terça-feira, 13 de maio de 2008

A menina e o flamboyant

Lúcia tinha 9 anos, e era a única menina de Yolanda. Seus irmãos mais velhos estudavam, ou focavam-se em outras coisas; tinham costumes que não eram de seu feitio. Sozinha, sem amigas na rua, a menina tentava divertir-se ao seu modo.
Passava longas horas da tarde sob o flamboyant que situava-se à frente da casa da avó. Não sabia o porquê, mas como adorava aquela árvore. Arrancava-lhe as folhas, e as jogava sobre si mesma como se fossem pedaços de sonho, como se fossem confetes. Contava seus segredos ao flamboyant, seus medos, seus estranhamentos quanto ao desconhecido. E ria-se, como se aquela árvore lhe abraçasse. Gostava mesmo é da primavera - seu inverno humilde também era um fator relevante - que era quando o frondoso e imperial vegetal se abria, rubro, orgulhoso de si e do carinho de Lúcia para com ele.
O tempo passou, e a contragosto do Flamboyant, Lúcia cresceu. Já não conversava mais com ele como antes. Vieram a menarca, aquela fatal e dolorosa divisora de águas, a vontade estranha de conhecer meninos, desejo de olhar-se no espelho. Mas ela ainda nutria aquele grande amor por aquele ser que a fazia sentir-se tão bem, e esporadicamente, visitava-o. Ainda sentia o peito acalentar-se sob suas folhas, naquele ritual particular de lançá-las ao ar. Mas o flamboyant sentia ciúmes dela com a vida nova que estava vindo, não gostava da idéia de perdê-la.
Mas um dia, aconteceu algo que Lúcia não esperava, muito menos queria. A beleza do flamboyant se expandia muito, e ela sentiu o coração rachar quando ouviu aquela explicação pobre de sua mãe: "as raízes estavam destruindo a calçada. Se ele continuasse crescendo daquele jeito, podia acabar destruindo a frente toda." Aquele porco comentário assassinara seu melhor amigo, a golpes de serrote e ignorância. Ela não digeria a idéia de sentar-se ali sem a proteção de seu magnânimo verde-rubro escudo, morria naquele dia parte de seu passado, e tudo o que ela queria saber era o porquê. Sim, uma explicação lhe fora apresentada, mas não lhe era plausível.
O tempo varreu as folhas e a dor. Anos mais tarde, Lúcia sentou-se no toco salgado, e lembrou com saudade de como um simples gesto lhe proporcionava uma felicidade quase patética, mas verdadeira. Como laços que podem durar anos soam tão efêmeros quando o vento sopra. A morte do flamboyant foi um marco na vida da menina, que hoje, mulher, perpetua sua história para que aquela árvore permaneça sempre viva e atravesse todas as gerações possíveis.

HOMENAGEM AO DIA DAS MÃES

segunda-feira, 12 de maio de 2008

Pretinha

Ela era a personificação da inveja do morro. Principalmente quando, aos sábados, descia as vielas com seus trajes sumários, seus olhos verdes, suas canelas magras, seu jeito. Tinha gingado, tinha uma delícia que morava nas expressões de exagero, tinha a manha que só os seres dotados das duas sortes possuíam, como se essa característica lhes fosse reservada ainda no ventre.
Pretinha.
Tinha 23 anos, 9 deles mergulhados no mundo noturno. Era amiga do dono do bar, das imberbes adolescentes, e conhecia muitos carnavalescos. As mulheres do morro não gostavam de assunto com Pretinha, não gostavam de olhá-la nos olhos. Tinha fama de quizumbeira, de macumbeira, de aidética, mas nada disso lhe doía. Era uma pessoa de destaque. E gostava de ser assim. Também fazia grande sucesso entre os homens, outrossim, estes suicidariam-se se descoberto seu envolvimento com ela, aquilo seria uma vergonha. Mas Pretinha não ligava, sua vida era o livro mais aberto de toda favela, e também uma grande colcha, na qual costuravam-se retalhos da vida de outras pessoas.
Mas naquela manhã parte do morro amanheceu em dor, e ninguém entendia o corpo de Pretinha inanimado no chão, os hematomas em seu braço direito, a mancha de sangue no chão. As meninas vieram correndo do coleginho, chorando; uma se debruçou descompensada sobre o corpo da  Pretinha. Quem estava no asfalto dizia que foi uma briga, outros diziam que ela havia roubado uma alta soma de um cafetão muito perigoso. Ela não seria idiota. Disparou-se então uma série de acusações, em todos os olhares. A verdade é que a verdade não veio à lume, a mídia não subiu morro nenhum e Pretinha, agora um anjo mutilado, foi enterrada discretamente, no alto do morro onde nasceu.

