sexta-feira, 11 de dezembro de 2020

Tango de pés feridos

 Capaz de que seja mesmo sobre aprimorar o tango com os pés feridos. Pois é como dizem por aí sabedores apócrifos, dança é luta. Luta é dança. Então é sobre soerguer o peso, suspendê-lo com graça na unha dos pés, esperar a cãimbra vir e esperar a cãimbra passar, e no intervalo desse berimbolo não dito achar possível asfixiar o leão da ansiedade pesando sobre ele as boas e modernas maneiras das pessoas bem resolvidas que dançam quase perfeitamente o tango com os pés feridos. Do olho esquerdo da dor lambem-se as chamuscaduras (haja água pra tudo isso que foi de fogo), com as mãos em secreta concha a rogar que mais rápido aquela se dissolva com a providencial mão da cerveja e de alguns baratos beijos alheios, porque sim, assim sequer se está nos beijos, mas estes distribuem-se, e em troca pega-se tantos quanto se consegue, que a vaidade sempre foi o pecado favorito do diabo.

quinta-feira, 8 de outubro de 2020

Retrato de família

Muito calor e gente em casa, e a fiação toda ainda era como antigamente. Tia Jane no banheiro deu um curto grito, simultâneo ao que deu Quiroguinha, que de súbito aterrissou na sala (as pequenas asas desajeitadas) topando o joelho na mesinha que deveria estar no canto. O choro agudo do menino despertou prima Cecela, que dormia na rede cansada e ainda salgada do mar. Vó Stênia passou por nós feito uma assombração, com seu andar coxo e pesado, segurando uma ponta incinerada de jornal. Tia Lúcia fuçava as gavetas e os armários com suas mãos de aranha cega. Lá é que deveriam estar as velas, afinal, vela nunca faltava na nossa casa, que o excesso de fé em Cristo de vó Stênia não deixava.

Tio Padrinho, sem nem se levantar, continuava bebendo sua cerveja, ainda gelada. Regiane detestava a sensação do sal velho e anoitecido em sua pele, dizia que aquilo lhe atacava todas as alergias, e conforme fizeram Marquinhos e André, que não quiseram esperar a luz voltar, foi tomar banho no quintal, içando com eles muitos baldes de água do poço. Inescapavelmente salobra, era ainda a única cura possível para aquele insuportável sol por dentro que, longe dela, continuava queimando até no escuro.

Não demorou muito e vó Stênia encontrou e distribuiu as velas pelos cômodos da casa com cuidado, pelos altos. Quiroguinha era muito sem jeito, e ainda lambia baixinho as lágrimas de cachorro pequeno pelo joelho dolorido. Vô Aloísio observava tudo muito calado no seu canto. A casa era grande.

A brasa do cigarro de tio Padrinho luzia como um primo estranho e esperto perto dos vagalumes que tomavam a varanda em profusão, levando as crianças ao desafio difícil de capturá-los nas conchas das mãos. Na praia, Tia Pratinha havia sido derrubada por muitos caixotes, mas lá mesmo também havia dado o troco, derrubando sozinha, e com ajuda mínima, algumas caixas. Quem quer que a conhecesse por mais tempo já sabia, na inofensiva rispidez de sua voz e no hábito de aproximar-se de mansinho pra batucar a bunda de um balde, que ela se encontrava francamente bêbada. Não era o caso de Regiane. Coitada. Alvo constante de suas piadas, a namorada recente de tio Maurício tinha até medo de cruzar o caminho de tia Pratinha, ciente de que o olhar da velha a perseguiria e explodiria pela boca em alguma gozação. Quando tia Pratinha pegava um pra espezinhar (e geralmente gostava de fazê-lo com os agregados) só o tempo a demovia da ideia.

Os meninos menores se batiam todos pelas costas, braços e pernas: a mosquitada nem enfeitava a noite, como os vagalumes, nem lhes dava sossego à carne magra e suja. Tia Jane, com medo de lagartixa e outros bichos que no escuro ficavam certamente muito maiores, saíra do banheiro envolvida na toalha e já se postava à porta de saída da cozinha com um cigarro entre os dedos, assuntando com vó Stênia que, sentada, terminava de sovar uma massa. Vó Stênia tinha disso: não parava nunca, por mais que as pernas não lhe ajudassem. 

Martinha, Daniele e Isa investigavam nas telas dos celulares qualquer coisa que lhes afastasse do escuro e do tédio. Surge uma foto de um bebê de poucos meses no celular de Isa, que mostra para as outras. Suspiram as três, em uníssono, pela fofa criatura enrugada. Curiosamente Daniele constata como outro bebê (agora com um ano e meio) havia crescido rápido diante dos seus olhos nos últimos 500 e poucos dias que havia acompanhado sua vida à curiosa distância de uma tela de vidro na qual provavelmente também se escondiam outras coisas. As garotas, então, se detiveram nas fotos do bebê de meses, e Martinha teria se espantado com o volume de fotos de uma criança tão pequena não fosse ela mesma uma grande registradora dos próprios passos.

No quintal apagado da casa as sombras das árvores as engordam, transformando-as em velhos e fofoqueiros monstros domésticos. Quiroguinha, o mais afoito, parece não ter medo de nada, e encoraja as outras crianças a irem com ele brincar no escuro, a catar sapo. Olhando o fuzuê de Quiroguinha, o aparentemente indiferente tio Padrinho chama as crianças pra perto de si e diz que vai contar uma história de quando era menino. Ele então diz que na casa em morou na infância havia um espírito que toda noite de quinta-feira, às três horas da manhã em ponto, abria as torneiras da casa. Sempre que ia fechar a última torneira aberta, tio Padrinho conseguia ver o rabo do espírito deixando a casa. Um dia ele apressou o passo para tentar segurar o rabo do espírito, e uma das janelas se quebrou. Virou-se para tia Lúcia para que ela confirmasse o que ele dizia, ao que ela assentiu. Os olhos das crianças brilhavam no escuro, acesos, acompanhando o vagalume de fogo nos dedos, enquanto tio Padrinho dizia que o espírito (mais tarde descobriu-se) era o fantasma de um inspetor de uma escola que havia sido derrubada muitos anos antes de sua casa ser construída, no mesmo lugar. Na varanda calada de repente irrompe uma gargalhada grave, as crianças gritam ao mesmo tempo. Marquinhos e André surgem do quintal para assustá-las. A luz não vem, e a escuridão já tinha comido as velas pela metade.

