segunda-feira, 13 de outubro de 2014

Missão impossível

Observar janeiros com mais paciência. Não que as coisas subitamente tenham ficado mais calmas, mas há que fazer uma força - uma força necessária - para perceber a vida que se espreme na pressão dos verões. Ontem eu vi você caminhando na beira da praia. Tinha um livro pequeno na mão. No janeiro passado era um isqueiro - ou um celular, ou um chaveiro, não me lembro. Sei que hoje você carrega um livro, e a julgar pela posição que teus dedos ocupavam no meio das páginas, você já o lia há algum tempo.  Pode não ser nada, mas pode ser que você tenha mudado. Pode ser que alguma coisa dentro de você tenha acontecido.

Tô pensando em voltar a fotografar. A imagem estática me ajuda a ver com mais detalhes aquilo que some à primeira vista - o que é muito natural - mas perder os detalhes me deixa com um tipo estranho de buraco. A sensação de buraco é estranha. Lembro de você dizendo que minha fotografia não era grande coisa, e que eu precisava estudar mais. Mas, né. Tenho esse espírito torto que você conhece, esse fio de teimosia que é até útil em certa medida. Voltemos aos janeiros.

Eles passam tão depressa. Mais até que os dezembros, porque os dezembros ainda carregam aquela saturação acumulada de todos os onze meses anteriores. Dezembro é inchado como é inchada uma perna coberta de varizes, mas janeiro não. Ele traz essa (falsa) idéia de que a gente pode ter o mundo nas mãos, fácil de acreditar pelo excesso de branco nas ruas. Mas o mundo nunca foi tão difícil de se ter, de se ler, de se ver, e isso não é necessariamente ruim.

Apesar de tudo parecer circular, as intermitências estão lá. Elas provocam deformidades tantas vezes ínfimas nas rodas perfeitas e é isso que faz morrer - e faz nascer - um monte de coisas. É a isso que pretendo dispensar atenção. Topar essa missão impossível de detectar o turning point exato. Ambição minha? É provável. É razoável. Como eu te disse, pode não ser nada, mas pode ser que você tenha mudado. Afinal, até os janeiros estão mais quentes.

Eu também.

quarta-feira, 8 de outubro de 2014

Os meninos suicidas

Os meninos suicidas entraram no ônibus num trote sonoro, violento. Um monte de pernas pretas e ruças em par, se trombando todas na correria por um assento vago. “Estamos fora do problema, mas se o problema vier até nós, não vamos correr”, disse assim, messiânico, um deles.

Gritos, psssst, quando a gente desce, porra mané, tô chei de fome, risos, funk, gritos. Ninguém dorme. Os meninos suicidas desejam que o ônibus tombe, e que morram todos. Eles reiteram sua vontade repetidas vezes durante o trajeto, como se apenas pela força dela aquilo fosse capaz de acontecer. Mais uma curva, e a morte não chega. Azar.

Meninos suicidas não podem amar aqueles que os fitam com nojo, cinismo e desprezo. Eles não podem fazer silêncio para que sua miséria passe despercebida – ela, por si só, é bem ruidosa. Eles não podem se comportar porque o pai deles não recebeu educação, porque o pai do pai deles não recebeu educação, porque o pai do pai do pai deles não recebeu educação, porque o pai do pai do pai do pai do pai deles, no lugar de educação, recebeu uma saca pesada de café muito maior que suas próprias costas para carregar – e a única herança que conhecem é a saca. Eles não podem amar um pai que talvez nem tenham conhecido.

“Vai cair, vai virar, vai cair, vai virar”. “Tomara”. “O fim dos tempo, tô doidim que chegue logo, vários arrastão pra nóis fazer”. Someone has to pay the bills.¹ Os meninos suicidas não temem a morte – aquilo a que se acostuma, afinal, só se destina indiferença. Não há com o que se importar porque eles já estão socialmente mortos. Agora querem morrer fisicamente, mas antes querem que os outros morram. Querem mata-los se tiverem a chance. E vão rir disso com a felicidade nervosa de quem espera algo ou alguém com saudade, sob uma bananeira, apontando uma arma iluminada pelo sol de forma que, aquele que morrer pelo tiro que vai sair dela possa ver, minutos antes, o vermelho-queimado que emoldura o interior do cano. Eles não vão ter pena porque não podem. Meninos suicidas não podem muitas coisas.

