Nos calendários, nos despertadores, nos relógios de rua (às vezes nos de pulso), no jornal impresso, no jornal digital, no prazo mental da conta de luz, no relatório concluído entre bocejos e talagadas de café, a segunda é o único dia da semana que parece ser anunciado em todos os lugares onde a vida é uma obrigação. A mãe dos dias úteis, em implacável senso de responsabilidade, dança, os patins brancos nos tornozelos bem afivelados, sobre o gelo fino da imposição, da estética, da competência, da continência, vertendo as horas em líquido amniótico até transformar o tempo numa massa enfadonha. Os prédios espelhados, as câmeras de segurança nas ruas, os ternos nos armários, as canetas que falham na hora de assinar o nome completo sobre a linha pontilhada, os corrimões imundos nas estações de transição e as solas dos sapatos olhando nos olhos das pessoas de soslaio, no meio de uma pergunta antirretórica escondida dentro dum caleidoscópio onde se inscreve, em cada lâmina, "o que você já fez hoje", "o que você está fazendo agora" e "o que você vai fazer hoje". Mágica a pergunta, escorrendo dos tempos verbais com a elegância paradoxal própria de todas as perguntas sobre o tempo, como se fosse possível fundi-la graficamente ao transcrevê-la num pedaço de papel, três ou infinitas vezes justapostas - não faria diferença -, a ponto de, no final restar um refinado palimpsesto solicitando, impaciente, uma fonologia mais avançada que dê conta de sua leitura. A pele violenta do positivismo tropical é coberta por um manto, onde estão estampadas flores coloridas em tons pastéis, aplicativos de celular que regulam o peso, o sono, o crédito, ou a menstruação; sorrisos perfeitos e aflitos, todos eles sintomas de um coração em cinismo terminal e constante. Como se pudesse adquirir uma carne e um centro, o coração então pulsa sem licença. Dele brotam os olhos da propaganda. Numa mutação tão instantânea quanto bizarra, também brotam vozes, espalhando em todas as direções onde se ouve, sem descanso nem esforço, que o mundo pode ser seu, basta nunca parar de lutar, basta tentar, basta acreditar nos seus sonhos.
Vinte ou trinta pessoas sentiram, inconscientemente, a pontada ou a lança inteira dessas vozes descendo goela abaixo, como o tubo que alimenta os patos que, em troca, vomitam preciosos fígados doentes. Vinte, trinta pessoas ou mais, mas não Isidora, que havia acordado só com algum sono ainda descolando das pálpebras e uma fome descompensada. Mãos nos cabelos, ajeita um coque sempre tendendo aos ombros, preocupada em recolher as calcinhas no varal e checar seus e-mails na expectativa de que alguém os tivesse respondido com alguma proposta minimamente honesta de trabalho. Por honestidade, Isidora entendia pagamentos em dia, fins de semana livres, carteira assinada nos conformes e que com menos de 900 reais por mês, tal proposta não ganhava espaço nem na cogitação. Mas nada constava em sua caixa de entrada, mais uma vez. Nada, nada."É o Brasil de Julius", "Fora Julius!"; frases que haviam se tornado comuns naqueles últimos anos, ecoadas até o limite do desaparecimento. Isidora sabia, e cada conta atrasada vinha lembrá-la, as coisas precisavam melhorar, e com a urgência que suscita uma ordem de despejo. Mas a mudança não viria, pelo menos, naquela segunda-feira sem maiores promessas do que seu deslocamento de uma ponta à outra da cidade. O inverno chegava ao fim, e nesse fim era confortável perder a vista nas sobreposições das finas cortinas de gelo na cerração matinal daquela época. Visão ótima para bocejar, mas com um pouco de esforço fornecia o ambiente físico ideal para passar algumas horas deitada, as pernas caóticas na rede, pra lá e pra cá, lixando as unhas, pensando no nada ou lendo um livro que estava terminando. Sentia-se, de modo insólito, conectada ao autor em sua busca misteriosa, talvez por redenção, mas, certamente, por alguma estabilidade numa terra de desesperança e sonhos sifilíticos. Desesperança nunca foi um problema, pelo contrário, equilibrava seu ascendente em peixes, diziam as amigas esotéricas. Já a sífilis perdera o romantismo, sendo substituída pela AIDS, o que, vez por outra, ressabiava um pouco a mente de Isidora quando ela fazia reconstituições mentais de noites que eventualmente pudessem ter fugido ao seu controle. Um estalo rápido, uma palma da mão contra a outra, olhos arregalados ao som num reflexo confuso do corpo: sua maneira de desgrudar da dormência. Olha no relógio, tem pouco tempo, tem pouco saco, mas enfia um tênis no pé, se apruma, meio desajeitada. Hora de levantar.
