sábado, 11 de fevereiro de 2017

conselho de pai II

quando eu tinha 28 anos
e um eclipse lunar me tirou o sono
fui ter com meu pai nas alturas
da cabana que construiu para si

lá encontrei uma rede
meu pai me convidou a deitar nela e me ensinou
detalhadamente
como havia lhe fabricado -
algo sobre cavaletes, idas, vindas
precisão e paciência

aquele que havia lhe ensinado
homem de pele mais morena e dedos mais finos
meu pai me disse
esta rede ele faz em 3 horas,
mas eu levei 5 dias

me deitei sobre a rede
- e meu pai continuava me explicando -
esta rede começa com uma matriz
invisível a você
em sua primeira fase dá origem a 28 cruzamentos
pronta, totaliza 56, e você pode ver como
eu puxo, repuxo
e ela não se altera

de fato, meu pai acariciava a rede
como se fosse uma harpa

é preciso atenção, filha,
onde a gente entrelaça os fios
cruzamento em lugar errado desanda a trama
todos precisam estar na mesma direção

meu pai não sabe que do alto
dos meus problemas com números
me pus a fazer contas
mentais
com 56 anos
as minhas pernas
outrora musculosas aos 28
tendo como herança lógica a artrose
de minha mãe
suspensas e doloridas n'alguma rede outra
que não passara pelas mãos de meu pai
28 cruzamentos

pai, às vezes as tramas
são tão confusas.

cerimônia

a noite era de lua cheia mas no quarto não havia janelas. farida se movia pelo pequeno espaço, chamando a meditação que não vinha: fingindo a penumbra para si para abafar os próprios monstros, todos ali, todos com ela. era cheia a lua, e ela sabia nas marés do corpo, na suscetibilidade da pele em contato com as próprias unhas, todos os pequenos pêlos de seu nariz farejando a memória da carne no barro abafado do quarto. engole a saliva quente como se se aconselhasse. aqui não. inspira com vontade, educando o caos.

dahaya está lá fora, o tacho cheio de olhos e sementes começaria a ferver em poucos minutos. a chama ainda não crepitava e os insetos não davam sossego à pequena samira, que estourava as bolhas que o sol havia acumulado em sua pele. samira, traz pra mãe a cuia preta. com uma tinta vermelha dahaya tingia os antebraços, as gravuras escorregando por eles como veias antigas e maculadas. tomando para si uma outra cuia, próxima a seu corpo, contendo uma tinta preta, com a ajuda de um pincel criava linhas arredondadas no rosto, que ia espalhando pescoço e colo abaixo. onde as linhas formavam redondos labirintos pingava pequenos pontos pretos, circundando estes de pontos pretos ainda menores.

farida parecia ter reconciliado o corpo, a mente e a calma até sentir nas narinas o cheiro bruto da mistura que vinha do tacho. sentia a boca encher duma água quente e rugosa, como se debaixo de sua língua houvesse um sapo. um tremelique correu por seus olhos, derrubando lágrimas nervosas pelo seu semblante. havia 3 dias ela estava encarcerada lá dentro, sem receber visita alguma que não fosse para deixar-lhe uma jarra de água que lhe descia pelo corpo com gosto de terra. era sua condição, auto-imposta, sua resposta pra si. precisava se limpar. mas nada lhe afastava o cheiro perturbador da mistura, podia se ver contando os passos, e até mesmo os dos joelhos, fosse o caso de ir até o lugar onde dahaya estava, engatinhando. podia sentir o cheiro da própria dahaya, o manuseio de alguma pasta, e sentia os olhos virando para dentro do corpo enquanto começava a sentir a nuca quebrando sobre os ombros e as funções lhe deixarem.

com um óleo feito de ervas, dahaya untou os pés e as mãos, e pediu à samira que se retirasse. a menina se levantou do chão sacudindo os joelhos, como se houvesse sido perdoada. a mulher encouraçou o tronco com uma grossa cinta, onde guardou uma adaga de prata, confeccionada com marfim e pedrarias que brilhavam à luz daquela lua tão cheia e pavoneada, além de um bastão de madeira em cuja ponta pendia um guizo, também de prata. cobriu a cabeça com uma rede feita da mais escura das jutas. entoando cânticos numa voz rouca e distorcida, mas enérgica, e sacudindo com força uma argola cascateando em chocalhos de conchas e dentes, percorreu alguns metros até chegar ao quarto onde farida se desencontrava da própria matéria, num trânsito intenso de botar medo. num grito que provocou uma revoada dos pássaros que perto dali dormiam, dahaya bateu com o guizo no ferrolho enferrujado, e abriu a porta.