terça-feira, 6 de maio de 2008

Os novos malandros

O cenário não é mais a Lapa cinqüentista e suja, que ainda hoje é o referencial para o berço da boemia carioca. Eles não trajam mais branco, não sambam como antes, nem tiram - eles nem têm - o chapéu pra ninguém. Toda essa roupagem hoje está à sombra, habita um passado louvável de noites infinitas regadas à muita cerveja e cachaça; um glamour extinto que ainda irradia uma luz fraca de lantejoulas foscas, como olhos os cansados de um velho decadente num botequim.
Morreram todos os malandros. Eles morreram, com seus trajes, suas gírias, seus costumes, seu modo todo particular e escrachado de gritar sua marginalidade e sua cultura a um Rio quase integralista, na década de 50. Eles pereceram diante do pragmatismo e da efemeridade que a cultura popular está exposta, a todo tempo. Mas anunciar sua morte - não trágica, pois sua iconografia está viva e arde na memória da cidade maravilhosa - não é negar sua importância diante do futuro. Muito pelo contrário.
Os velhos malandros pingaram no mar da diversidade cultural a sua semente, e ela deu frutos. Hoje, eles descem o morro, com bonés para trás, um queixo imponente e pronunciado, já alardeando que estão chegando. Não estão sempre ligados ao crime, nem ao tráfico de drogas; há muito mais charme no neo-malandro dissociado dessas práticas ilícitas.
Eles tomam as praias da Zona Sul, arrebatam os olhares das bem criadas do asfalto. Têm ginga, têm suingue, têm um balanço estranho nos quadris. Vendem picolés, artesanato, bijouterias, óculos de sol. Ninguém sabe explicar direito o porquê do jeitinho deles, porque, apesar da falta de recurso, exibem uma pele parda ou negra tão lustrosas, tão convidativas. Passam perrengue lá em cima: às vezes falta água. Feijão. Às vezes a mãe tem pressão alta, e é um corre-corre pra arrumar um Niphelat ou similar. Poucos conhecem os pais; eles chegaram muito cedo para suas mães. Mas isso tudo fica pra trás, morre. No asfalto, eles dominam toda sorte de comércio, a pena maior é que essa sagacidade é o melhor artifício e sua venda está indisponível. Pior ainda: não se aprende nunca. Nasce-se e morre-se com ela. Eles são a melhor ilustração para o "João Gostoso" de Manuel Bandeira, fazem um samba na ponta do pé instantâneo, abrem sorrisos dos turistas.
Eles são os novos malandros que, a caráter dos póstumos, driblam as adversidades da vida com toda a sua ginga e seu talento multifacetado para enganar a dor. Eles também sofrem: queriam a estabilidade dos play-boys (não seriam a alta-sociedade cinqüentista hereditariezada?) que de vez em quando, gostam de tirar um sarro de seus cabelos aloirados, ou da cor de sua pele. Mas eles brilham, a despeito das circunstâncias, e eles tomam o carnaval, bem como os dois primeiros meses do ano, que no Rio de Janeiro, apinha de alemães, ingleses e um sem número de outros. Eles tiram de tudo o que poderia dar errado um sambinha (ou um funk), e, com aquela quebradinha charmosa, vão inserindo uma perspectiva um pouco mais positivista à realidade na qual estão incluídos, sem discrepância nem distanciamento do morro: mas fazendo valer a herança da raça e da cor com as quais foram abençoados.