Dois momentos compõem o caminho de Isidora. O primeiro é o trajeto feito de metrô, até o centro da cidade. A vida passa rápido no metrô. Passa um vendedor ambulante. Vende alimentos como passatempo, por que a fome e o tédio não haveriam de ser duas faces opostas do mesmíssimo biscoito? Às vezes, um vendedor ambulante é retirado do vagão por homens de preto com cordial truculência. Às vezes, um homem é enxotado, acompanhado de um escândalo em coro de mulheres, enxotado é uma palavra curiosa nessa circunstância. Tem também as pessoas que ocupam os assentos preferenciais sem serem pessoas preferenciais, e ouvem abertas advertências diagonais de pessoas igualmente não-preferenciais que, em pé, talvez também se sentassem ali se tivessem chance da preferência. As advertências costumam vir acompanhadas de discursos sobre educação exemplar, país em crise, valores morais, corrupção, etc. Todas as pessoas têm alguma coisa a dizer sobre a corrupção, ou enxergá-la em todas as atitudes de todos os brasileiros, como se fosse algum tipo de traço congênito-patriótico. Às vezes entra um casal idoso no metrô e começa alegremente a assuntar com pessoas próximas a Isidora, contando que se casaram há apenas 5 anos depois de trinta e oito juntos. Mas ela não sabe o que conversam. Tem os fones enterrados nos ouvidos, de modo que o mundo é filtrado pelas traulitadas da música eletrônica da vez. Então Isidora chega ao metrô. Sempre ofegante. Para esta segunda-feira sem nada em particular, ela escolhera um álbum contínuo, em que uma música termina dando a deixa para a outra, fazendo com que o trabalho dos artistas pareça uma coisa só, feito um sonho que escoa para outro mais rápido do que o cérebro consegue entender. O pescoço de Isidora se movimenta discretamente para frente e para trás, não necessariamente porque dentro da cabeça uma voz lhe avisa que o rock não pode parar, mas em consequência da batida. As estações esvaziam e incham como um pulmão infantil. Entre um sorriso discreto para um bebê e o olhar malicioso de um homem engravatado, Isidora deixa o vagão na estação com a qual tem em comum o gentílico.
Olhos atentos à tela que revela os horários das próximas barcas. A vida se alonga em lentidão sonolenta depois que ela se acomoda. Deve ser culpa das águas. A baía superficialmente morta é um templo movediço de contemplação, Isidora faz anotações. Coisa dela. Se repousa as mãos, tem o olhar perdido para além dos navios. Os navios são estrelas visíveis à luz crepuscular; olhar para eles é disparar um arpão de cabo longo. Sua trajetória é cega, mas objetiva. Inspira fundo e a maresia abraça suas narinas, se pensando bem-vinda; ela espirra cinco vezes. Recorda. Uma mulher com criança de colo conta seus infortúnios a todos os passageiros. Senhor passageiro, é proibida atuação de pedintes nas imediações da embarcação. Não contribua com esse tipo de prática, diz uma voz sem corpo que vem de todos os lugares, quase como se viesse de dentro da mente. Mas não da de Isidora, que, com sono, ajeita o caderno debaixo do rosto como uma grande concha de plástico. Não fosse a metafísica dos avisos sonharia com Caronte?
A multidão deixando o transporte em procissão automática é decalcada sobre uma vaga lembrança que Isidora tem da pequena almofada que pertenceu à sua avó, espetada com muitos alfinetes coloridos muito próximos uns dos outros. Hálito, suor, perfume, plástico, cigarro, um desfile de odores caminha discreto com a multidão. O calor daquela reunião aleatória de pessoas aumenta em Isidora o desejo de se misturar que havia tido já pela manhã, e que não havia sido vencido nem mesmo pelo banho-maria do ombro-a-ombro das pessoas cheias de deveres; e se misturaria sim, era isso o que desejava, mas não ali, que a mistura que queria não poderia acontecer ali, no meio daquele conjunto de homens e mulheres em serviço. Queria outras coisas. Olha para um lado, para o outro, recolhe uma mecha de cabelo que cai pela testa. Confere o celular, não há nenhuma resposta ao convite que propôs a dois amigos. O que acontece nas esperas corresponde à mesma vida que se vive fora delas?
