domingo, 22 de novembro de 2015

Hipocondriose

As anêmonas
dançando nas
linhas das têmporas

Todos os micronanoatômicoorganismos desorganizados
ao fechar os olhos

com sua revolução em curso

os olhos, eles próprios
dois grandes, imensos vales
invertidos
escorregadio-movediços
e vigilantes
da vida que se movimenta
que passeia, sorrateira

A dor, a dor infinita que cabe dentro dos segundos
As cores redondas dos remédios coloridos
verde, branco, rosa, azul

O frio e o fogo disputando o corpo
o meu corpo, o teu corpo
quantas vezes por dia?

O alívio, o alívio infinito que cabe dentro dos segundos

O tempo é o meu assunto favorito.

quarta-feira, 18 de novembro de 2015

O hóspede

Primeiro ele me disse que eu não poderia sair naquela noite. Hoje você não sai, e foi, acho, a primeira vez que eu o ouvi falando comigo. Contra a sua vontade eu saí, mas ele me encontrou na rua, e me esgoelou. Marcus, tá tudo bem? Tatiana nada entendeu, eu disse que sim, vamo dar um rolé, e a gente saiu dali direto pro quarto dela, onde ficamos ocupados um dentro do outro das quatro às sete da manhã.

Foi uma noite relativamente tranquila não fosse o carimbo das unhas de Tatiana no meu pescoço, me contradizendo e atraindo os olhares do porteiro do prédio dela e das senhoras a caminho da feira às dez, na rua Dez. Eu falei que não era pra você sair, não falei?

Deve ser droga, né, olha só, é tão magrinho ele, e quando recobrei minha visão, três cabecinhas brancas, preocupadas e curiosas me bloqueavam do sol de dezembro e da minha respiração. Você tá bem, meu filho, tô sim, foi só uma vertigem mesmo, obrigado, e enquanto ia me afastando do chão onde quedei, ainda podia ouvir conjecturas pequenas sobre as unhas de Tatiana.

Mas aquilo era um aviso. E o segundo, conforme apontava o que me restava de juízo. Talvez eu tivesse motivos pra me preocupar, as visitas dele agora eram mais frequentes, mas a maior parte do tempo eu evitava pensar nisso. O que eu gostava de pensar era no gosto de Tatiana às cinco da manhã, nas viagens que eu nunca teria dinheiro pra fazer, ou em como é lenta a vida das tartarugas, avaliando a vida de todas as tartarugas que caminham lentamente sobre a terra pela vida da minha, Severina, que tem idade pra ser minha avó. E aí, Jesus multiplicou os pães e os peixes, e todo mundo pôde comer. Mamãe, Jesus é mágico? A menina perguntou, olhou pra mim e sorriu. Nem eu nem a mãe dela sabíamos a resposta. Pergunta de criança é mais difícil que pergunta de adulto. Olha, mamãe, por que esse moço tem cara de triste? Menina, fica quieta, desculpa, moço, e desceram dois pontos depois. É como eu disse.

Desviando de velhos e crianças curiosas, finalmente chego em casa. Já morei em tantas casas, mas o que me dá realmente certeza de estar em casa é o perfume da nicotina em todos os cômodos, que muito mais enfático que todas aquelas plaquinhas de madeira que se compram nas lojas de 1,99, avisa que aqui mora um fumante. Que aqui mora um fumante compulsivo. Um fumante apaixonado. Um fumante terminal.

- Seria mais fácil ter me ouvido, não seria?
- Quem tá aí?
- Para com isso, você sabe muito bem quem tá falando.
- Quero que você vá embora, ou eu vou chamar a polícia. Como entrou aqui?!
- Você é tão burro que ainda não entendeu, né?
- Não entendi o que?
- Melhor tu ficar esperto. É a tua vida em jogo. E eu ganho se você perder.
- Mas o que você tá falando? Oi? Ei, cadê você?

