segunda-feira, 14 de março de 2011

Bicicleta

Sinto saudades de andar de bicicleta. Eu lembro que passei boa parte da minha infância e pré-adolescência sobre algumas. Gosto do movimento continuamente circular. A bicicleta faz a gente calçar as sapatilhas de Hermes. Eu lembro, com muita clareza, de que quando dava por mim, me sentia levantando voô em cima da minha Caloizinha, como se as ruas que cercavam a minha casa de praia fossem só minhas.
    Ah, bicicleta! Como é gostoso revisitar o prazer de se desprender do guidom, abrindo os braços pra abraçar e ser abraçada longamente pelo vento que chicoteava os cabelos, docemente, fechar os olhos e ver um mundo caleidoscópico pelas retinas. Me pintar numa aquarela bucólica, sobre uma bicicleta que atravessa uma rua sem nome, cheia de terra e cascalho fresco que a chuva fina da noite molhou, que o sol rascante do dia quarou. Bicicleta. Como pode uma única palavra suscitar lembranças tão lívidas em alguém? As pernas saudáveis movendo as roldanas bem lubrificadas, as duas peças esféricas que continham as marchas, toda a sua bela e magra anatomia; toda a orquestra barulhenta da corrente que se movia por através delas, e a então bicicleta cavalgava a fortes trotes sobre o chão de barro, meio animal, com uma vida quase própria.
    Longe dos olhares que repreenderiam, longe dos chamados para o almoço proferidos pela esganiçada voz de minha avó, mais longe que qualquer lugar que alguém conheça - por existir, saudosamente, tanto na memória quanto no meu peito -  eu e a minha bicicleta éramos uma só. Nós duas corríamos, caíamos, nos machucávamos. E meu pai cuidava muito bem de nós. Já no dia seguinte estávamos prontas para novas trilhas. Quando nos cansávamos, parávamos e campos amplos de vegetação vulgar, mas eram tão macios aqueles matos selvagens que cresciam impunes que ali passávamos longas horas sem nos dar conta, brincando com as dormideiras e sentindo as formigas fazendo cosquinhas por nossos pés e braços. Ccostumava adornar minha bicicleta com muitas dessas flores corriqueiras que encontrávamos pelo caminho, e ela ficava com cara de Havaí, coroada. Toda metida.
    Hoje, algumas idades e estações depois, ouvi o nome dela. Bicicleta. Veio duma boca apaixonada que ia andar não só sobre ela, mas, sobretudo, com ela. Essa pessoa parecia sentir o que eu sentia.
    E eu morri de saudade.

quarta-feira, 2 de março de 2011

O presente obsoleto

         Foi lançado, nos últimos dias, o último álbum da banda britânica Radiohead, "The King of Limbs". Particularmente, nada tenho contra o trabalho do dançarino Tom Yorke e companhia, tampouco admiro o som. Mas acontece que, ao saber de tal lançamento, pensei no meu namorado, ardoroso radioheadico, e cogitei comprar o álbum para presenteá-lo. Daí, parei por um instante, e voltei atrás: quem dá CD de presente nos dias de hoje?
         Eu ainda me lembro da época em que CD era presente. Presente muito bom, aliás. Era, inclusive, a época em que os móveis de sala-de-estar eram vendidos com aquelas colunas medonhas que pareciam o esqueleto de alguma criatura paleozóica, destinados a comportar os CD's. Mas, conforme passaram os anos, a década de 2000 engoliu este esférico artefato.
          Tive muitos CD's. E a sessão shame-on-my-past é extensa. Xuxa, É o tchan, Fat Family, Spice Girls, Ricky Martin, todos figuravam, felizes, entre os meus it-pertences. Outros tempos. Tempos em que o Google não me dava bom dia e nem me punha para dormir. Para ouvir as músicas novas das bandas que eu gostava, era preciso ouvir rádio. Quando não, dispor de fita cassete - metros, muitos metros de fita magnética para contar história. Não vou entrar no mérito, mas a internet facilitou bastante a vida das pessoas. Para o bem e para o mal. Me lembro que ouvia uma música incrível na rádio, e, por não ter como procurá-la para ouvir novamente, ficava muito tempo com seu refrãozinho tocando na minha cabeça. Hoje, com uma rápida pesquisa em tags, é possível encontrar o ano de lançamento, intérpretes, história; tudo. Não sei se é só uma impressão isolada, mas as músicas me soam muito mais cansativas. Esse processo acelerou a oxidação da música. Acabou-se aquela gostosa inquietação de esperar. Acabou a espera.
           Mas a estrela - ou seria, hoje, só uma anã-branca? - da postagem é o CD. Aquele elemento espelhado, com um furinho central, que já fez tanta gente sacudir o esqueleto dançar nos 90's, e hoje adorna, suspenso no ar por fios de nylon, a decoração de algumas festas prosaicas. E hoje, assim, sem mais nem porquê, me dei conta da silenciosa extinção do compact disc.
           Coincidente e ironicamente, me lembro da última vez que dei, de presente, um CD a alguém. Tem pouco tempo. Foi para um namorado old school que tive que, à época, ainda tinha em seu quarto um daqueles rádios com leitor para CD's. Tenho minhas dúvidas se ainda fabricam rádios assim. E você, leitor? Será que é capaz de se lembrar qual foi o último CD que deu para alguém, ou mesmo que tenha "se dado"? Na era D.G - leia-se Depois do Google -, isto é impensável.
            E fiz bem ao conter minha boa-intenção em agraciar meu namorado com tal peça. Ao interrogá-lo sobre o lançamento do novo álbum da banda em questão, ele me respondeu, prontamente, que já havia baixado. Lembrei, nesse instante, que foi justamente essa banda a pioneira na extinção da era-CD, disponibilizando o conteúdo de sua obra via download por um valor modesto.
            Fiquei quietinha. E economizei trinta reais.