Depois de horas, refaz o percurso sobre as mesmas águas, agora completamente enegrecidas pela noite. Aportada, desvia à direita de seu destino usual, criando outro para si. A noite gradualmente enverniza as cores, e de repente aquela segunda-feira é passível de evoluir para uma experiência mais interessante. Aperta a bolsa e os passos, as ruas são escuras, os ratos, enormes, e o horário oferece uma margem larga de distância entre um corpo e outro, sem a inevitabilidade das costumeiras colisões que ocorrem sob a luz do dia. Não é tão comum ver uma mulher vaguear sozinha, deslocando-se fisicamente pelas veias estreitas de uma metrópole tão bonita quanto perigosa. Isidora, vez por outra, se perguntava se era ela realmente muito destemida, ou se as pessoas é que tendiam demais ao medo. Aquela moça uma vez havia lhe dito: parâmetro! Não tinha nenhum amuleto, cântico ou oração específicos. Medo de morrer é sinal de muito medo de viver. Não tinha medo da noite; sua cabeça lhe dizia que não havia porquê. Ela lhe parecia uma enorme besta inflável que Isidora sentia necessidade de montar; desamarrada na extremidade; desgovernada e senil, quanto mais força tinha acumulada por dentro. O excesso do hábito era o viscoso sexto sentido da experiência. Inobjetivamente. Por isso os ouvidos bem abertos para o lado de dentro da cabeça. Educou-os para obedecer ao chamado da inobjetividade. É um chamado pequeno, e fortemente encriptado que ocorre debaixo da música ambiente dos ruídos fanhosos das promoções na rua, televisões ligadas, citações de filósofos mortos exumadas nas bocas de garotos querendo impressionar garotas, estouros de bolha de chiclete, áudios de whatsapp, rompimento de pacotes de biscoito, garranchos quentes da rasura invisível produzidas pelas canetas que não vão escrever nunca.
Asinhas herméticas, plenos ligamentos musculares, coxas rígidas, fogo no rabo. Chega onde queria através de uma rua antiga e rudimentar. Se camufla na fauna vasta de mulheres e homens ambiciosos, que espécie ambiciosa é a humana, tanta vontade nos sorrisos relaxados, e nos olhares uma descarga pesada de feromônios, incentivada pela conversão sempre bem efetuada entre a própria noite e o samba. O samba. Sempre o samba, tirando Isidora de casa, desviando Isidora de casa, afastando Isidora de casa; desmanchando e manchando seus romances, sereia musculosa sussurrando através dos tempos aos ouvidos mais dispersos, armando a ratoeira nas esquinas onde luz e moral vacilam igual. Mas não vai haver a roda de samba. A proibição das rodas de samba em sua cidade era um contrassenso, pensou. Os absurdos do futuro social da região por um momento fizeram-na cogitar que poderia não estar muito longe o dia em que a vadiagem voltasse a vigorar como argumento para prisão. Imagine só, uma horda de vadios famintos por diversão apodrecendo em celas abafadas. Quase como os estagiários que recusou-se a se tornar. Lembrou duma antiga profecia de Wilson das Neves. Num misto de preocupação e alívio secretos, riu. Aproveitou a oportunidade para queimar, ainda, alguns minutos observando o vai-e-vem dos passantes, já vazando da praça central, onde o samba teria lugar, para outras direções. Pára na barraca de um ambulante, a quem pede um isqueiro. Aceso o cigarro, agradece e se encaminha para casa, pisando suave, mas uma mão lhe toca o ombro esquerdo e é Pedro, um amigo recente com o qual estabeleceu afinidade imediata.