À André Sant´Anna

Hoje eu acordei com muito sono, apesar de ter dormido até onze horas, porque mesmo quando se acorda tarde se sente muito sono, e é por isso que eu sinto sono o tempo inteiro. Depois de escovar os dentes, fui beber água, porque minha mãe fala que é bom beber água assim que se acorda, porque água hidrata o corpo, porque minha mãe sabe muito sobre saúde, porque ela tem um corpo bonito aos 44 anos e de saúde eu não sei de nada. Sentei na mesa e comi um pão de forma, porque era o único que tinha em casa, porque o meu pai acordou muito mais cedo que eu para resolver um problema no Centro do Rio, porque esse problema precisava ser solucionado, e como ele acordou muito cedo para resolver esse problema não deu tempo dele comprar o pão quentinho da padaria da esquina, e eu tive que comer o pão de forma, porque o pão de forma já estava pronto, e o pão de forma a gente pode comer frio.
Depois do meu breve café eu fiquei lendo algumas coisas da faculdade, porque a minha matéria da faculdade é muito difícil, e eu tenho medo de ficar sem entender nada na hora da aula, porque a minha professora da faculdade corre com o conteúdo, porque ela pressupõe que as pessoas estejam entendendo a matéria que ela está passando, e como eu não estou entendendo essa matéria direito, eu tenho que ficar lendo essa matéria toda manhã pra ver se aprendo, porque se eu não aprender essa matéria que já é difícil no primeiro período, eu provavelmente não vou aprender as matérias que virão no segundo período, e se eu não aprender bem direitinho as matérias que virão, eu vou ficar sempre reprovada, e se eu ficar sempre reprovada, eu nunca vou me formar, e se eu nunca me formar, eu não vou conseguir arrumar um emprego, e se eu não conseguir arrumar um emprego, vou ter que ficar o resto da vida morando com a minha mãe, e se eu morar o resto da minha vida com a minha mãe, vou ser obrigada a ouvi-la me chamar de inútil todo dia, e eu não quero isso.
O tempo passa muito rápido, e logo o relógio marca duas horas da tarde. O tempo passa rápido pra mim porque eu acordo muito tarde, e quando se acorda muito tarde tem-se a impressão de que o tempo fica menor, e é muito ruim sentir o tempo se encurtar porque parece que não vai dar tempo de fazer as coisas que eu tenho que fazer ainda, coisas que eu estou fazendo e coisas que nem comecei a fazer. É chato pensar em começar a fazer uma coisa longa, porque já dá cansaço só de pensar em começar a fazer essa coisa, porque ela é longa, porque ela vai demorar, porque vai ser trabalhosa, etc.
Então eu fui tomar um banho. Rio de Janeiro, 22 graus, mas parecia que eram 14, porque os cariocas quase não veêm dias nublados, porque os cariocas sentem muito calor, porque os cariocas são naturalmente calorentos, porque os cariocas gostam de roupas sumárias. Pus o chuveiro na posição "inverno", porque eu sou carioca, mas eu sinto frio fácil, porque eu sou eu, porque é de mim sentir frio, porque eu sinto muito frio desde criancinha, e eu sou muito azarenta, porque o chuveiro queimou, porque o chuveiro é da Lorenzzeti, e a Lorenzzeti não é uma marca de confiança, porque o meu chuveiro é velho, porque eu sou pobre, o meu pai é pobre e ele tá apertado com dívidas que esquece de comprar um chuveiro novo. O chuveiro queimou e eu tive que tomar um banho frio, mas bem frio mesmo e pulando, porque no calor eu já tomo banho quente, e quando está frio parece que a água fica mais gelada, e quando a água gelada bate num corpo que estava aquecido, ela parece que corta, porque é muito ruim tomar banho gelado quando se quer tomar banho quente. Sorte minha que já estava quase acabanho o banho, que ai foi só tirar o sabão bem rápido e sair do banheiro mais rápido ainda porque eu estava ficando atrasada, porque eu acordo muito tarde.
Eu vesti uma roupa nova, porque ela já estava no armário há algumas semanas e eu queria usar, porque eu comprei essa roupa pra poder usá-la, porque eu gostei dela, e gostei do seu tecido, e gostei da sua estampa. Vesti uma calça sem pensar e calcei um sapato cinza, porque eu gosto da cor cinza, porque é uma cor neutra, porque o dia estava nublado, porque acho que o cinza combina com o dia nublado.