Naquela idade em que eram um pouco mais velhas que as crianças mas ainda mantinham algum relutante encantamento e sede de fantasia, Martinha e Isa ouvem de longe e contestam a história de tio Padrinho. Ao seu lado, tia Pratinha tosse e ri. Por que tio Padrinho, engenhoso como sabiam que era, não arrumava um modo de registrar a presença do fantasma? Todo mundo que vivia na casa poderia provar essa história? Por que às três da manhã? Vó Stênia está sentada em uma ponta da varanda, e tudo ouve calada, girando os polegares. Questionam-na, e ela desconversa, séria. De súbito Daniele imagina tio Padrinho menino. Alguém teria fotos dos tios e tias quando eram crianças? A garota queria saber. Vó Stênia dizia que as fotos não eram como agora, que era muito difícil tirar fotos, coisa de bacana. Daniele pergunta se ela tem ao menos uma foto de quando era menina, e ela confirma: uma única foto em preto e branco, séria como agora, com uma roupa pesada para a idade, mas conforme para a época em que fora tirada. E vó Stênia pensa um pouco sobre essa e outras fotos. Realmente tão poucas. Ah.

Naquele dia descobrimos de algum modo que havia uma razão pela qual a infância escura dos nossos pais ao nosso olhar escura permanecia. Talvez mesmo devesse. Quase ninguém notou, mas diante daquilo tudo vô Aloísio balançava lentamente a cabeça, quem sabe, sorrindo, de um lado para o outro.

terça-feira, 29 de setembro de 2020

Tatame

 Era segredo até 
que eu aprendesse a 
cair

por dentro das mãos 
desde sempre uma
faca
esteve guardada
uma faca ossuda
ora rígido mastro de navio ora
água solta por entre as pedras

e tanto mais esguia não sendo
de puro aço constituída

assim como trancados
estiveram de mim

por todos esses anos
répteis-símios e
outras bestas desconhecidas
que rastejaram bêbadas ao
ensaiar sair 

todo o mundo reinventando 
as noções sabidas
e mesmo o cérebro - fina luz da consciência - 
veio morar frontal nos dois olhos
enquanto o sinto
inteiro e pleno
na planta viva dos pés

ao que já não reparto mais
o que é corpo o que é bicho
o que é chão.



terça-feira, 28 de abril de 2020

Estátua

Abro um olho pela
pedra
do anel que esqueci
sobre tua mesinha
entre teu computador e papéis avulsos
insuspeito te espiona

testemunho, assim,
os animais noturnos em teus olhos
acesos
escravos do escrol
a curvatura mansa das tuas costas
inimportunáveis pelos cacos de luz
das duas da tarde

acompanho teu estado
de contemplação pétrea
diante daquele filme
a gordura da cegueira que se acumula
nos teus óculos
a humana limpeza de tuas narinas
viajo pelos rios anêmicos do teu peito
descoberto
e até participo dos teus monólogos
acho que não, Hitler não era nenhum gênio,
o sapato preto fica melhor, etc.

terça-feira, 7 de abril de 2020

Folie Imposée/ Divertimento Forçado

desce a mão burocrática
em obrigação noturna

mas também pensa
que é sonho
se não sabe
anda por mapas invertidos
recolhendo aspas
pedaços e peças perdidos

se o sonho é outro lugar
que apaga a firmeza do chão

monta ondas estrangeiras
de nuvens verdes e grosseiras
luta mortal contra uma deusa
alquebrada

asfixia a vista - assim morrem as imagens -
um universo opressor de pontos pintados
aqui e ali torcendo
todas as antigas geometrias
explodindo fogos de artifício
no céu da boca aberta

desce a mão noturna

cava a terra das pernas em busca
cega
da água da lama do ouro
dos vermes das folhas e outras coisas
sem olhos

o que traz de lá não conta
retira-se humilde
e não fecha a porta

domingo, 29 de março de 2020

Os vizinhos

de repente uma cabeça
surge no quadro uma cabeça prateada
talvez à procura da xícara amarela
do desentupidor da pia

também um braço, só um
no detalhe um braço fino
de desenhos decorado um braço
feminino
sobe e desce no ar, desaparece
caça uma caixa uma agenda
uma fita crepe um retrato

duas pernas do mesmo corpo
seus pêlos compridos dois
eucaliptos siameses
param e pensam mas não sabem
o que vieram fazer aqui

tantas vezes no cinema essa
cena
o acaso apela
e revela apenas
o busto negro da romana criatura
outono moço, ainda
faz brilhar no peito um colar de pleno esforço

alvoroçados centauros disputam
corridas impossíveis no deserto absurdo
dentro da noite grande.

sábado, 28 de março de 2020

Imagem

pois é, já me esqueci de muita coisa, mas lembro da gente na varanda daquela casa apanhando os mosquitos nas pernas enquanto a queda da noite ia mudando a cor do céu. eu temia os insetos que passeavam na grama, mas você sempre me convencia de que se a gente deitasse nela e prestasse muita atenção ao deslocamento gradual das cores no firmamento, a lua nos recompensaria e conseguiríamos sentir o movimento ínfimo da terra girando sob nossas costas para encontrar a noite. nunca acreditei muito na sua versão sobre a rotação planetária, mas me parecia uma boa oportunidade para dividir contigo o chão, tocar sua mão. era como descobrir um país.

até hoje às vezes imagino pôr o ouvido no seu umbigo, ouvir girar o mundo.

Paradise Lost

de dois em dois dias
toca o céu da boca o flúor
na cabeça um ninho elegante
de aves não catalogadas
crescem flores e outras florestas
pelos países esquecidos de outrora
aos poucos volta inteiro como um dia fora
antes dos homens chegarem
bordas de pele maciça contornam
o tecido das unhas
-- que não arranham:
devorou-lhe
a pressão que a mente espezinha --

sumários sudários gordurosos
previnem da curiosidade vizinha

terça-feira, 24 de março de 2020

[TRADUÇÃO] Abraçando a Interconexão

CONTRIBUIÇÃO AO FÓRUM

Abraçando a Interconexão

Forum: Em Direção a Uma Grande Transição Ética

Jeremy Lent
Fevereiro de 2020

É da maior importância estabelecer uma estruturação correta de valores para uma profunda transformação da civilização que se coloca necessária. Conforme descrevi em The Patterning Instinct, diferentes culturas têm construído sistemas de valores profundamente distintos, e esses valores têm moldado a história. Analogamente, os valores que escolhemos hoje como sociedade irão moldar o futuro, e os riscos para fazer isto da maneira certa podem ser penosamente altos.

Nas últimas décadas, o neoliberalismo estabeleceu um regime pseudo-ético dominante baseado em uma noção falha de liberdade individual irrestrita baseada no mercado. Nossa imperiosa tarefa é substituir este com responsabilidade ética compartilhada e interdependência.  Precisamos de uma fundação sólida e rigorosa para esta ética. Onde a encontramos?

Muito da conversa sobre ética acaba focando em binarismos. Mas binarismos simplesmente encorajam campos diferentes a disporem barricadas um contra o outro. Nós devemos nos mover para além dos binarismos em direção a uma estruturação ética verdadeiramente integrada -- uma que incorpore o racional e o intuitivo, o científico e o espiritual.