Faz um dia bonito e quente do lado de fora da janela. Talvez até mesmo a morte possa esperar aqueles que precisam fazer um passeio. Apontam seus indicadores para as motos, para a mulher gorda, para o cavalo e tudo o mais que fica para trás. Um deles diz que vai acender velas para São Jorge. O outro faz um sinal de degola para um transeunte. Mais calado e alheio, um cola a testa no vidro e apenas observa o movimento nas ruas. Hoje eles são reis. Mas que súdito respeita reis sem coroa? Que reino é esse que se ergue se os reis próprios são anarcomonarcas? Que reino é governado por meninos de 12 anos que têm a morte como a única certeza, uma morte inevitável que se manifesta de diferentes formas, tantas vezes por dia? Certamente que é melhor ser rei de si, que "si" é uma terra onde se sabe caminhar, que "si" é o lugar onde não se paga imposto.

Ao descer do coletivo, os meninos suicidas se espalham entre as demais pessoas que deixam a estação. Do lado de fora, um homem uniformizado de azul-escuro os espera de braços cruzados. Quando eles se dão conta de que são esperados eles se tornam aranhas, e serpentes, e ratos, e pássaros, e passam pelas mãos do homem, e pelas pernas, e pelos braços, porque tendo o inimigo tendo pés não foi capaz de alcançá-los; porque eles olharam dentro do olho do inimigo e disseram say you never gonna catch me, no², mas os meninos não falam inglês. Os meninos falam é a língua da rua com os examinatórios pés calejados de tanto correr, e com os olhos invasivos e curiosos de quem nada tem.

Qualquer dia de sol desses os meninos explodirão. Um após o outro, dois ao mesmo tempo, porque, então, os dias amargos terão chegado ao fim³. E não há de cair uma folha da árvore em luto por eles. Indiferentes, eles encontrarão São Jorge que, grato pelas velas acesas, os receberá de braços abertos.

1- The boys who died in their sleep, Flying Lotus, ‘You’re dead!’, 2014
2- Never gonna catch me, Flying Lotus feat. Kendrick Lamar, ‘You’re dead!’, 2014
3- Coronus, The Terminator, Flying Lotus, ‘You’re dead!’, 2014


quarta-feira, 13 de agosto de 2014

Julia

"A felicidade é a vitrine de um lugar que eu não posso entrar.", escreveu, concluindo mais um parágrafo sofrível no seu caderno de memórias. Às vezes, acordar no meio da noite pode ter suas vantagens, a cabeça assustada funciona melhor, o silêncio parece saído daqueles filmes do Hitchcock - e isso era uma coisa boa - e apesar do corpo descoberto de remédios àquela hora, talvez fosse aquela a única hora em que se sentir segura não parecia uma idéia absurda. Levantou e foi à cozinha. Encheu um copo de água até a metade, tô achando essa água amarela, não tomou tudo. Voltou ao quarto, abriu a janela e ficou com os olhos fundos na baía negra, forçando a vista até conseguir ver onde a água se dividia do céu.

Era seu último cigarro. Acendeu-o, enquanto com a outra mão manuseava o caderno e ia lendo o que havia escrito nos últimos dias. "Daí essa mulher veio na minha direção, a barriga protuberante de uma protuberante gravidez chegando antes dela; numa mão compras e na outra um menino de quase cinco anos chorando por qualquer motivo. Ela deveria ter a minha idade, e eu não sou tão velha assim. Dois filhos, compras, um vestido bonito com jeito de caro, e eu tive uma curiosidade fofoqueira sobre a vida dela durante aqueles cinco minutos. Ela parou, comprou um sorvete pro garoto, que calou o choro, sorvete coercitivo. Checou o celular, e sorriu. Pôs a mão sobre a barriga, e o menino também, abrindo um sorriso. Eles pareciam felizes, e isso é uma coisa que me desconcerta. Não por eles. Mas pela falta de dificuldade em ser feliz do resto das pessoas. A felicidade é a colina mais alta, mas há quem simplesmente disponha de elevador. A felicidade é a vitrine de um lugar que eu não posso entrar."

Já devia ser seu quinto caderno de memórias. Luiza insistia que ela devia compilar tudo, entrar em contato com uma editora, e dar um jeito de publicar. Ela ria e desconversava, aquilo não era material pra publicação. Mas Luiza discordava. "Isso pode ajudar muita gente, Julia. Já parou pra ver o quanto são ricas as coisas que você escreve?" Por educação, ela respondia que ia pensar. Não tinha nada de motivacional ou de construtivo em nada daquilo. Pelo contrário: aqueles eram os escritos de uma mulher à beira da morte. Se lidos por outro alguém à beira da morte, poderiam, facilmente, pôr a pessoa na mesma rota. E se havia uma coisa na qual ela acreditava era que, se fosse pra morrer, o melhor a se fazer era levar consigo o menor número de pessoas possível. Por esse motivo havia, voluntariamente, voltado para o apartamento em Niterói. Por esse motivo o casamento havia sido desfeito a tempo. Era melhor ficar sozinha.