Meu pai me deu carona até o ponto do meu ônibus que, a pé da minha casa, leva uns 15 minutos. Eu aproveitei porque eu não gosto muito de andar até o ponto de ônibus, porque eu me canso, porque uns pedreiros feios - nada contra pedreiros - mexem comigo no meio da rua, porque eles falam um monte de bobagem pra mim, principalmente quando eu uso vestido, porque eles são uns safados, porque eles são uns adúlteros, porque pai pobre é destino, mas marido pobre é burrice. Então, eu cheguei no ponto e o ônibus já estava à minha espera, então eu subi rápido e o motorista perguntou se eu tinha 50 centavos, porque ele sempre pergunta se eu tenho 50 centavos, porque ele diz que é pra facilitar o troco, porque motoristas de ônibus odeiam receber notas de 10 reais quando a passagem é 5,50, porque eles têm que ficar contando o troco, e eu acho que eles não gostam muito de fazer contas. Mas eu só tinha 10 reais inteiro, porque o meu pai falou que não vai me dar mais do que o dinheiro da passagem, porque eu gasto muito na faculdade, porque isso anda saindo muito caro pro bolso dele, porque eu moro em Caxias e a faculdade é em Niterói, porque eu sou dependente.
Eu entrei no ônibus, e esperei até chegar ao meu destino. Saí do ônibus no terminal, e fui andando pelo bairro São Domingos observando tudo de sempre: o carro do pão, as bancas de jornal com aquele bando de bunda pro alto das mulheres da play-boy e similares, porque os jornaleiros são espertos, e eles sabem que bunda chama atenção, porque o homem brasileiro é bobo e acha que bunda é patrimônio nacional; os hippies que vendem artesanato hippie, porque hippies não têm casa e eles precisam vender aquele artesanato que eu acho até bonitinho pra sobreviver, porque os hippies têm filhos que já são hippies e são bonitinhos também, porque hippies gostam dessa vida, porque hippies pedem dinheiro, porque hippies gostam de fumar uma maconha de vez em quando; os skatistas que ficam em frente ao DCE da minha faculdade, porque em frente ao DCE da minha faculdade tem uma praça, e nessa praça ficam muitos skatistas porque a arquitetura dessa praça é boa para a prática do skate, mas eu não gosto de skate porque uma vez eu tentei andar de skate e caí de bunda no chão, por isso que eu não gosto de skate.
Cheguei à faculdade e não tinha ninguém da minha sala, então eu fui pro D.A pra ler mais um pouquinho da matéria que eu não entendo direito, porque essa matéria me dá medo, porque mesmo com medo, eu gosto de estudar essa matéria porque acho que quando a gente supera um medo, a gente transcende a nossa capacidade e minimiza um temor. Mas eu não fiquei muito tempo no D.A porque as veteranas estavam lá, e eu fico um pouco sem graça diante delas, porque no fundo eu sou um pouco tímida, porque eu não tenho intimidade com elas como tenho intimidade com as minhas outras amigas, e porque elas não me chamam pra conversar, mas eu também não ligo porque também não sou a pessoa mais legal do mundo para me quererem por perto.
Dali a pouco a aula começou, a aula da dificuldade, a aula da matéria difícil que eu tenho que aprender senão eu fico sem me formar e se eu não me formo eu não tenho emprego e se eu não tenho emprego eu tenho que morar com a minha mãe e eu não quero isso pra mim. Então, apesar que querer ficar conversando com as minhas amigas sobre as fofocas do fim de semana, eu prestei bastante atenção nessa aula, porque a professora passou um trabalho difícil, porque ela quer ser camarada com quem se ferrou no teste dela, porque esse trabalho vale três pontos e eu preciso garantir esses três pontos pra mim senão me ferro de vez.
Depois que acabou a aula eu fui andar pelo campus para me distrair, porque eu estava preocupada com essa matéria difícil, porque eu fiquei e estou com medo não só dessa matéria, mas como de uma outra matéria cuja professora está exigindo um trabalho muito complicado pra fazer até junho, e eu ainda nem sei como começar, e aí é chato começar uma coisa longa, porque você sabe que ela vai demorar, porque sabe que ela vai consumir o seu tempo, porque o tempo é precioso, mas o tempo oxida a gente. Depois, começou a aula mais fácil, e eu fiquei mais tranquila, porque eu entendo melhor essa matéria, porque o professor é mais claro nas explicações, porque esse professor tem cabeça branca e acho que pessoas de cabeça branca tendem a ser um pouco mais pacientes na hora de explicar as coisas.
Saí um pouco mais cedo, porque matéria era mais fácil, e peguei o ônibus mais cedo, e fiquei feliz, porque eu gosto muito de chegar em casa mais cedo, porque chegar tarde me faz sentir como se eu já chegasse em casa de madrugada, porque eu passo boa parte da minha vida noturna debruçada neste teclado onde escrevo pra você como foi o meu tedioso, longo, mas único e inimitável dia, porque todos os dias são dádivas, e todos os dias, apesar de chatos, têm sua graça, sua diferença, e deixam sua marca na nossa memória.

