quinta-feira, 24 de setembro de 2009

Vício



Dançando, sobe
em espirais azuis,
brancas,
acinzentadas.
Poluindo, sobe
e vejo dragões
pequenas gueixas,
e vejo flores estranhas
na sua transparência tão subjetiva,
tão tacanha.
Sobe, e conforme sobe,
se desdobra e evanesce,
se integra ao invisivel ar,
desintegra meu alvéolo pulmonar,
seu cheiro abrindo os matagais dos meus cabelos
seu cheiro entranhando nos meus dedos.
Póstuma, sobe
E há tanta poesia no seu pós-morte
Tanto Jimmy Dean, tanto Kerouac
que é na neblina mental - cabeça de vento, eu não penso
que ela ainda sobe,
e sobe,
e sobe.

quinta-feira, 17 de setembro de 2009

O medo

Medo é uma palavra que, no momento em que deixa a boca, altera a freqüência cardíaca. Medo que dorme debaixo de cada nervo, que dorme debaixo da cama. Medo que arregala olho, medo que levanta pêlo. O medo que mora em nós é coberto por uma redoma de grosso cristal fumê, que pretende aprisioná-lo assim.
O medo é um tabu. Não há quem goste de pensar ou falar do próprio medo, seja ele medo de barata ou medo da morte. Medo é coisa inconfessável, quando é medo de verdade, e não um mero temor. Desenvolvemos respeito por nossos medos, quando sabemos ou nos convencemos de que não podemos com eles.
É certo que muita gente encara seus fantasmas pessoais de frente, corajosas essas pessoas. Mas uma grossa parcela prefere abandonar a questão - e aqui me insiro também. Porque o medo, quando se agiganta, e se dissemina em descargas elétricas por dentro de nós tem um efeito tão devastador que anestesia e necrosa a força de vontade para lutar contra. Esse medo é perigosíssimo, porque é do tipo que descamba para depressões irreversíveis, aprisionando o indivíduo no desestímulo de viver. Pode soar um parecer negativista, mas é apenas uma realidade pontiaguda que vara a vida de tantas pessoas em segredo.
Apesar de tudo, particularmente acredito que todo ser humano tem uma tendência a se levantar. O mesmo medo que acua a espécie é também fomento da curiosidade, da busca pelo novo, o que move o homem em direções inéditas. Certos medos são necessários por nos guardarem do pior, como Ícaro mesmo ensinou. Mas na mesma medida em que se deve temê-lo, deve-se enfrentá-lo, pois é das trevas da psique humana que se dá o nascedouro das idéias.

sexta-feira, 11 de setembro de 2009

Curtinhas modernistas à Ana que nunca dorme


Amizade entre opostos

Dois mil e nove. Que ironia.
Sou sua amiga, sou por você bem quista.
Eu, moça de esquerda; você, rapaz capitalista.
Os tempos fossem outros
Me chamarías comunistóide
E eu a ti fascista.

Para Fabio Luis

Dos dedos

Antes de tudo, a música. Assim
Verlaine disse.
Mas a música não se fazia
não nascia
não havia quem ouvisse.
O som
entrecortado de anacolutos (brutos)
tinha cara de caminho
- ela era autodidata e não sabia ler
De lá pra cá
iam os dedos
desengonçados, bêbados.
Mas no fim
o arranjo e a sobriedade - de grinalda e véu
se casavam.

terça-feira, 8 de setembro de 2009

O quem

Quem viu?
Quem calou o rei?
Quem riu?
Quem é o novo fora da lei?
Quem matou John Kennedy?
Quem inventou a roda?
Quem acendeu a luz?
Quem concebeu a moda?
Quem quebrou os braços de Milo?
Quem mantém sigilo?
Quem foi embora?
Quem jogou Nardoni?
Quem desenhou em Nazca?
Quem foi a Woodstock?
Quem aí tem 'T.O.C'?
Quem martelou Cristo?
Quem estragou isto?
Quem roubou o banco?
Quem desceu do tamanco?
Quem sabe contar história?
Quem tem um cigarro?
Quem tem fé?
Quem já entrou num cabaret?
Quem mijou fora do penico?
Quem tem medo de milico?
Quem você quer tanto beijar?
Quem come frio?
Quem sente o vazio?
Quem desistiu de tentar?
Quem dorme acordado?
Quem não é amado?
Quem se suicida devagar?
Quem já andou de nave espacial?
Quem se assume boçal?
Quem ofendeu o anjo?
Quem desfez o arranjo?
Quem me pergunta, afinal?

sexta-feira, 4 de setembro de 2009

Mulheres de Almodóvar


As mulheres de Almodóvar têm todas uma boca. Um cabelo, bem no alto da cabeça, irregular; elas têm uns peitos. Peitos não, elas têm um busto. É. É isso mesmo, um busto. Mulheres de Almodóvar não têm ressacas, mas maremotos inteiros morando nas retinas. E cada olhar duma mulher almodovariana sabe muito bem o que pretende.
As mulheres de Almodóvar vão à feira, catam as melhores hortaliças. Tagarelam com o vizinho sobre qualquer bobagem, são freiras aidéticas, toureiras que temem cobras. E cagam zepelins. Ah, elas cagam! As mulheres de Almodóvar são pequenos retalhos duma plebe de saias. De renda vermelha.
As mulheres de Almodóvar facilmente engolem os (reduzidos) homens de Pedro. Fazem sexo com eles, sem que para isso precisem sair do salto. As mulheres de Almodóvar têm um sangue essencialmente hispânico, cheiram a azeite e sândalo, e se você as colocar próximo ao ouvido poderá ouvir o quente estalar das castanholas madrilenas.
Almodóvar desenhou mulheres já existentes; tudo o que fez foi acrescentar uns tantos de pimenta, cardamomo e lascívia aos naturais encantos delas. Ah, as mulheres de Almodóvar são tão humanas e tão táteis! São embrutecidas de cotidiano, e amainadas por sonhos baratos... ah, Almodóvar! Tuas mulheres são gostosas, como nacos de fruta madura, bem caetaneadas na firmeza do corpo, cheias de problemas, cheias de vícios, cheias de canções! São Marias, Anas, Penelopes, Dulces; tuas mulheres são graciosas até quando não produzem estrogênio.
E o melhor é que elas são tão possíveis...
tão possíveis, Almodóvar, tão possíveis!