terça-feira, 7 de fevereiro de 2017

na rua paul celan

na rua paul celan nós
fomos perseguidos
primeiro pelo som
perturbador dos tambores
depois os soldados desceram os morros
mas encontraram as ruas vazias
no que foi uma escola de samba
no século 20
nós enfiamos pés e mãos e narizes
e o que desse pra esconder
dos nossos membros visíveis
suspensos choro e respiração
uma TV zumbi fotografando nossas caras
dentro do seu vidro podre
e analógico
nossas caras
como se registrasse
um pedido de ajuda
boletim de recorrência
nós enfiamos nosso corpo em espaços impossíveis e eles
eles vasculhavam a área e suas armas
sentiam nosso cheiro
de caça.
na rua paul celan nós
fomos perseguidos
pelos tambores perturbadores
do nosso coração.

segunda-feira, 6 de fevereiro de 2017

maikin

atacadãoshoppingmetrôpenhamadureiralobo juuuuuuuuunior. com ritmo. apesar da velocidade, tudo é ritmo. passa o troco rápido, bruto o dinheiro, líquido e vivo, as notas de dois azuis membranas de peixe se misturando aos dedos encardidos, dedo e dinheiro quase uma coisa só. do troco passado rápido nas dobras dos dedos o talento bruto pro raciocínio rápido-rapidinho, pra distância, pro tempo, pra maldade. maldade era coisa que só se aprendia, e tinha que ser rápido, se demorasse, se desse mole, se vacilasse, perdia passageiro perdia dinheiro ou tomava o vento frio na nuca duma porra duma glock insuspeita guardada na mochila magra de um vagabundo ou outro que subia na maré. com ele só tinha acontecido uma vez e ele tinha 12 anos e tava há dois meses na van, a mãe do primo falou maikin não vai mais na van não, mas foi ele mesmo quem teimou com a tia, insistiu pra voltar, falou que precisava do dinheiro. voltou.

o expediente começava sempre umas dez horas da noite, hora que quem mora pelo itinerário da van tá saindo pra rua. não fica fazendo nada de bom em casa, janaína, deixa ele ir, ganhar o dinheiro dele, daqui a pouco já tá um homem, não vou ficar sustentando burro velho a vida toda, mas ele tem que estudar, janaína, tu sabe que ele não quer estudar. ele fica com um olho no dinheiro, outro em quem sobe, outro em quem desce e outro nas meninas de minissaia, coisa mais fácil do mundo é botar o olho dentro da calcinha delas, porque a van é apertada e elas ficam sem posição pra sentar direito, porque elas não tão nem aí, porque algumas até gostam de saber que estão sendo olhadas na calcinha. moça, adianta a passagem, por favor, ele se acha educado quando diz isso, muito educado e profissional e o primo já tinha até falado, moleque, tu vai fazer teu dinheiro rápido.

dependendo do horário não sobe passageiro quase nenhum e ele fica olhando o caminho um pouco mais calmo desdobrando na frente dele. a noite e as avenidas se parecem conforme o primo dirige dentro delas, ele acha que fizeram as ruas e as avenidas na cor preta pra que ficassem parecidas mesmo, uma continuando a outra. tem umas coisa que se emendam naturalmente. será que seria mais caro fazer as ruas de outra cor? uma vez perguntou ao primo, o primo riu e disse que não sabia e que aquela era uma pergunta maluca, quer as rua tudo colorida, haaaan bichona, ele riu de volta, sai fora porra, eu sou espada.