Do mesmo jeito que ele vem, ele desaparece.

Quando parei de cheirar, e isso já devia somar uns dez anos, saí limpo de tudo. Nunca tive dívida com ninguém, entrava e saía de qualquer lugar na maior tranquilidade. Mas diante de uma ameaça dessas, quem acionar? Polícia? A terapeuta que abandonei há dez semanas? Jesus, o mágico? Sem saber o que fazer, nada mais sensato que fumar um cigarro na varanda. E o maço, vazio. Merda. Dez andares sem elevador pelo prazer da nicotina perfumada e sorridente abrindo caminho com as mãos, feito uma sereia, por entre a flora negra dos pêlos do meu nariz e as formas estranhas dos meus próprios interiores por mim nunca vistos, porque a nicotina me conhece melhor que eu. Quando esse elevador volta a funcionar, seu Geraldo? Ih, seu Marcus, isso aí é com o síndico. Mas ele não comentou nada com você? Até o momento não. Tá certo, boa noite, seu Geraldo. Boa noite, seu Marcus.

Tá tudo bem, Marcus?

Já estava me acostumando com Tatiana enunciando nossos diálogos perguntando pela minha saúde. Dez andares depois, retornei a ligação evitada no sétimo andar. Sua voz tá péssima, você sabe, né? O elevador ainda tá ruim aqui, Tatiana. São vinte andares, se eu contar o percurso todo. Hm, entendi. Só liguei pra dizer que achei sua identidade. Ah, ótimo, eu nem sabia que havia perdido. Pela mudança de timbre, ela sorriu do outro lado. Boa noite, Marcus. Boa noite, Tati.

- Gosto quando você fuma. Você não deveria fumar, mas fica incrível quando fuma. Fica com cara de inteligente.
- Já mandei você embora, não mandei?
- Mandou, mandou sim, mas eu só vou embora quando eu quero. E agora eu não quero. Eu quero ficar aqui com você, na varanda. Podemos ser amigos, sabia?
- Não podemos.
- Claro que podemos. Um amigo nunca deixa o outro só. E é por isso que eu tô aqui. Tô contigo até o fim.

Fumo, ignorando a presença do meu novo amigo. Ele comenta alguma coisa sobre como são pequenas as luzes da cidade, mas o quanto a luz é a mais poderosa das forças, e faz mais alguns outros comentários pros quais não dispenso atenção. Pego no sono e durmo na varanda mesmo, e quem me avisa dessa inconsequência é a luz do sol, invasora, a mais poderosa das forças. Ele tinha razão.

- Olha, eu fiz seu café
- Não vou gostar de você por isso. Quero que me deixe em paz, e só.

Severina me olhando do canto da cozinha. Parecia cansada da minha lentidão matinal, e veio se arrastando, pré-histórica, na minha direção. O que será que Severina pensava de mim?

Confiro no espelho o estrago que o tempo sedimentou no rio assoreado dos meus sulcos de velho de quase quarenta e dois anos. Magro, ainda. Talvez pior porque magro, despertando a pena das crianças e dos velhos de passagem. Os poros pretos das margens, a barba rala, e a intimidade triste com o meu próprio reflexo é quebrada pela voz intrometida dele me avisando que hoje é dia de consulta.

- Hoje é dia de consulta, você se lembra, né?
Não respondo. Ele insiste.
- Hoje é dia de consulta, você se lembra?
- Sei

Ele desaparece.

A rua, tão cheia de cor. Minha camiseta verde fazendo par com as cores nas roupas dos bebês e das plantas e dos sinais de trânsito. Verde também é a cor da bancada do hospital, mas um verde clínico. A boca do doutor Andrade diz uma coisa, mas seus olhos dizem outra. Olha, Marcus, seria bom que você parasse de fumar, diz a boca. Olha, Marcus, você já visitou as Maldivas? dizem os olhos.