Felizmente, nas décadas recentes, a combinação da complexidade científica, biologia evolucionária, ciência cognitiva e teorias gerais de sistemas têm nos oferecido uma plataforma para o tipo de integração que precisamos. Reconhecer uma base evolucionária para valores não significa cair na arapuca do determinismo reducionista de téoricos antiquados tais quais Richard Dawkins, cujo mito do "gene egoísta" tem sido suplantado pela biologia evolucionária moderna.

As maiores transições evolutivas da vida na Terra têm, na verdade, sido caracterizadas pelo aumento da cooperação. A mais recente fez surgir os hominídios. Enfrentando perigosas condições nas savanas, nossos ancentrais descobriram que, através da colaboração, eles poderiam se proteger e se alimentar com muito mais eficiência. Eles evoluíram emoções morais, tais quais senso de justiça, cooperação, e altruísmo, que os habilitou a, -- no que vem sendo chamado de "hierarquia de dominação reversa" -- colaborativamente, restringir algum macho perigosamente agressivo levado pelo impulso atávico  de dominação que nós vemos em outros primatas.

Essas emoções morais formaram a base da moralidade que caracteriza nossas espécies. Testes sofisticados têm mostrado que, confrontados com uma escolha, nosso impulso inicial é cooperar, e somente algum tempo de reflexão depois é que os comportamentos egoístas emergem. Em vários experimentos, crianças na fase de aquisição da linguagem manifestam um senso rudimentar de clareza, justiça, empatia, compaixão e generosidade, com uma clara habilidade de distinguir entre ações boas e cruéis. A moralidade é intrínseca à condição humana.

Então por que nós vivemos em um mundo com infinitos exemplos de ultrajante imoralidade, no qual homens perigosos e agressivos ainda dispõem de tanto poder? Com a ascensão da agricultura e do sedentarismo, a balança de poder pesou para o lado daqueles que foram bem-sucedidos em estabelecer domínio hierárquico levando, por fim, à ascensão de sociedades patriarcais que recompensam machismo e violência -- o que Riane Eisler cunhou como "sistemas de dominação".

A história do mundo no último milênio mostrou crônicas de conflitos entre diferentes sistemas de dominação, dos quais um -- a civilização européia -- acabou tornando-se globalmente dominante nos últimos séculos, forçando sua cosmologia dualística única sobre aqueles que conquistou. Esta é a visão de mundo que muitas pessoas hoje tomam como verdade absoluta -- uma visão de mundo baseada na separação e na dominação, que vê seres humanos como egoístas, competidores racionais, definidos por sua individualidade, absolutamente apartados de uma natureza desumana e dessacralizada, em cuja configuração esta última tem seu papel relegado ao de um mero dispositivo de recursos sem valor intrínseco.
Esta visão de mundo é um grito distante em relação a uma base ética compartilhada de tradições culturais cruzadas ao longo da história, e vem sido compreensivelmente invalidada por descobertas científicas mais recentes. Ao contrário, sistemas científicos confirmam as hipóteses compartilhadas por sábios ensinamentos através do tempo: que nós somos intrinsecamente interconectados. A profunda interpenetração de todos os aspectos da realidade  -- o que Thich Nhat Hanh chama de "interser" -- deve estar no coração de uma estruturação ética para uma transformação política e cultural.

Nossa expressão de moralidade é, em uma extensão muito maior, a função de nossa identidade. Se você vê a si mesmo como um indivíduo isolado, seus valores vão consequentemente te levar à busca de sua própria felicidade às custas dos outros. Se você se identifica com sua comunidade, seus valores vão enfatizar o bem-estar do grupo. Quando você reconhece a si mesmo como parte da natureza, você automaticamente se sente impelido a nutrir e proteger o mundo natural.

Ao longo de vários séculos, até mesmo quando o imperialismo europeu devastava o resto do mundo, havia também uma gradual expansão de identidade, de uma noção paroquial a uma visão enlarguecida de humanidade compartilhada, que levou à famosa referência de Martin Luther King de um "arco do universo moral" se dobrando à justiça. Isto inspirou conceitos tais quais direitos humanos inalienáveis, e levou a tentativas ainda mais abrangentes de legislação da justiça moral dentro de códigos de conduta nacionais e internacionais. A Carta da Terra se posiciona como um modelo exemplar desse tipo de extensão de perspectiva moral.

No entanto, em nosso atual dilema, diante de uma catástrofe ecológica iminente e de um potencial colapso civilizacional, nós devemos nos perguntar: será que já não é tarde demais para esta expansão moral? O que pode ser feito para catalisar isso e redirecionar nossa terrível trajetória? Será que é possível desenvolver uma visão global moral transcultural para a humanidade que se estenda à toda vida na Terra, e possa inspirar uma transição compreensiva em relação à justiça econômica e à regeneração ecológica?

Enquanto alguns de nós, aculturados no Ocidente, tiveram que redescobrir nossa interconexão, culturas tradicionais se mantiveram profundamente arraigadas aos princípios que caracterizaram o núcleo da moralidade humana desde os tempos mais primórdios.  A ativista social comanche LaDonna Harris identificou quatro valores centrais conhecidos como "os quatro erres" que são compartilhados pelos povos indígenas ao redor do mundo, que juntos afirmam a interconexão em todos os aspectos da criação: Relacionamento, Responsabilidade, Reciprocidade e Redistribuição. Cada um deles pertence a um tipo diferente de obrigação que diz respeito à vida de uma pessoa. O Relacionamento é uma obrigação de afinidade, reconhecendo valor não apenas na família mas em "todas as relações", incluindo animais, plantas, e a Terra viva. A Responsabilidade é a obrigação da comunidade, identificando a imperiosa nutrição e cuidado para todas as relações. A Reciprocidade é uma obrigação cíclica para balancear o que é dado e o que é tirado; e a Redistribuição é a obrigação de compartilhar o que alguém possui -- não apenas riqueza material, mas a habilidade de alguém, o tempo, a energia.

Outras fontes de sabedoria, tais quais o Taoísmo, o Budismo, o Confucionismo, cada uma delas oferece ensinamentos dentro das implicações éticas da unidade fundamental de toda a Vida. "Tudo, de... marido, esposa, e amigos, a montanhas, rios... pássaros, feras, e plantas; tudo deve ser verdadeiramente amado para que a unidade seja alcançada.", declarou o sábio neoconfuciano Wang Yangming.

Nossa tarefa crucial é incorporar esses princípios de sabedoria tradicional a um sistema de valores integrado que possa redirecionar a humanidade do caminho da catástrofe, e em contrapartida, pô-la no caminho de um futuro virogoso. Um caminho no qual nossa identidade compartilhada se expanda para além das fronteiras paroquiais para incluir não apenas toda a humanidade, mas todos os seres sencientes, e a vibração de toda a Terra pulsante. Por fim, são nossos valores que guiam nossas ações -- e que modelarão o nosso futuro.

texto original disponível em: https://greattransition.org/gti-forum/ethics-transition-lent

as notas do texto original foram retiradas na tradução.

