quarta-feira, 24 de novembro de 2021

Na Arábia

Isto aprendi nos desertos:

a escassez, a vertigem.

cílios são escudos
luxuosos
contra a imaturidade da vista

(e as imagens são editáveis
no chão do olho seco)

o deserto, meu amigo,
é limpo. e uniforme.

mesmo que à noite
gigantes azuis alvorocem seus lençóis
e ao descuido do sol
tudo mudem de lugar

feras rastejam
sobre fogo
e vidro
sem gritar
a mágica das árvores despercebidas
e as pedras lá postas pelo tempo
antes do Tempo eclodir o tempo

o deserto é paciente
o deserto é testemunha
sem língua
de cavernas escuras que abrem
e se fecham
dentro e fora dos homens

e não conta, portanto,
dos muitos sangues sorvidos por 
seus exércitos de areia devoradora 
que vão dar matéria e ofício
a arqueólogos suicidas 
e deuses anônimos

o deserto e a eternidade 
velam-se, gêmeos,
valem-se, áureos,
fecham-se, elísios.


quarta-feira, 3 de novembro de 2021

Padrão Numero Cinco

o que você faz com
as palavras
é o que a água faz
na madeira

e o que também faz o tempo
nas joias

o que fazem as suas palavras

é, no início

(e digo pedindo licença)

o que a primavera faz com
as cerejeiras

e as cerejas descem do pé
em suas patas,
caranguejeiras,
vieram passear os sonhos
com negras quelíceras

quando envelhecem as suas palavras

disse alguém no oriente
as palavras não são capazes
de expressar
tudo o que uma pessoa sente

não se
ao tocarmos as palavras
as virássemos do avesso
eviscerássemo-las
as escrevêssemos ao contrário

entre anagramas e palimpsestos

ainda há esmeraldas nas suas palavras
no lado oposto do cal
nessa rima banal-absurda
que não encaixa bem ou mal

o que fazem as suas palavras
é o que o nervo cego do olho crê que vê
suas palavras jogando
manto sobre o invisível

(e não, não jogam)

o que você faz com as palavras
também é o que sua língua fez
na pele sensível do que dobra

e o que não escorrega
pra dentro da sua palavra
é tudo aquilo que sobra.