenho a idéia fixa de que quem nasce excêntrico morre excêntrico. É uma marca indissociável, que não se muda de acordo com profissão, nível social, escolha política, nada. É um carma inescapável, que desenha em torno da pessoa um indicativo para o estranho, para o atrativo. Sinceramente? Nada mais interessante.
Você pode achar a Elke Maravilha (sou fã confessa dela!) um monstro andrógino e mutante; o Marilyn Manson um e.t com fortes tendências a bizarrices sexuais explícitas, a Diablo Cody uma... ah, parei de definições. Afinal, por ser excêntrico, o próprio excêntrico não cabe em si.

Homem que é homem também chora

Há um tempinho vi, quase por acidente, um filme brilhante de um cineasta que tem meu apreço completo. Chama-se "Fale com ela", do incomparável Pedro Almodovar. Não, o filme não aborda centralmente sobre a dureza dos homens para com o choro, a despeito do título da postagem, nada tem com isso. Mas, indo pela tangente, toca sim no assunto.
Quase todas as culturas que conheço veêm negativamente o fato de um homem se manifestar de forma livre e emotiva, especialmente se este estiver chorando. Oras, que tabu gasto. Por que um homem não pode contemplar um espetáculo de teatro, de música, uma exposição de arte sem permitir-se o direito de se emocionar? "Ah, é um viadinho!" é o que certamente diria a voz da intolerância másculo-estúpida, essa que, de tão entremeada no senso-comum, passa despercebida muitas vezes até por quem tem por ela desprezo (meu caso). O estranhamento quanto à essa sensibilidade masculina incongênere, que pode parecer muito comum dentro do olhar incauto de um telespectador despreparado para o estilo almodovariano, gira justamente em torno dessa massificação quanto ao embrutecimento do homem enquanto macho. O machão que chega ao bar, que coça o saco, que cospe grosso. E a sociedade acha lindo, porque homem que é homem precisa estar mostrando que é homem a todo tempo. Porque os homens foram impedidos de chorar? Principalmente, porque um homem não pode simplesmente destoar o coro e chorar com muita facilidade, sem ser tomado irrefletida e obviamente como homossexual?
Sou um tanto suspeita pra falar sobre homens que choram, porque sou filha de um pai chorão pra caramba. Não que os homens que chorem mais sejam melhores que os demais, mas boa parte dos melhores homens que conheço não ficam nacarando seus choros, principalmente quando esses fluem espontâneos, livres, isentos de críticas de qualquer parte, desnudos de qualquer receio ou amarra.
Besteira é não expor o que se sente por uma mera formalidade estupidamente condensada.

sábado, 14 de março de 2009

Ata-me

As mãos quentes de Raoni tremiam sob o volante, discretamente. A noite estrelada que fazia não aplacava a sensação térmica de 13º na subida da serra. Do lado do carona, Lúcia acendia um cigarro - ela sabia que Raoni não gostava. Ela estava linda e clássica dentro daquele pulôver tão quente - quente como as palavras não ditas que jaziam entre sua garganta e dentes.
_ Pára de fumar, Lúcia, não posso abrir o vidro.
_ Preciso. Juro pra você que é só esse.
_ Porra, tu é f...
Lúcia sempre tendia à imperatividade sutil e Raoni, mesmo contrariado, aquiescia aos seus caprichos. Era uma sina, uma sina viciosa e renitente se arrastando ao longo daqueles dez anos. Por outro lado, Lúcia sentia um estímulo impossível pela indiferença de Raoni, desde a época do namoro no sofá da sala ao som de Moulin Rouge. Zodíaco. Fantasmas vermelhos de um passado presente. E que merda de vida eles empurravam - ela estava se divorciando de um casamento de 3 anos e havia tido uma filha; a noiva de Raoni havia morrido num acidente coisa de cinco anos.
De supetão, Raoni parou o carro num mirante da Serra. O firmamento, fantástico, todo vestido de negro e corpos celestes era coroado pelo ruído dos insetos e as luzes de Petrópolis, que ainda estavam distantes. Ele saiu, sentando-se no capô do carro. Lúcia acendeu outro cigarro, enquanto olhava para as costas de Raoni, tentando imaginar sua musculatura por debaixo de seu magro casaco. Ela gostava mais dele nu.
_ Bonito aqui, né? - Ela dizia ao se aproximar, eliminando fumaça pelas narinas.
_ É, não dá pra negar.
Fez-se um silêncio tortuante tanto quanto o frio cortante, por exatos dois minutos.
_ O que vai ser, Lúcia?
Ela esboçava um torpe sorriso de canto de rosto. Pelo que ele conhecia da linguagem do seu corpo, aquela expressão era característica de quando ela queria sexo.
_ Sei lá, Raoni. - pisava no cigarro _ ... essa é a nossa história, né? Essa é a troça que o destino fez da gente. Nós somos dois putos que nunca tiveram escolha, cê já parou pra pensar?
_ É... é foda. A gente aqui de novo. Um olhando pra cara do outro. Que graça vai ter a gente se comer dentro do carro igual dois adolescentes? A gente tá ficando velho pra isso, Lúcia. Você tem uma filha. E eu vô seguindo a minha reta...
_ Nunca te disse, Raoni, mas eu sinto muito pela Marcelle.
_ Talvez eu não a merecesse, talvez ela fosse boa demais.
_ Não fala uma porra dessa!
_ Então o quê? Do que que você sabe, Lúcia? Eu digo o que eu quiser, foda-se!
Uma pausa. Uma brisa salpicou os cabelos de Lúcia por seu rosto.
_ ... será que vai ser assim pra sempre, eu e você? Nunca juntos, nunca separados? dez anos, Raoni, dez anos! E que demônio de fogo é esse que não cede?
_ Não faço a mínima idéia, Lúcia. Parece que tá escrito, né?
_ Será que é maldição, será que é mandinga?
_ Acho que não. Trabalhos duram sete anos, se fosse assim, o nosso teria vencido há três.
_ Sei... - Lúcia sorri
_ Lúcia?...
_ O quê?
_ ... você... você me... ama?
_ Sim, como amigo. Como homem não, você já me deu muito trabalho com esse papo de amor. E você? Me ama?
_ Não. Eu gosto de transar contigo, só. Você foi a melhor. A merda é que eu sempre transpareci isso.
- Hum... vamo transar então? Por esse momento?
_ Pode ser. Que momento é esse, desde quando a gente tem 'momento' pra trepar?
_ São nossas bodas de sangue.