Pedro está com Guilherme, colega de trabalho, a quem Isidora é apresentada. Ambos trabalham perto dali, o que faz com que a rua onde acontece o samba seja apenas uma consequência no fim do dia. Uma coincidência encontrar Pedro. Eles oferecem a Isidora uma cerveja, o que vem em boa hora, ela não tem dinheiro algum que possa gastar. Pedro lhe dá um copo de plástico e o enche, lindo é o volume, a cor de ouro e a luz da cerveja em plena segunda-feira. Mesmo que brilhe um tanto leitosa num copo de plástico. Isidora não tinha rigorosamente nada contra segundas-feiras, inclusive até gostava delas porque necessariamente sucediam os domingos, esses, sim, dias desconfortáveis. Movimento lhe importava, e segunda-feira era sinônimo disso. Mesmo bebendo mais rápido que os homens, não acredita na descartabilidade do copo. Um copo nunca é realmente descartável até que o sol finalmente aponte no céu. A borda do copo é o círculo espiritual onde começam quase todas as congregações. Um copo na mão é um sintoma de autoridade, uma posição afirmativa em relação ao meio, uma deixa, uma espera, um sinal de disponibilidade. A boca de um copo é a virtualidade da boca humana, aberta, numa espécie tolerante de avesso; boca que cala a outra, acesso ao interior de tudo o que o outro tenta guardar: embebedar alguém é uma tentativa discreta de arrombamento.
Entre um refil e outro, o trio é surpreendido por outros dois amigos, talvez também de passagem, pela estreita rua onde agora há franco trânsito de cabisbaixos pelo aborto do samba. Os amigos chegam e despejam suas cervejas trazidas de casa na mesa onde o trio bebe, e engata num assunto qualquer que um dos recém-chegados tem grande domínio. O dono da palavra segue, discorrendo grandemente sobre os problemas da alienação da população, em como a grande mídia lucra com a ignorância do povo, em como tudo se organiza de maneira circular. O trio ouve o amigo se entregar apaixonadamente ao assunto. Isidora tenta dizer algumas coisas que não vem ao caso, mas é interrompida. Tem os olhos mais atentos ao cigarro que o locutor destrincha das mãos, e antes de acendê-lo, se demora em instruir aos amigos sobre como preparar o cigarro perfeito. Conforme o amigo continua seu discurso, as palavras que vai dizendo vão ficando coladas à pele do seu rosto, não se misturam com o ar. Em poucos minutos ele tem o rosto coberto pelas palavras que deixou sair, que por falta de espaço vão se amontoando umas sobre as outras, e devido ao estresse, se amotinam. Num gesto curioso, oferece o cigarro a Isidora, pede que o acenda. Ela não hesita, e dá uma tragada profunda na ponta troncha do cigarro. Sente os olhos indigentes de Pedro e Guilherme pousados na fumaça gordurosa que libera pela boca semiaberta, fazendo firulas, enquanto gradativamente perde a capacidade de discernir as feições do amigo tomadas pelas palavras que não parou de falar até então. Invertendo a ordem da brasa, Isidora passa o cigarro a Pedro, que em sequência o passa a Guilherme. Quando devolvem o cigarro ao dono, o calor do fumo reage inesperadamente com o depósito das palavras em sua cara, e ele incinera de uma vez. O trio se afasta, ressabiado, e confere a hora nos relógios: perderiam a última viagem de metrô se não se esforçassem muito para converter em precisos 15 minutos os mais de 20 que os distavam da estação mais próxima. Como se ouvissem um tiro olímpico interno, Isidora, Pedro e Guilherme abandonam o amigo chamuscado e correm discretamente. De seu rosto, se desprendem agonizantes pequenos pedaços de palavras, pequenas larvinhas em movimentos nervosos, que conforme vão tocando o chão, produzem não uma explosão, mas um soluço.
A escuridão da rua desola ainda mais a visão da porta cerrada da estação. Os três levam as mãos à cabeça, Isidora confecciona um coque inútil, e aí, e agora? O mais viável é pela Avenida Dois, sugere Pedro. Só se você tiver louco, não sabe o que tem lá? Ué, saber eu sei, mas não tem como pegar táxi aqui. Você tem alguma ideia melhor? Eu não, mas também não sou mulher. Acho que é a Isidora quem deve decidir. Isidora olha para a escuridão a perder de vista. É, gente, não temos opção nenhuma a essa hora. Ou é isso ou a gente vai ter que contornar toda a Avenida Quatro, o que eu acho mais perigoso ainda. Topo a Avenida Dois mesmo. É só a gente passar rápido e sem muito alarde. Nem vão notar a gente.