segunda-feira, 5 de maio de 2008

No meu tempo...

Coisa que me dá nos nervos, sei lá. Ta aí uma das frases que já trazem uma carga toda empoeirada, desnecessariamente. Quem nunca cometeu alguma besteira, fez algo diferente e ouviu, seja dos pais, seja daquela tia meio chata, da avó: "No meu tempo, isso assim assim..."?
Nostalgia é um sentimento pra lá de saudável. Quem é que não gosta de lembrar de uma época boa, que está seguramente guardada num lugar todo especial do nosso passado? Mas viver dessa nostalgia, sem vontade de se desprender dela e acreditar cegamente na impossibilidade de uma vida melhor é que é doentio. Não gente, não tô falando de algo utópico, isso existe sim, e vocês não fazem idéia de como é triste ver pessoas que se atrelam ao que já aconteceu e não conseguem viver uma vida em função do presente ou do futuro. É chato, mas acontece.
É até normal que os mais velhos façam essa analogia temporal conosco, para ilustrar melhor o que eles querem dizer. Mas quem faz dessa comparação um vício conversacional mostra que o falante está alheio à realidade e tende a desenvolver certa repulsa nas outras pessoas, porque o mesmo acaba ficando sozinho nas conversas. O mesmo serve para o famoso "nossa, ontem eu te peguei no colo!" Exclamação compreensível, que às vezes soa como um pequeno alarme particular que você já tem vinte anos - ou mais - e não plantou nenhuma árvore, por exemplo.
Voltemos ao "No meu tempo[...]". Acredito que existe uma certa aversão dos mais vividos para com a passagem do tempo e os costumes, que mudam conforme os anos. Justo. No passado, brincava-se de amarelinha de tafedê nas calçadas, e quase ninguém acha que isso seja obsoleto, muito pelo contrário: ao falar nessas brincadeiras, hoje quase extintas, vem à tona toda uma aura saudosista, como se aquilo fosse o melhor já inventado em termos de lazer humilde nos anos 70, 80. O "queimado", o "pique-alto", o "pique-cola-americano" nas ruas, sem medo. Brincar na rua, em se tratando da metrópole louca e violenta em que vivemos está difícil, e, mais que cultura, isso é um fator social. Hoje, a diversão das crianças são os videogames, a internet - com supervisão dos pais ou sem, tudo voltado para a parte eletrônica da coisa. Brincar fora de casa, no máximo, o play do apartamento. Fato: o mundo está cada vez mais digitalizado e eletronizado; não que isso seja tão péssimo, mas acaba por construir muros entre as pessoas numa época em que é tão salutar que elas estreitem o máximo de contato possível: na década de ouro da infância.
Nossos pais, na infância, se divertiam à sua maneira. Sim, existe muita diferença no que parece ser só um breve intervalo de duas décadas; mas diferença essa para abalar a cultura, estruturalmente falando. A cultura popular, a cultura familiar. Os anos trazem consigo o embate da modernidade X tradição, e isso não é a decrepitude da virtude nem a perda do valor; mas uma transição, uma alteração, quiçá uma interseção do passado com o presente.
É de muita ignorância que determinadas famílias urbanas - digo urbanas porque famílias do interior são ainda mais ligadas a valores antigos que as referidas - tentem, muito frequentemente à força, educar seus filhos do modo que foram educados. Com a rispidez e a disciplina extrema que lhes foram impostas. Eu olho para esse quadro e fico meio sem ação, porque o mundo muda, e o pensamento tem que seguir o fluxo. Se a pessoa insiste em mastigar costumes muito antigos, ela tende à exclusão voluntária. Sim, devemos preservar as nossas raízes sempre, mas oferecendo um terreno fértil onde também possa coexistir a cultura do novo, não em tensão, mas em harmonia com um pretérito perfeito que nunca deve perder sua importância ante a modismos e novidades.
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domingo, 4 de maio de 2008