Naqueles últimos meses, no entanto, estava ficando mais difícil. Toda suicida conhece aqueles dias. A morte brotava das paredes do apartamento feito mofo. Ela podia sentir sua força se esvaindo, ela podia sentir o braço quedando naquela peleja desigual. Quando ela não ia ao consultório, Luiza fazia o favor de aparecer. Luiza gostava dela, e parecia estar sempre temendo o pior. Chegava lá com uma expressão invariavalmente esbugalhada, que imediatamente se convertia numa espécie de pesar, de pena, e por fim, de uma pequena esperança. Luiza estava sendo uma boa amiga, e ela sabia disso; mas até contra essa possível amizade ela vinha lutando, porque bem sabia que o que tinha era contagioso. Não queria que Luiza ficasse triste, nada disso.

Se lembrou das acerolas na geladeira. Era tempo de aceloras. Comeu umas cinco, sete de uma vez só. Pelas aceloras ainda guardava alguma gratidão pela vida. Pelas aceloras.

terça-feira, 10 de junho de 2014

Lição de Paris

Mirem-se no exemplo 
daquele evento em Paris: 
amor que se tranca
destrói pontes;
amor que se tranca
pode estar por um triz.

terça-feira, 3 de junho de 2014

About infinity

About infinity

Dreams are a matter of advertising
Love is a matter of perspective
Faith is a matter of convenience

Dreams are a matter of convenience
Love is a matter of advertising
Faith is a matter of perspective

Dreams are a matter of perspective
Love is a matter of convenience
Faith is a matter of advertising

And so on.

sexta-feira, 16 de maio de 2014

[Des]explicação do senso comum

a ideologia dominante a vitória a vitória da ideologia dominante a vitória a vitória da ideologia dominante a vitória a vitória a vitória da ideologia dominante dominante vitória é a sua repetição repetição repetição a vitória da ideologia a vitória da ideologia dominante é a sua repetição invisível invisível invisível repetição invisível repetição repetição repetição a repetição da vitória da vitória é a ideologia dominante invisível a repetição da vitória é a ideologia dominante invisível dominante é a ideologia da repetição da vitória invisível invisível ideologia  a repetição da vitória invisível é a ideologia dominante dominante dominante a repetição a vitória invisível da repetição é a ideologia dominante dominante dominante.

sábado, 18 de janeiro de 2014

A couve

A couve estava lá, parada e ensacada no canto. Tinha vindo de uma família grande de couves, que havia se separado para alimentar os Reis, os Fernandes, os Pereira, os Gonçalves, numa diáspora violenta. Retirei a couve do saco, e examinei-a devagar e notei a beleza das suas nervuras fortes, se espraiando do caule em todas as direções. Fosse eu uma criatura pequena, da altura duma formiga, pensaria ser a couve uma árvore tombada depois da chuva. Mas era eu a criatura grande, ali, mergulhando a couve em água na vã tentativa de desintoxicá-la das milhares de substâncias contidas nos agrotóxicos que ironicamente as preparam para o consumo humano. O que os olhos não veem, o coração não sente. Mas vale a beleza lenta do mergulho da couve na água, que atribui a ela novos contornos.

Preparação. 4 dentes de alho, 1 cebola inteira. Soca-se o alho com a fúria da fome, e pica-se a cebola, afastando o choro dos olhos. Nem quando perdi meu primeiro amor chorei assim. Nem quando a polícia militar do Rio de Janeiro lançou, na minha direção, uma bomba de gás lacrimogêneo, eu chorei assim. Então, depois de devidamente misturados alho e cebola, foi a vez de cortar a couve.

Conforme ia empilhando, uma a uma, as folhas, me deparei com algo fora do comum. A primeira folha tinha um rosto. Era um rosto de gente, mas de gênero indefinível; um rosto que me sorria sem eu pedir, um rosto simpático, sobrancelhas, olhos, boca, dentes, nariz, bochechas, tudo se convertendo num sorriso estranho e verde, e larguei as folhas na vasilha e as tranquei no fundo mais fundo da gaveta fria da geladeira.