Jeremy Lent é um autor cujos escritos investigam os padrões de pensamento que levaram a civilização à sua atual crise de sustentabilidade. Ele é o fundador do Liology Institute, sem fins lucrativos, dedicado a uma visão de mundo que poderia permitir que a humanidade prosperasse de uma maneira sustentável.



domingo, 22 de março de 2020

[TRADUÇÃO] Nós não vamos voltar ao normal

NÓS NÃO VAMOS VOLTAR AO NORMAL

O distanciamento social veio pra ficar por muito mais que algumas semanas. Ele vai virar nossa forma de viver de cabeça pra baixo, e de alguns modos, pra sempre. 

Por Gideon Lichfield

Para deter o coronavirus nós precisaremos mudar radicalmente quase tudo o que fazemos: como nós trabalhamos, nos exercitamos, socializamos, compramos, administramos nossa saúde, educamos nossos filhos, cuidamos da nossa família.

Nós todos queremos que as coisas voltem ao normal rapidamente. Mas o que a maior parte de nós provavelmente ainda não se deu conta - embora vá fazê-lo logo - é que as coisas não vão voltar ao normal depois de algumas semanas, ou mesmo depois de alguns meses. Algumas coisas nunca mais voltarão ao normal.

Agora é consenso (até na Grã-Bretanha, finalmente) que todos os países precisam "achatar a curva": impôr distanciamento social para retardar a disseminação do vírus para que o número de pessoas doentes de uma vez não colapse os sistemas de saúde, conforme esta realidade ameaça a Itália agora. Isso significa que o estado de pandemia precisa durar em baixo contágio até que pessoas o suficiente tenham contraído Covid-19 para que a maioria consiga ficar imune (imaginando que a imunidade dure por anos, o que nós não sabemos) ou que haja uma vacina.
Quanto tempo isso vai durar, e quão draconianas as medidas de distanciamento social precisarão ser? Ontem o presidente Donald Trump, anunciando novas instruções como um limite de 10 pessoas em encontros, disse que "com muitas semanas de atenção focada, nós podemos contornar a curva e virá-la rapidamente". Na China, seis semanas de lockdown estão começando a suavizar agora, de modo que o número de novos casos caiu até o ponto de uma semi-estagnação.

Mas não vai acabar aí. Enquanto uma pessoa no mundo tiver o vírus, pandemias podem e vão continuar ocorrendo se controles rigorosos para contê-las não forem pensados. Num relatório de ontem (PDF), pesquisadores do Imperial College de Londres propuseram uma forma de dar conta disso: impôr medidas mais extremas de distanciamento social toda vez que entradas em UTIs começarem a escalar, e relaxá-las cada vez que o número cair. Aqui é como isso se parece no gráfico:


A linha laranja representa o número de entradas na UTI. Cada vez que elas subirem além do limite - digamos, 100 por semana - o país fecharia todas as escolas e a maior parte das universidades e adotaria o distanciamento social. Quando elas caírem para abaixo de 50, essas medidas seriam então suspensas, mas as pessoas com sintomas ou cujos membros familiares têm sintomas deveriam continuar confinadas em casa.

Mas o que conta como "distanciamento social"? Os pesquisadores definiram isso como "todas as casas reduzindo seu contato com outras casas, escolas e locais de trabalho em 75%". Isso não significa que você não vai poder sair com seus amigos uma vez por semana ao invés de quatro. Significa todo mundo fazendo tudo o que puder para minimizar o contato social, e num panorama geral, o número de interações assim cai para 75%.

Dentro desse modelo, os pesquisadores concluem, o distanciamento social e o fechamento de escolas precisariam estar em vigor algo em torno de dois terços do tempo - por baixo, dois meses sim, um mês não - até que uma vacina esteja disponível, o que levará no mínimo 18 meses (se funcionar de fato). Eles observam que os resultados são "quantitativamente similares para os E.U.A."

Dezoito meses!? Certamente deve haver outras soluções. Por que não construir mais UTIs e tratar mais pessoas de uma vez, por exemplo?

Bom, no modelo dos pesquisadores, isso não resolveu o problema. Sem distanciamento social da população inteira, eles concluíram, até mesmo a melhor estratégia de mitigação -- o que significa quarentena dos doentes, dos idosos, e daqueles que foram expostos, mais fechamento de escolas -- ainda levaria a uma onda de pessoas criticamente doentes oito vezes maior que os sistemas de saúde dos E.U.A. ou do Reino Unido seriam capazes de aguentar. (Esta é a curva azul mais baixa no gráfico abaixo; a linha vermelha plana é o atual número de casos em camas de UTI.) Mesmo se você programar fábricas para que produzam camas e ventiladores em massa e todas as outras estruturas e suprimentos, você ainda precisará de muito mais enfermeiros e médicos para cuidar de todo mundo.



 Em todos os cenários com isolamento social difundido, o número de casos de Covid colapsa os sistemas de saúde.


Que tal impôr restrições por apenas um punhado de cinco meses ou algo assim? Nada feito -- uma vez que as medidas são suspensas, a pandemia explode de novo, só que dessa vez é no inverno, a pior época para sistemas de saúde já esgarçados.



Se o distanciamento social completo e outras medidas são impostas por cinco meses, e então suspensas, a pandemia volta

E se nós decidirmos ser brutais: estipular um número-limite para entradas em UTIs para engatilhar um isolamento social muito maior, aceitando que muito mais pacientes podem vir a morrer? Parece que isso faz pouca diferença. Mesmo nos cenários menos restritivos do Imperial College, nós estamos trancados em mais da metade do tempo.

Esta não é uma disrupção temporária. É o começo de um modo de vida completamente diferente.

Vivendo em estado de pandemia

A curto prazo, isso vai prejudicar imensamente negócios que dependem de pessoas se reunindo em grande número: restaurantes, café, bares, casas noturnas, academias, hotéis, teatros, cinemas, galerias de arte, shoppings, feiras de arte, museus, músicos e outros artistas, ginásios esportivos (e times esportivos), locais de conferência (e produtores de conferências), linhas de cruzeiros, linhas aéreas, transporte público, escolas privadas, creches. Isso sem mencionar na pressão em cima dos pais quanto à educação domiciliar dos filhos, das pessoas tentando cuidar de parentes idosos relativamente sem expô-los ao vírus, pessoas aprisionadas em relacionamentos abusivos, e qualquer um sem alguma reserva financeira para lidar com as alterações no salário.

Haverá algumas adaptações, é claro: academias poderão começar a vender equipamentos para casa e sessões de treinamento online, por exemplo. Veremos uma explosão de novos serviços no que já vem sendo chamado de "claustroeconomia digital"*. Pode-se também considerar, esperançosamente, sobre a forma como alguns hábitos podem mudar -- menos emissão de carbono durante viagens, mais cadeias de suplementação locais, mais caminhadas e pedaladas.