A rua de Tatiana é cheia de jacarandás. É tão cheia de jacarandás que alguém esperto o suficiente, ao invés de nominá-la com o nome de algum bandeirante, astronauta, governador ou médico, simplesmente lhe chamou de Rua dos Jacarandás. Na janela do segundo andar, Tatiana finge não me esperar, e sei que finge porque está maquiada, o que constato quando ela abre a porta com seu sorriso habitual, cheio de flores. Hum, tá cheiroso, a mão corre a cintura, automática, não mais que você, e demoro minha língua dentro da boca dela por alguns minutos. Foi ao médico? Fui. O que ele disse? Me perguntou se eu já havia visitado as Maldivas. Que pergunta estranha. Tô estudando, infelizmente você não vai poder ficar muito tempo. O que é uma pena, porque, pelo menos enquanto estou com Tatiana, ele não vem incomodar. Sem problemas, vim mais porque tava de passagem, e aproveitei pra pegar a identidade. Hm, ela tá lá no meu quarto. Em cima da cama.

Diferente da rua de Tatiana, a minha é cheia de pombos. E como já se sabe, os pombos fazem muita sujeira. Ficam aquelas nuances entre o branco e o preto, das asas que aninham o vírus que vai matar a humanidade à merda que eles acertam nos vidros dos carros inadvertida ou inevitavelmente parados na rua. Nada do elevador, seu Geraldo? Nada. Cento e oitenta degraus físicos para uma relação de mil e oitocentos degraus mentais. Abro a porta, ele fala.

- Precisamos ter uma conversa. Hoje.
- Não preciso ter conversa alguma com você.
- Precisa, sim.

Tudo o que sei é da insuportável dor de ouvido que sinto ao perceber Severina caminhando ao meu redor. É como se eu fosse capaz de ouvir o menor ruído, o ruído até mesmo do silêncio, e todos os ruídos doem. Estou acordado e deitado no chão da sala. Eu desmaiei. Ele me levanta e me leva para a varanda.

O horário de verão faz a noite chegar às oito e quinze. Vencido pelo cansaço, eu e ele ficamos fumando um cigarro na varanda.

- Desse mês você não passa. Desculpa te dizer.
- Mentira sua.
- Não, não é. Você viu. Eu ganhei. Tomei tudo já. Tô em todos os lugares.
- Você faz tanta questão disso assim?
- Não foi uma escolha minha.
- Se não é sua, é de quem?
- Quando a gente ignora um problema, ele cresce, Marcus.
- Você gosta de ser um problema pras pessoas?
- É a minha condição.
- Por que não escolheu ser uma flor? Um animal doméstico? Uma música!
- É a minha condição, Marcus.

O sol se posiciona no céu de maneira tal que tinge todos os vidros de todas as janelas de um laranja brilhante, e todas as janelas se olham e tremem no centro da cidade. É um belo espetáculo da luz poderosa. "É a minha condição", ele diz. E a minha, qual é? Esperar a morte me nocautear através desse monstro, que explodiu da laringe por todo o resto? E será que aceitá-lo faria com que se calasse, e me deixasse ter esses trinta dias decrescentes em paz? Quanto é uma passagem pras Maldivas? Sem saber o que fazer, nada mais sensato que fumar um cigarro na varanda. E o maço, vazio. Merda.

quinta-feira, 12 de novembro de 2015

Furta-cor

De costas à face oposta do espelho
Existe outro espelho, e no meio,
onde a luz cai bruta
nasce uma luz-fruta
a luz fruta-cor.

Do lado de dentro do espelho
Infinitiza outro espelho
de onde brota uma inexata trufa
Inexata, a trufa-flor

De que cor ficam os espelhos quando se olham nos olhos?

terça-feira, 3 de novembro de 2015

Depois do eclipse

Não que este seja um fato extraordinário, mas as coincidências são verdade. As coincidências, inclusive, costumam carregar verdades mais bem elaboradas do que pode imaginar a marcha lenta do cotidiano. Por isso me retenho, olho devagar: há sinais por toda parte. Por toda parte.

