segunda-feira, 24 de janeiro de 2022

O filho de meu pai

O dia era claro e comum quando perguntei quem era o rapaz na foto que encontrei caída no chão da cozinha. Era uma foto antiga - o tempo já havia passeado nela de fora pra dentro - pequena e mal recortada. Ele parecia ter por volta de 13 anos, que é a idade, nos meninos, em que buço e queixo são povoados pela sombra rala do constrangimento, coisa que o foco da foto revelava. Um menino magro, mas em desenvolvimento, conforme indicava a musculatura dos ombros que aparentava uma discreta expansão. Ele não sorria. 

-- Onde achou essa foto?
 
Meu pai me pergunta, interrompendo o silêncio entre mim e a foto me levando a um sobressalto, como se eu estivesse fazendo algo que não devesse.

-- Quem é esse menino?

Ele toma a foto das minhas mãos em um movimento suave, e olha para ela, detido por alguns segundos consideráveis. 

-- Já te perguntei, onde achou essa foto?

-- Tava no chão da cozinha. Quem é, pai?

-- Esse é Gustavo. 

Olho para ele prendendo meu lábio inferior nos dentes. Ele olha pra mim de volta, revelando em seu olhar que meu cenho denuncia que sua frase é mais uma afirmação que uma informação. 

-- Gustavo morreu antes de você nascer.

Ele então senta-se à mesa da cozinha. Eu sento, também. Presumo quem seja Gustavo com dificuldade, apesar de nunca ter ouvido falar nele, rastreando na escassez das palavras o seu motivo. Presumindo devagar, tento aliviar o desconforto nas respostas que meu pai até então me fornece, sem saber se devo levar adiante aquela conversa. Sem saber mesmo se quero.

-- Quando você nasceu, era como se ele tivesse aberto os olhos de novo. Vocês têm os mesmos olhos. Ele era um menino forte e curioso como você. De um tudo fazia quando a gente passava as férias na casa de Passos, antes da gente vender. Aprendeu a nadar sozinho e nadava que era um peixe, chamava atenção por isso. 

Ouvia com atenção cada palavra como se estivesse abrindo uma caixa antiga. O que era. Talvez porque ele nunca tivesse falado de Gustavo comigo antes. Coisa mais natural teria sido. Estranho, nunca mesmo. E Gustavo seguiria uma existência misteriosa pra mim, não fosse a oportunidade de sua foto no chão. Aos poucos consigo entender o litígio que engasga meu pai: como falar, para mim, de Gustavo? Era possível (e compreensível) que ele se ressentisse de dizer, "Gustavo era seu irmão", se mesmo isto não era uma verdade. Como Gustavo, meu irmão, se não dividimos as mesmas roupas, parte das mesmas histórias, se não dividimos o que mais nos tornaria irmãos: o mesmo tempo? Gustavo, o menino na foto, poderia ser meu irmão, um irmão que eu até então desconhecia, morando em outro país, filho de mãe outra, assunto que sobre o qual à mesa não se fala, mas que inadvertidamente desliza pelo silêncio da noite, entrando por debaixo da porta fechada. Com Gustavo nunca briguei, Gustavo nunca precisei defender. Para mim, Gustavo nada representa, e sobre isso não há culpa, sensação ou sentimento de qualquer espécie. Nem mesmo a estranheza de um estranho ao esbarrar na rua, um ao outro pedir desculpa, seguir o caminho. 

-- Gustavo era bom garoto, não sabe? - lentamente coça com as unhas longas a carne flácida do seu pescoço, e faz algum silêncio. Alisa a cabeça rala de cabelos, e então cobre a boca com o punho. -- ele gostava de andar de cavalo em Passos. Era mais arredio que os cavalos. Bom garoto, mas desobediente, como a maioria dos bons garotos.

-- Quanto tempo faz, pai?

-- De nascido você tem o que, 26 anos? Ah, isso tem mais de 30 anos... 

-- Por que nunca falou dele pra mim? Paulinha sabe dele?

-- Sua mãe e eu começamos a criar um certo medo de falar sobre ele. De contar as coisas que ele fazia. De que as coisas que ele fazia pudessem seduzir você. Isso pode parecer estúpido ou radical, você pode me julgar, se já não estiver fazendo isso aí na sua cabeça. E não, Paulinha também não sabe dele. Foi uma coisa entre mim e sua mãe que foi simplesmente acontecendo, fomos parando de falar nele. Não queríamos falar nele mais. Quando vocês nasceram, nós definimos que não falaríamos dele mais aqui em casa.

Alguma coisa dentro de mim queria eclodir em uma rebelião, e eu podia sentir o gosto todinho de uma revolta pedindo licença pra amargar minha boca. Mas querer sentir uma revolta é querer uma revolta ilegítima, indigna, sem beleza alguma. Meu pai mantinha no seu tom de voz uma calma cansada, subitamente despertada pelo inconveniente daquela conversa. E ficou olhando pra mim, seus olhos fixos nos meus, sem dizer palavra. Eu olhava-o de volta, no que o tempo estranho daquele silêncio convertia num teatro de espelhos. Por alguns instantes cogitei que ele, depois de tanto tempo, pudesse estar procurando os olhos de Gustavo dentro dos meus. Fosse outra situação, quem sabe eu o encheria de perguntas, mas todo o seu hábito, todo o seu modo me reprimiam violentamente feito mágica, embora não fosse claro se ele estivesse realmente indisposto a falar sobre aquilo. 

-- É, meu filho, você tem um pai velho. Pode acontecer de um pai velho ter história.

Eu não conseguia me livrar da egoísta sensação de que meu pai me devia desculpas, e talvez eu estivesse disfarçando isso mal, o que não lhe intimidou. Recolhendo a foto com cuidado, ele se levanta da cadeira e vai até a varanda. Deita-se na rede e observa o sol pintar com sua luz dourada de fim tudo o que existe. 

-- Passe um café, meu filho, que daqui a pouquinho vou à padaria comprar um pão quentinho pra gente. Paulinha disse pra sua mãe que mais tarde deve aparecer, também. Acho que tem bolo no forno, veja aí se tem.

Fiquei olhando de longe a noite cair sobre meu pai, que cochilou brevemente e acordou num pequeno susto, calçando os chinelos e saindo de casa. Enquanto o esperava chegar, sentia a mesma noite crescendo por dentro da casa, e por dentro de mim.