esse ano ia fazer dois de van. a maior parte das viagens ficava quieto, gostava de ouvir o que os passageiros iam falando na ida e na volta do caminho mas na volta era sempre mais engraçado. tinha mina bêbada falando que pegou cinco no baile, às vezes subia crente e o primo tinha um pé pesado, os crentes ficavam rezando de olho fechado pra não morrer de acidente e ele ria quietinho. tinha dia que subia um mulão de moleque chapado contando uma mentira atrás da outra porque em que mundo que um moleque feio e duro daquele vai pegar três mina no baile numa noite só, tinha as patricinha também, algumas falavam mais baixo mas tinha outras que também perdiam a linha que nem as da favela, e ele sabia mais ou menos onde todo mundo morava. esse ano ia fazer dois de van. no fim da semana tirava pra ele uns oitenta reais, mais ou menos, e ia juntando alguma coisa, mais pra ele que pra ajudar em casa. o primeiro dinheiro da van ele gastou com uma cerveja geladinha que comprou dizendo ser pro primo, estranhou o amargo e fez uma careta, mas bebeu toda. depois comprou um pacote com três camisinhas pra ver como era. por que é melado assim?

uma vez o primo mostrou pra ele uma revista que guardava no porta-luvas. ele ficou com as imagens na cabeça por muitos dias.

hoje a gente vai rodar até uma certa hora e depois vamo pra uma missão, o primo falava com um mistério na voz, ele foi ficando curioso, que missão, na hora você vê, respeitou a assertividade do comando. admirava o primo em silêncio, especialmente quando ele levantava poeira em cima dos outros motoristas fazendo pega depois do viaduto. queria dirigir como o primo um dia, queria saber beber como o primo, e pegar mulher que nem o primo. o whatsapp dele não parava nunca, toda hora uma voz melosa chamando pra ir pra algum lugar. mas hoje eles iriam pra uma missão. que missão era essa? ele pensou, hoje é quarta, o movimento não é igual quinta e sexta, pra onde a gente vai?

rodaram até mais ou menos 2:30, não fizeram tanto dinheiro naquela noite, por mais rápido que ele fosse ou que o primo dirigisse. a van tomou um caminho diferente pra ele e o primo estacionou. bora beber, moleque, bora, tava cheio o lugar, luzes coloridas piscando. chegando no balcão tinha uma mulher gorda com uma pinta engraçada na testa que recebeu o primo com dois beijos, oi meu coração, mas tá sumido, beijo, tô nada dona valéria, beijo, só muito trabalho mesmo, hm, sei, e esse aí que eu nunca vi aqui, é meu primo dona valéria, maikin, tá trabalhando comigo, mas tão novinho, dedé, ah, a senhora saaaabe como é, moleque tá crescendo... hoje é mais diferente as coisa, a gente veio beber uma!

a mulher sorriu e foi pegando uma garrafa bem gelada, serviu os dois. fica aqui, vou falar uma coisa com ela rapidinho, e levantou, deixando o menino sozinho na mesa. não demorou dois minutos, voltou, que mulher feia, primo, essa era a missão, o primo riu, hahahahahaha num viaja moleque, você ainda vai me agradecer, e os dois ficaram ali bebendo, o primo falando com um e outro que passava pela mesa deles. o menino bebia forçando goladas cada vez maiores, e as luzes pareciam entrar no copo às vezes, molhadas lá dentro. mais ou menos uns vinte minutos depois uma moça com uma saia coladinha e a boca molhada de vermelho sentou no colo do primo, então hoje você trouxe seu primo, tá vendo, trouxe sim, olha o tamanho do garoto, a moça riu um sorriso sem vontade, aí maikin, bonita minha amiga né, é, é bonita, vai lá ensinar ele a dançar suzy, vem maikin.

passou um tempo. uma hora? ele foi deixado no mesmo lugar onde dançava com um beijo da moça, ainda sem entender muito bem o que havia acontecido, enquanto ela sumia por uma porta escura. o primo bebia com outros três homens, um deles o menino conhecia. ae rapaziada, cria da suzy. todos riram, o menino sorriu, tonto. vou levar a peça pra casa, sipá volto depois.

o menino estava em disputa com o sono ao longo da viagem pra casa. costume, o estado de vigilância é quem não dorme. quantos anos ela tinha? encosta aí moleque, pode dormir hoje. no rádio zeca pagodinho dizia que nunca tinha feito amigos bebendo leite, e com a boca meio grogue ele acompanhava os dizeres; ainda era bem escuro, aquela escuridão que mistura a noite, o asfalto e a porta pela qual a mulher havia entrado guardando alguma coisa dele, enquanto ele pousava, vagarosamente, as pálpebras umas sobre as outras.


para rafael simeão