Mas a disrupção para muitos, muitos negócios e comunidades será impossível de administrar. Sem contar que o estilo de vida claustroeconômico não é sustentável por longos períodos.

Então como nós podemos viver nesse novo mundo? Parte da resposta -- ainda bem -- será sistemas de saúde melhores, com unidades de resposta a pandemias que se movimentarão rapidamente para identificar e conter surtos antes que comecem a se espalhar, e a habilidade de rapidamente aumentar a produção de equipamento médico, kits de teste, e medicamentos. Estes estão atrasados demais para deter o Covid-19, mas irão ajudar em futuras pandemias.

A médio prazo, nós provavelmente acharemos estranho acordos que nos permitam reter alguma semelhança com a vida social. Talvez cinemas tenham seu número de assentos reduzidos pela metade, reuniões serão conduzidas em espaços maiores com cadeiras espaçadas, e academias irão requerer que você reserve suas aulas com antecedência para que não fiquem lotadas.

Num cenário mais distante, no entanto, eu prevejo que nós restauraremos a habilidade de socializar com segurança ao desenvolver maneiras mais sofisticadas na identificação de quem é um potencial risco-doença e quem não é, e discriminando -- legalmente -- os que são.

Nós podemos ver os precursores disso em medidas que alguns países estão adotando hoje. Israel vai usar a informação de localização remota por celulares com a qual seus serviços de inteligência rastreiam terroristas para rastrear pessoas que tiveram contato com hospedeiros conhecidos do vírus. Singapura faz um exaustivo trabalho de rastreamento de contato e publica informações detalhadas sobre cada caso conhecido, tudo sem identificar as pessoas pelos seus nomes.

Ainda não sabemos exatamente como este novo futuro se parece. Mas é possível imaginar um mundo no qual, para tomar um avião, talvez, você tenha que submeter-se a um serviço que rastreie seus movimentos via celular. A companhia aérea não conseguiria ver por onde você se deslocou, mas seria alertada caso você tivesse estado próximo a pessoas infectadas conhecidas, ou em focos de doença. Haveria requerimentos similares em entradas de locais amplos, prédios governamentais, ou estações de transporte público. Haveria scanners para aferir a temperatura, e pode ser que seu local de trabalho obrigasse você a usar um monitor que inspecionasse sua temperatura ou outro sinal vital. Onde casas noturnas pedem carteirinha de identidade, no futuro elas poderiam pedir uma carteirinha de imunidade -- um cartão de confirmação ou algum tipo de verificação digital via celular, mostrando que você já se recuperou ou foi vacinado contra as últimas mutações virais.

Nós nos adaptaremos e aceitaremos tais medidas, assim como nos adaptamos a escaneamentos cada vez mais severos em aeroportos na esteira de ataques terroristas. A vigilância invasiva será considerada apenas um pequeno ônus a ser pago pela liberdade básica de viver e conviver com as outras pessoas.

Como de praxe, no entanto, o verdadeiro custo vai sair dos mais pobres e mais fracos. Pessoas com menos acesso à saúde ou que vivem em áreas mais sujeitas a doenças serão muito mais frequentemente barradas de lugares e oportunidades abertos ao restante das pessoas. Trabalhadores informais  -- de motoristas a encanadores, de freelancers a instrutores de yoga -- verão seu trabalho se tornar ainda mais precarizado. Imigrantes, refugiados, indigentes, e ex-presidiários irão enfrentar ainda mais obstáculos para obter seu lugar na sociedade.

Ainda, a menos que haja regras estritas sobre como o risco de alguém à doença é avaliado, governos ou empresas poderiam escolher qualquer critério -- você é alto risco se ganha menos de $50.000 por ano, é de uma família com mais de seis pessoas, e vive em determinadas partes do país, por exemplo. Isto cria um escopo para parcialidade algorítmica e discriminação subjacente, com aconteceu no ano passado com um algoritmo usado por seguradoras de saúde americanas e que acabou, inadvertidamente, favorecendo brancos.
O mundo mudou muitas vezes, e está mudando de novo. Todos nós teremos que nos adaptar a uma nova maneira de viver, trabalhar, e criar relações. Mas como em toda a mudança, haverá alguns que perderão mais que outros, e eles serão justo aqueles que já perderam muito até agora. O melhor que podemos esperar é que a profundidade desta crise finalmente force os países -- os Estados Unidos, em particular -- a consertar as morosas desigualdades sociais provocadoras de enormes abismos em seu povo já tão intensamente vulnerável.

*Termo cunhado por Michel M. Rolli (22/03/2020)
Colaborou: Michel M. Rolli

Texto originalmente disponível em
https://www.technologyreview.com/s/615370/coronavirus-pandemic-social-distancing-18-months/

sábado, 21 de março de 2020

Tour de force

uma dose de medo no fundo
desse copo de março
o alcool desaparece
das prateleiras
e informa

as loucas estão destrancadas
arrebentando mortalhas

em confortáveis masmorras
tudo dança tudo teme
o brilho da música acesa convida
ao sapateado sobre a tumba
não selada

uma dose de março no fundo
desse copo de medo
o corpo é da vida, ainda
como a vida é do corpo
bailado sinistro na escada

enquanto a luz leve nas janelas conta
do inverno prematuro sob as unhas
responde a ira
com inaudível grandeza

aqui não, hoje nunca
não vês tu que consta nesta báscula o sangue
não do cordeiro
mas dos piores lobos?

quarta-feira, 4 de março de 2020

Brinde ao precipício

Nos calendários, nos despertadores, nos relógios de rua (às vezes nos de pulso), no jornal impresso, no jornal digital, no prazo mental da conta de luz, no relatório concluído entre bocejos e talagadas de café, a segunda é o único dia da semana que parece ser anunciado em todos os lugares onde a vida é uma obrigação. A mãe dos dias úteis, em implacável senso de responsabilidade, dança, os patins brancos nos tornozelos bem afivelados, sobre o gelo fino da imposição, da estética, da competência, da continência, vertendo as horas em líquido amniótico até transformar o tempo numa massa enfadonha. Os prédios espelhados, as câmeras de segurança nas ruas, os ternos nos armários, as canetas que falham na hora de assinar o nome completo sobre a linha pontilhada, os corrimões imundos nas estações de transição e as solas dos sapatos olhando nos olhos das pessoas de soslaio, no meio de uma pergunta antirretórica escondida dentro dum caleidoscópio onde se inscreve, em cada lâmina, "o que você já fez hoje", "o que você está fazendo agora" e "o que você vai fazer hoje". Mágica a pergunta, escorrendo dos tempos verbais com a elegância paradoxal própria de todas as perguntas sobre o tempo, como se fosse possível fundi-la graficamente ao transcrevê-la num pedaço de papel, três ou infinitas vezes justapostas - não faria diferença -,  a ponto de, no final restar um refinado palimpsesto solicitando, impaciente, uma fonologia mais avançada que dê conta de sua leitura. A pele violenta do positivismo tropical é coberta por um manto, onde estão estampadas flores coloridas em tons pastéis, aplicativos de celular que regulam o peso, o sono, o crédito, ou a menstruação; sorrisos perfeitos e aflitos, todos eles sintomas de um coração em cinismo terminal e constante. Como se pudesse adquirir uma carne e um centro, o coração então pulsa sem licença. Dele brotam os olhos da propaganda. Numa mutação tão instantânea quanto bizarra, também brotam vozes, espalhando em todas as direções onde se ouve, sem descanso nem esforço, que o mundo pode ser seu, basta nunca parar de lutar, basta tentar, basta acreditar nos seus sonhos.