O poder das escolhas

É ordinário dizer que a vida é feita de escolhas. Mas, talvez por ser essa uma verdade de uma ordinariedade tão sutil que não percebemos que ela nos invade o tempo inteiro, distribuindo tapas com luva de pelica bem no meio de nossas caras. Nós passamos por escolhas que se alternam entre simples e complexas, e daquelas a estas, todas têm o seu valor e a sua influência em nossas vidas. Como por exemplo, o dia que você escolheu sair de sapato verde no lugar do preto e elogiaram o seu bom gosto; ou o dia em que não entrou no carro daquele amigo que capotou na estrada.
Nunca saberemos com exatidão o produto das escolhas as quais somos obrigados a tomar, mas, tal qual remédio, temos que tomá-las, ainda que não gostemos. Sábias escolhas são atribuídas às pessoas que têm uma idade avançada, mas acredito que a tal associação casa melhor às que têm caráter. Na maioria das vezes é fácil tomar decisões. Difícil é arcar com suas conseqüências. Tendemos a pensar nas coisas a curto prazo, mas determinados acontecimentos se enraizam, e vão se atrelando à nossa história como uma teia indissolúvel. Nada que se faz em vida escapa-se do julgamento das pessoas, infelizmente. Quando você toma uma escolha precipitada, você imprime nela a sua personalidade, e independente do que se seguirá, sua atitude será vinculada ao seu ser sempre.
Às vezes pensamos que não, mas escolhas que agora não nos soam bem - ou soam amargas - talvez acarretarão em um bem ainda inimaginado. Exemplar, minha melhor amiga sofreu um terrível acidente e mudou-se para outra região. A princípio, a adaptação foi dolorosa - tanto para ela quanto para mim - mas no fim, quando a visito, é de encher o meu coração de felicidade ver nos olhos dela a empolgação outrora extraviada num momento de escuridão parcial. Certos eventos na vida vão nos inclinando para escolhas que não queremos, mas que, a logo prazo, podem verter-se em sucesso e prosperidade.
Se nunca saírmos do muro, nunca saberemos se teria sido bom, ruim, melhor ou pior. A estaticidade e a indiferença (nesse aspecto) são sentimentos covardes, e mantê-los é um fiel atestado de moléstia psíquico-voluntária.
O recado está dado. Agora, se me dão licença, preciso ir, pois ainda preciso escolher com qual roupa saio amanhã.