quinta-feira, 9 de abril de 2009

Os contos dos viajantes (Parte II)

Chovia muito quando o viajante Seu Luís sentou-se a meu lado. Como o viajante Roni, me ofereceu uma bala que, desta vez,aceitei. Seu Luís é pai de quatro filhos crescidos que moram em diferentes lugares do Brasil. Como Celeste, também estava às vésperas de seu sessentenário, que pretendia comemorar na companhia de sua mulher e de um grupo de aniversariantes do mesmo mês, num hotel-fazenda no interior do RJ. Esse costume já estava se repetindo pela sétima vez. Acredito que, de todos os viajantes, ele foi o mais falante. Relatou-me, entre outros, dois memoráveis episódios de sua vida: a morte de sua mãe em seus braços - e seu estranhamento/despreparo com relação à esta, afinal, infartos não avisam - e de quando, com 20 anos, sofrera um assalto que resultou num coma seguido de uma cadeira de rodas durante um ano. Um tiro na cabeça que poderia ter sido o fim. O doce viajante lembrava de tais epifanias com lágrimas discretas no canto dos olhos, vangloriando-se da oportunidade única de viver após um ano numa cadeira de rodas. Grande prazer o meu em conhecê-lo.
O sol chicoteava as maçãs do meu rosto quando uma senhora passou a minha frente na fila, no momento que os passageiros começavam a ingressar no bonde mágico. Todos apressaram-se em esclarecer que ela havia chegado antes, e havia se abrigado sob o toldo para aplacar a fúria do astro-rei, ao que imediatamente cedi sua passagem no instante em que vi nela uma pessoa educadíssima. 6,50. Passe.
A princípio, ela procurou outro lugar para se sentar, então só depois instalou-se à minha direita. "O cara tava achando que o ônibus era dele, todo esparramado nas poltronas!" e a partir disso, eu descobri que ela era Dona Jandira, que morou 53 anos em Caxias e agora tinha se mudado para Niterói pela qualidade de vida superior. Em casa, o marido lhe esperava, bonachão. Ela tinha dois filhos com 18 anos de diferença entre eles, mas falava do mais novo com um certo pesar implícito. O que seria? Eu jamais perguntaria.
Meu último viajante eu conheci quando voltava para casa. Com licença. Toda. Aceita uma bala? Era tamarindo, e como eu negaria? Boa noite, meu nome é Paulo. Prazer, Paulo, eu me chamo Ana. Oi Ana, tudo bem? Tudo sim, e você? Tudo ótimo.
Paulo então começou a me contar sua breve biografia. Estude, Ana, mas principalmente trace um objetivo e nunca desista dele. Lembrei das minhas aulas de semiótica e do objeto-valor. Você faz o que? Letras! Que legal... eu faço direito agora, mas pela falta de um direcionamento eu ainda não me formei... eu sou baiano... de Salvador. Nossa, terra boa! Fui lá tem pouco mais de um ano. É sim, eu sinto falta da Bahia... agora divido o meu tempo entre faculdade e quartel. Ah, você é do quartel? Sim... entrei neném... com 17 anos. Nossa! Pois é... lá eu sou cozinheiro. Pronto. E toma-lhe receitas de bolos, massas, pratos, etc, etc. Avenida Brasil, aqui é meu ponto... foi um prazer te conhecer, Paulo, fica com Deus! E da janela eu acenei para ele.
Os viajantes que cruzam o meu caminho não me apresentam defeitos. São bons de coração e prodigiosos. Suas histórias são como arenas outras que não ouso pisar, mas observo atentamente. Trajetórias. Caminhos entrecortados. Tudo aquilo que pode ser alterado pelo mero contato com o alheio, tudo aquilo que muda o dia no fim do dia. Aventureiros sozinhos, corajosos, que não temem conhecer outras pessoas, cada uma com uma propriedade inalienável chamada índole. E meus viajantes se misturam ao mundo que também ajudam a delinear, posto que são todos peça deste grande quebra-cabeça. E então ninguém é mais ilha, todo mundo comunga da história e não consegue ser sozinho.
O bonde mágico tem um quê de salvador da sanidade a cada insólito dia que termina.

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