Vinte ou trinta pessoas sentiram, inconscientemente, a pontada ou a lança inteira dessas vozes descendo goela abaixo, como o tubo que alimenta os patos que, em troca, vomitam preciosos fígados doentes. Vinte, trinta pessoas ou mais, mas não Isidora, que havia acordado só com algum sono ainda descolando das pálpebras e uma fome descompensada. Mãos nos cabelos, ajeita um coque sempre tendendo aos ombros, preocupada em recolher as calcinhas no varal e checar seus e-mails na expectativa de que alguém os tivesse respondido com alguma proposta minimamente honesta de trabalho. Por honestidade, Isidora entendia pagamentos em dia, fins de semana livres, carteira assinada nos conformes e que com menos de 900 reais por mês, tal proposta não ganhava espaço nem na cogitação. Mas nada constava em sua caixa de entrada, mais uma vez. Nada, nada."É o Brasil de Julius", "Fora Julius!"; frases que haviam se tornado comuns naqueles últimos anos, ecoadas até o limite do desaparecimento. Isidora sabia, e cada conta atrasada vinha lembrá-la, as coisas precisavam melhorar, e com a urgência que suscita uma ordem de despejo. Mas a mudança não viria, pelo menos, naquela segunda-feira sem maiores promessas do que seu deslocamento de uma ponta à outra da cidade. O inverno chegava ao fim, e nesse fim era confortável perder a vista nas sobreposições das finas cortinas de gelo na cerração matinal daquela época. Visão ótima para bocejar, mas com um pouco de esforço fornecia o ambiente físico ideal para passar algumas horas deitada, as pernas caóticas na rede, pra lá e pra cá, lixando as unhas, pensando no nada ou lendo um livro que estava terminando. Sentia-se, de modo insólito, conectada ao autor em sua busca misteriosa, talvez por redenção, mas, certamente, por alguma estabilidade numa terra de desesperança e sonhos sifilíticos. Desesperança nunca foi um problema, pelo contrário, equilibrava seu ascendente em peixes, diziam as amigas esotéricas. Já a sífilis perdera o romantismo, sendo substituída pela AIDS, o que, vez por outra, ressabiava um pouco a mente de Isidora quando ela fazia reconstituições mentais de noites que eventualmente pudessem ter fugido ao seu controle. Um estalo rápido, uma palma da mão contra a outra, olhos arregalados ao som num reflexo confuso do corpo: sua maneira de desgrudar da dormência. Olha no relógio, tem pouco tempo, tem pouco saco, mas enfia um tênis no pé, se apruma, meio desajeitada. Hora de levantar.

Dois momentos compõem o caminho de Isidora. O primeiro é o trajeto feito de metrô, até o centro da cidade. A vida passa rápido no metrô. Passa um vendedor ambulante. Vende alimentos como passatempo, por que a fome e o tédio não haveriam de ser duas faces opostas do mesmíssimo biscoito? Às vezes, um vendedor ambulante é retirado do vagão por homens de preto com cordial truculência. Às vezes, um homem é enxotado, acompanhado de um escândalo em coro de mulheres, enxotado é uma palavra curiosa nessa circunstância. Tem também as pessoas que ocupam os assentos preferenciais sem serem pessoas preferenciais, e ouvem abertas advertências diagonais de pessoas igualmente não-preferenciais que, em pé, talvez também se sentassem ali se tivessem chance da preferência. As advertências costumam vir acompanhadas de discursos sobre educação exemplar, país em crise, valores morais, corrupção, etc. Todas as pessoas têm alguma coisa a dizer sobre a corrupção, ou enxergá-la em todas as atitudes de todos os brasileiros, como se fosse algum tipo de traço congênito-patriótico. Às vezes entra um casal idoso no metrô e começa alegremente a assuntar com pessoas próximas a Isidora, contando que se casaram há apenas 5 anos depois de trinta e oito juntos. Mas ela não sabe o que conversam. Tem os fones enterrados nos ouvidos, de modo que o mundo é filtrado pelas traulitadas da música eletrônica da vez. Então Isidora chega ao metrô. Sempre ofegante. Para esta segunda-feira sem nada em particular, ela escolhera um álbum contínuo, em que uma música termina dando a deixa para a outra, fazendo com que o trabalho dos artistas pareça uma coisa só, feito um sonho que escoa para outro mais rápido do que o cérebro consegue entender. O pescoço de Isidora se movimenta discretamente para frente e para trás, não necessariamente porque dentro da cabeça uma voz lhe avisa que o rock não pode parar, mas em consequência da batida. As estações esvaziam e incham como um pulmão infantil. Entre um sorriso discreto para um bebê e o olhar malicioso de um homem engravatado, Isidora deixa o vagão na estação com a qual tem em comum o gentílico.

Olhos atentos à tela que revela os horários das próximas barcas. A vida se alonga em lentidão sonolenta depois que ela se acomoda. Deve ser culpa das águas. A baía superficialmente morta é um templo movediço de contemplação, Isidora faz anotações. Coisa dela. Se repousa as mãos, tem o olhar perdido para além dos navios. Os navios são estrelas visíveis à luz crepuscular; olhar para eles é disparar um arpão de cabo longo. Sua trajetória é cega, mas objetiva. Inspira fundo e a maresia abraça suas narinas, se pensando bem-vinda; ela espirra cinco vezes. Recorda. Uma mulher com criança de colo conta seus infortúnios a todos os passageiros. Senhor passageiro, é proibida atuação de pedintes nas imediações da embarcação. Não contribua com esse tipo de prática, diz uma voz sem corpo que vem de todos os lugares, quase como se viesse de dentro da mente. Mas não da de Isidora, que, com sono, ajeita o caderno debaixo do rosto como uma grande concha de plástico. Não fosse a metafísica dos avisos sonharia com Caronte?