Guilherme é o mais desconfortável com a ideia de tomarem a Avenida Dois, mas sendo seu voto minoritário, não faz mais que seguir os dois amigos. Dali, tomam a segunda rua esquerda, que desemboca nela. É uma rua extensa e larga, muito movimentada durante o dia, mas que à noite transforma quase todos os pedintes da região em condôminos. O trio passa pelo centro da avenida ouvindo as conversas abertas e os monólogos delirantes dos habitantes noturnos. Era ali que estavam os olhos da cidade. Coleções de imagens que a queda do dia fratura com uma implacabilidade débil, recontações de fatos esquartejados, notas sobre homens de merda e putas que ainda haveriam de perder para eles alguma coisa, qualquer coisa. De uma das extremidades da rua surge uma mulher enorme, imunda, com os seios livres, que se aproxima de Guilherme e murmura alguma coisa que não faz sentido a ele, mas que se recolhe de onde surge sem tocá-lo. Um homem velho grita com outro, acusando-o de ter roubado um de seus caixotes. Duas mulheres jovens se queixam da briga dos homens, e são repreendidas por uma terceira, que não parece tomar partidos e cuja irrupção na querela tem como propósito único atiçar os ânimos já esquentados. Vários gatos ondulam a silhueta da escuridão, enquanto fogem de ratos que não se podem ver. O resultado de tamanha pressão é que alguns minutos depois de discreta caminhada, a Avenida Dois deixa de ser um lugar amedrontador para dilatar-se no registro da retina como qualquer outro, e os diálogos que não dizem respeito aos três intrusos na paisagem de fato se parecem com algum tipo torcido de comédia da vida privada, esquete a céu aberto. Já deixando a rua, Pedro finalmente entorna, verbalmente, sua vontade de urinar; fato não só manifestado como compartilhado fisiologicamente por Isidora e Guilherme, que vinham sustentando a mesma vontade em silêncio e agonia. Num trecho mais claro, e à tal altura, já distante do centro da Avenida Dois, os três tomam para si árvores que lhes remontam uma sensação aproximada de privacidade. Todos se mijam inteiros, mas por conta de certas configurações biológicas, é pior com Isidora, que não só erra o lugar onde mirava bem como se atrapalha, mija na própria bolsa, e no ápice do desequilíbrio se desabraça de sua árvore, anda pra trás quase caindo sentada sobre a própria urina. Pedro, Guilherme e ela desbaratinam num riso tão incontinente quanto a urina com a qual empapuçaram aquela terra rala. Metros adiante, um monólito marca o mapa da cidade. Descontraídos enquanto erram os passos, já aliviados pelo que ficou para trás, Pedro e Guilherme veem Isidora se distanciar em uma breve e enfurecida corrida ao encontro do marco. Ao debruçar-se sobre ele, esfrega, em círculos inexatos, sua bolsa por sobre o mapa protegido pelo acrílico, e emenda num grito. Agora, querendo o mundo ou não, sabendo o mundo ou não, sua olorosa boceta estaria para sempre guardando o centro da cidade.
Com relaxada demora, os três chegam a uma praça próxima. A desertidão local lhes lembra que havia sido segunda-feira há pouco mais de 30 minutos. Pedro põe a culpa no horário, os amigos não entendem. Vencido o percurso, se sentem em obrigação patriótica de beber mais uma cerveja, e ao se sentarem num bar que já tinha organizadas as cadeiras de ponta-cabeça, o fazem com intensa sensação de merecimento. Antes de desembainharem os copos ao alto, no entanto, Pedro solicita uma pausa. Quando eu morava com a minha mãe, ela sempre me dizia que tudo o que eu tivesse que fazer pela rua, que fizesse até a meia-noite, isso é, se a gente tivesse falando de um dia da semana, pro caso de trabalhar no dia seguinte. Uma advertência pra não pirar o cabeção demais, sabe? Ela nunca me explicou muito bem o que ela realmente queria dizer com isso, mas hoje eu entendo. Eu acho que entendo. Pelo menos comigo é sempre assim. Acho que até dar meia-noite a gente tem uma chance, do que quer que seja, de chegar em casa, de beber uma na saída do trabalho sem muitos danos. O que eu quero dizer é que até a meia-noite ainda temos tempo. E é um tempo de qualquer coisa. Olha o formato desse horário. São quatro círculos. São quatro portas abertas. O que vem depois é mistério, ninguém sabe, acontece uma perturbação no próprio tempo. Depois disso é ladeira abaixo, a hora cresce sempre maior, depois disso é precipício. Guilherme olha curioso. Isidora gargalha. Isso é sério, Pedro? Não sei, mas acredito. Os três então levantam seus copos, e brindam.
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