Ainda me são nítidos os joelhos proeminentes de Lúcia na varanda, aqueles joelhos colados, cascas de ferida recente, arranhões, e são aqueles joelhos a única lembrança clara que de fato tenho dela. Talvez ela usasse óculos, talvez não. Talvez usasse aparelho, talvez não. Talvez tivesse cabelos lisos enfiados na faixa; nada disso vou lembrar. Como Lúcia, toda vizinhança estava contando nos dedos quanto tempo ainda faltava para o eclipse. Um olho no relógio, o outro no céu. O velho Braga não saíra de casa o dia inteiro, disse que tinha de dar comida aos pássaros, que não gostava de eclipse. Foi o único. No imenso terreno baldio atrás de sua casa, os meninos se reuniam naquela tarde para folhear revistas de mulher nua. Eram cinco ou seis. Dona Esmeralda também espreitava, sentinela, a cabeça em bobes azuis. Dona Esmeralda era gentil e maternal com todas as pessoas. Foi dela que recebi uma afetuosa trouxa com bolos de castanha pouco antes de deixar a cidade. Seu Braga. Os meninos, imberbes ainda. Lúcia batendo os pés na varanda de casa, encolhida, o queixo nos joelhos. Há muito tempo eu não pensava nesse dia.

Uma vez ouvi dizer que só não conseguimos esquecer as coisas que, em alguma instância, nos traumatizam. E eu sei que mesmo o que é belo e bom pode traumatizar. Em alemão, por "traumm" entende-se sonho. Associação feita, é inescapável concluir que sonhos traumatizam, especialmente os mais belos. Sonhos traumatizam. Talvez só se trate de um jocoso capricho linguístico. Mas talvez essa via heterodoxa exprima a mais perversa natureza do sonho em si: sonhos são linhas mágicas costurando e descosturando as passagens por onde a beleza caminha. A beleza, traumatizatória.

Um a um, todos foram saindo de casa. A hora do eclipse, à vista. As crianças se empurrando em brincadeiras de rua, os adultos disfarçando suas próprias crianças em comentários superficiais com as mãos nos cotovelos. Chovia uma chuva meio amarelada, incerta, deixando o dia meio amarelo, deu na televisão que talvez a chuva comprometesse a visibilidade, mas em cada coração se sabia que não, e se sabia que naquela tarde sol e lua se beijariam por onze minutos, onze anos a idade de Lúcia na varanda, onze segundos o tempo total do gozo de um menino, onze minutos e todas as belezas do mundo se firmam e padecem. Onze os bobes azuis na cabeça de Dona Esmeralda, e onze também os pássaros prisioneiros e bem alimentados de Braga, o velho. O eclipse está no chão.

Onze minutos.

Só sei que se ouviu um grito vindo do terreno baldio. Não. Da casa do Braga. A vizinha o encontrou com um meio-sorriso terno e confortável e gelado, sentado numa cadeira de palha, as duas mãos nos encostos, feito um rei. Os meninos, que chegaram depois do grito, abriram todas as gaiolas, e foi uma pequena revoada de periquitos, canários-belgas, sabiás. Aproveitaram, ainda, para tomarem pra si as mangas, que de tão intensas, se desprendiam dos galhos da mangueira sem resistência.

 Dona Esmeralda nunca mais foi vista. Ninguém soube dela. Nunca mais cheiro de bolo de canela perfumando a rua, nunca mais favores, nunca mais bobes azuis na janela. Mas a ultima lembrança que tenho daquele lugar e daquele dia é de Lúcia.

Lúcia no centro da violência das belezas. Lúcia chorando, desesperada na varanda, e afastando de si as próprias roupas, tingidas no meio por uma mancha indissolúvel do que parecia ser o primeiro café do primeiro dos dias.