A multidão deixando o transporte em procissão automática é decalcada sobre uma vaga lembrança que Isidora tem da pequena almofada que pertenceu à sua avó, espetada com muitos alfinetes coloridos muito próximos uns dos outros. Hálito, suor, perfume, plástico, cigarro, um desfile de odores caminha discreto com a multidão. O calor daquela reunião aleatória de pessoas aumenta em Isidora o desejo de se misturar que havia tido já pela manhã, e que não havia sido vencido nem mesmo pelo banho-maria do ombro-a-ombro das pessoas cheias de deveres; e se misturaria sim, era isso o que desejava, mas não ali, que a mistura que queria não poderia acontecer ali, no meio daquele conjunto de homens e mulheres em serviço. Queria outras coisas. Olha para um lado, para o outro, recolhe uma mecha de cabelo que cai pela testa. Confere o celular, não há nenhuma resposta ao convite que propôs a dois amigos. O que acontece nas esperas corresponde à mesma vida que se vive fora delas?

Depois de horas, refaz o percurso sobre as mesmas águas, agora completamente enegrecidas pela noite. Aportada, desvia à direita de seu destino usual, criando outro para si. A noite gradualmente enverniza as cores, e de repente aquela segunda-feira é passível de evoluir para uma experiência mais interessante. Aperta a bolsa e os passos, as ruas são escuras, os ratos, enormes, e o horário oferece uma margem larga de distância entre um corpo e outro, sem a inevitabilidade das costumeiras colisões que ocorrem sob a luz do dia. Não é tão comum ver uma mulher vaguear sozinha, deslocando-se fisicamente pelas veias estreitas de uma metrópole tão bonita quanto perigosa. Isidora, vez por outra, se perguntava se era ela realmente muito destemida, ou se as pessoas é que tendiam demais ao medo. Aquela moça uma vez havia lhe dito: parâmetro! Não tinha nenhum amuleto, cântico ou oração específicos. Medo de morrer é sinal de muito medo de viver. Não tinha medo da noite; sua cabeça lhe dizia que não havia porquê. Ela lhe parecia uma enorme besta inflável que Isidora sentia necessidade de montar; desamarrada na extremidade; desgovernada e senil, quanto mais força tinha acumulada por dentro. O excesso do hábito era o viscoso sexto sentido da experiência. Inobjetivamente. Por isso os ouvidos bem abertos para o lado de dentro da cabeça. Educou-os para obedecer ao chamado da inobjetividade. É um chamado pequeno, e fortemente encriptado que ocorre debaixo da música ambiente dos ruídos fanhosos das promoções na rua, televisões ligadas, citações de filósofos mortos exumadas nas bocas de garotos querendo impressionar garotas, estouros de bolha de chiclete, áudios de whatsapp, rompimento de pacotes de biscoito, garranchos quentes da rasura invisível produzidas pelas canetas que não vão escrever nunca.

Asinhas herméticas, plenos ligamentos musculares, coxas rígidas, fogo no rabo. Chega onde queria através de uma rua antiga e rudimentar. Se camufla na fauna vasta de mulheres e homens ambiciosos, que espécie ambiciosa é a humana, tanta vontade nos sorrisos relaxados, e nos olhares uma descarga pesada de feromônios, incentivada pela conversão sempre bem efetuada entre a própria noite e o samba. O samba. Sempre o samba, tirando Isidora de casa, desviando Isidora de casa, afastando Isidora de casa; desmanchando e manchando seus romances, sereia musculosa sussurrando através dos tempos aos ouvidos mais dispersos, armando a ratoeira nas esquinas onde luz e moral vacilam igual. Mas não vai haver a roda de samba. A proibição das rodas de samba em sua cidade era um contrassenso, pensou. Os absurdos do futuro social da região por um momento fizeram-na cogitar que poderia não estar muito longe o dia em que a vadiagem voltasse a vigorar como argumento para prisão. Imagine só, uma horda de vadios famintos por diversão apodrecendo em celas abafadas. Quase como os estagiários que recusou-se a se tornar. Lembrou duma antiga profecia de Wilson das Neves. Num misto de preocupação e alívio secretos, riu. Aproveitou a oportunidade para queimar, ainda, alguns minutos observando o vai-e-vem dos passantes, já vazando da praça central, onde o samba teria lugar, para outras direções. Pára na barraca de um ambulante, a quem pede um isqueiro. Aceso o cigarro, agradece e se encaminha para casa, pisando suave, mas uma mão lhe toca o ombro esquerdo e é Pedro, um amigo recente com o qual estabeleceu afinidade imediata.

Pedro está com Guilherme, colega de trabalho, a quem Isidora é apresentada. Ambos trabalham perto dali, o que faz com que a rua onde acontece o samba seja apenas uma consequência no fim do dia. Uma coincidência encontrar Pedro. Eles oferecem a Isidora uma cerveja, o que vem em boa hora, ela não tem dinheiro algum que possa gastar. Pedro lhe dá um copo de plástico e o enche, lindo é o volume, a cor de ouro e a luz da cerveja em plena segunda-feira. Mesmo que brilhe um tanto leitosa num copo de plástico. Isidora não tinha rigorosamente nada contra segundas-feiras, inclusive até gostava delas porque necessariamente sucediam os domingos, esses, sim, dias desconfortáveis. Movimento lhe importava, e segunda-feira era sinônimo disso. Mesmo bebendo mais rápido que os homens, não acredita na descartabilidade do copo. Um copo nunca é realmente descartável até que o sol finalmente aponte no céu. A borda do copo é o círculo espiritual onde começam quase todas as congregações. Um copo na mão é um sintoma de autoridade, uma posição afirmativa em relação ao meio, uma deixa, uma espera, um sinal de disponibilidade. A boca de um copo é a virtualidade da boca humana, aberta, numa espécie tolerante de avesso; boca que cala a outra, acesso ao interior de tudo o que o outro tenta guardar: embebedar alguém é uma tentativa discreta de arrombamento.

Entre um refil e outro, o trio é surpreendido por outros dois amigos, talvez também de passagem, pela estreita rua onde agora há franco trânsito de cabisbaixos pelo aborto do samba. Os amigos chegam e despejam suas cervejas trazidas de casa na mesa onde o trio bebe, e engata num assunto qualquer que um dos recém-chegados tem grande domínio. O dono da palavra segue, discorrendo grandemente sobre os problemas da alienação da população, em como a grande mídia lucra com a ignorância do povo, em como tudo se organiza de maneira circular. O trio ouve o amigo se entregar apaixonadamente ao assunto. Isidora tenta dizer algumas coisas que não vem ao caso, mas é interrompida. Tem os olhos mais atentos ao cigarro que o locutor destrincha das mãos, e antes de acendê-lo, se demora em instruir aos amigos sobre como preparar o cigarro perfeito. Conforme o amigo continua seu discurso, as palavras que vai dizendo vão ficando coladas à pele do seu rosto, não se misturam com o ar. Em poucos minutos ele tem o rosto coberto pelas palavras que deixou sair, que por falta de espaço vão se amontoando umas sobre as outras, e devido ao estresse, se amotinam. Num gesto curioso, oferece o cigarro a Isidora, pede que o acenda. Ela não hesita, e dá uma tragada profunda na ponta troncha do cigarro. Sente os olhos indigentes de Pedro e Guilherme pousados na fumaça gordurosa que libera pela boca semiaberta, fazendo firulas, enquanto gradativamente perde a capacidade de discernir as feições do amigo tomadas pelas palavras que não parou de falar até então. Invertendo a ordem da brasa, Isidora passa o cigarro a Pedro, que em sequência o passa a Guilherme. Quando devolvem o cigarro ao dono, o calor do fumo reage inesperadamente com o depósito das palavras em sua cara, e ele incinera de uma vez. O trio se afasta, ressabiado, e confere a hora nos relógios: perderiam a última viagem de metrô se não se esforçassem muito para converter em precisos 15 minutos os mais de 20 que os distavam da estação mais próxima. Como se ouvissem um tiro olímpico interno, Isidora, Pedro e Guilherme abandonam o amigo chamuscado e correm discretamente. De seu rosto, se desprendem agonizantes pequenos pedaços de palavras, pequenas larvinhas em movimentos nervosos, que conforme vão tocando o chão, produzem não uma explosão, mas um soluço.

A escuridão da rua desola ainda mais a visão da porta cerrada da estação. Os três levam as mãos à cabeça, Isidora confecciona um coque inútil, e aí, e agora? O mais viável é pela Avenida Dois, sugere Pedro. Só se você tiver louco, não sabe o que tem lá? Ué, saber eu sei, mas não tem como pegar táxi aqui. Você tem alguma ideia melhor? Eu não, mas também não sou mulher. Acho que é a Isidora quem deve decidir. Isidora olha para a escuridão a perder de vista. É, gente, não temos opção nenhuma a essa hora. Ou é isso ou a gente vai ter que contornar toda a Avenida Quatro, o que eu acho mais perigoso ainda. Topo a Avenida Dois mesmo. É só a gente passar rápido e sem muito alarde. Nem vão notar a gente.

Guilherme é o mais desconfortável com a ideia de tomarem a Avenida Dois, mas sendo seu voto minoritário, não faz mais que seguir os dois amigos. Dali, tomam a segunda rua esquerda, que desemboca nela. É uma rua extensa e larga, muito movimentada durante o dia, mas que à noite transforma quase todos os pedintes da região em condôminos. O trio passa pelo centro da avenida ouvindo as conversas abertas e os monólogos delirantes dos habitantes noturnos. Era ali que estavam os olhos da cidade. Coleções de imagens que a queda do dia fratura com uma implacabilidade débil, recontações de fatos esquartejados, notas sobre homens de merda e putas que ainda haveriam de perder para eles alguma coisa, qualquer coisa. De uma das extremidades da rua surge uma mulher enorme, imunda, com os seios livres, que se aproxima de Guilherme e murmura alguma coisa que não faz sentido a ele, mas que se recolhe de onde surge sem tocá-lo. Um homem velho grita com outro, acusando-o de ter roubado um de seus caixotes. Duas mulheres jovens se queixam da briga dos homens, e são repreendidas por uma terceira, que não parece tomar partidos e cuja irrupção na querela tem como propósito único atiçar os ânimos já esquentados. Vários gatos ondulam a silhueta da escuridão, enquanto fogem de ratos que não se podem ver. O resultado de tamanha pressão é que alguns minutos depois de discreta caminhada, a Avenida Dois deixa de ser um lugar amedrontador para dilatar-se no registro da retina como qualquer outro, e os diálogos que não dizem respeito aos três intrusos na paisagem de fato se parecem com algum tipo torcido de comédia da vida privada, esquete a céu aberto. Já deixando a rua, Pedro finalmente entorna, verbalmente, sua vontade de urinar; fato não só manifestado como compartilhado fisiologicamente por Isidora e Guilherme, que vinham sustentando a mesma vontade em silêncio e agonia. Num trecho mais claro, e à tal altura, já distante do centro da Avenida Dois, os três tomam para si árvores que lhes remontam uma sensação aproximada de privacidade. Todos se mijam inteiros, mas por conta de certas configurações biológicas, é pior com Isidora, que não só erra o lugar onde mirava bem como se atrapalha, mija na própria bolsa, e no ápice do desequilíbrio se desabraça de sua árvore, anda pra trás quase caindo sentada sobre a própria urina. Pedro, Guilherme e ela desbaratinam num riso tão incontinente quanto a urina com a qual empapuçaram aquela terra rala. Metros adiante, um monólito marca o mapa da cidade. Descontraídos enquanto erram os passos, já aliviados pelo que ficou para trás, Pedro e Guilherme veem Isidora se distanciar em uma breve e enfurecida corrida ao encontro do marco. Ao debruçar-se sobre ele, esfrega, em círculos inexatos, sua bolsa por sobre o mapa protegido pelo acrílico, e emenda num grito. Agora, querendo o mundo ou não, sabendo o mundo ou não, sua olorosa boceta estaria para sempre guardando o centro da cidade.

Com relaxada demora, os três chegam a uma praça próxima. A desertidão local lhes lembra que havia sido segunda-feira há pouco mais de 30 minutos. Pedro põe a culpa no horário, os amigos não entendem. Vencido o percurso, se sentem em obrigação patriótica de beber mais uma cerveja, e ao se sentarem num bar que já tinha organizadas as cadeiras de ponta-cabeça, o fazem com intensa sensação de merecimento. Antes de desembainharem os copos ao alto, no entanto, Pedro solicita uma pausa. Quando eu morava com a minha mãe, ela sempre me dizia que tudo o que eu tivesse que fazer pela rua, que fizesse até a meia-noite, isso é, se a gente tivesse falando de um dia da semana, pro caso de trabalhar no dia seguinte. Uma advertência pra não pirar o cabeção demais, sabe? Ela nunca me explicou muito bem o que ela realmente queria dizer com isso, mas hoje eu entendo. Eu acho que entendo. Pelo menos comigo é sempre assim. Acho que até dar meia-noite a gente tem uma chance, do que quer que seja, de chegar em casa, de beber uma na saída do trabalho sem muitos danos. O que eu quero dizer é que até a meia-noite ainda temos tempo. E é um tempo de qualquer coisa. Olha o formato desse horário. São quatro círculos. São quatro portas abertas. O que vem depois é mistério, ninguém sabe, acontece uma perturbação no próprio tempo. Depois disso é ladeira abaixo, a hora cresce sempre maior, depois disso é precipício. Guilherme olha curioso. Isidora gargalha. Isso é sério, Pedro? Não sei, mas acredito. Os três então levantam seus copos, e brindam.