sexta-feira, 29 de janeiro de 2016

Herói

Infinitos símbolos de infinito. Pai e Mãe. Pai e Mãe. Pai e Mãe. Alianças de ouro grossas, finas, gastas; magros os dedos, grossos, peludos. Regina, Vania, Adalberto, Marquinho, Rosilene, Eu Amo Meus Filhos, Amor de Mãe. Do canto da testa ao queixo foge uma gota de suor do cara gordo que tomou um café da manhã ruim. Pronto. É o Adílson? Ele. Você tem uma antena pra reparar no seguinte endereço, às doze e trinta.

Difícil a passagem pela rua estreita pro carro. Ficou na rua anterior. Difícil de achar a casa também, todas parecidas. Campainha não tem, bairro humilde. Procura aí cara, vai que tem e tá escondida. Não porra, não tem. Dona Fernanda? Dona Fernanda? Aplaude a casa. Aplaude mais. Porra, odeio isso. Quem é? Oi, senhora, aqui é da SATELIGHT, Fernanda não chegou do trabalho ainda, quer deixar recado, fala que a SATELIGHT teve aí, brigado, vai com deus meu filho, brigado você.

Porra, perdi meu tempo vindo aqui. Teve mais alguma ligação aí? Não, telefone não tocou não. Ih, peraí, tá tocando. Ih, parceiro, depois a gente fala, tô meio enrolado aqui. Abre o porta-luvas, retira papéis. Vê aí qual é o próximo pedido. Ih mané, é lá em Jardim América. Porra, lonjão. Fica aonde Jardim América?

Trinta minutos dali, mas um carro varou uma moto no meio. Puta que pariu, que que tá rolando? Manuela e Fabiana talvez fizessem 18 anos em 2026. Agora, só ficarão os retratinhos na carteira do desesperado que gritava no meio-fio. Liga pra central e fala que o serviço vai atrasar. AS MINHAS MENINAS NÃO, AS MINHAS MENINAS NÃO, e a voz do homem ia sumindo conforme o carro ia transpondo o engarrafamento. Na cabeça, Adílson lembrou de um dia na favela, há um bom tempo atrás. Pisa no acelerador.

O lugar é esse aqui mermo, Dilso? Tá aí no pedido ué, deve ser. A casa é aquela dali. Interfone novinho. Quem é? SATELIGHT, senhora. Peraí um minuto que já vai descer, e segundos depois as pernas grossas da morena se revelam na escada aos olhos de Adílson antes de seu rosto, que é bonito também. Boa tarde, vamos subindo. Água? Não, brigado. Tudo bem? Tudo. Tô sem imagem desde ontem, a antena fica lá em cima, vou mostrar, ela sobe na frente, o short muito curto escapando o tecido da bunda imensa, Adílson ajeita a calça, quanto tempo não via uma mulher dessas na sua frente, Jardim América, quem diria, moço? sim, senhora, a antena. Não quer mesmo uma água? Aceito, sim. Do tempo que ela levou para descer e subir as escadas ele já havia feito o serviço. Agora a senhora testa lá pra ver se tá recebendo o sinal, um minuto e meio, mais um minuto e meio, tá sim, ah, que ótimo, bicho burro, poderia ter esticado o serviço um pouquinho mais. Tchau, senhora, qualquer coisa é só ligar que eu volto. Mentira, se ela ligasse, não seria ele quem voltaria, mas qualquer outro filho da puta mais sortudo, que às vezes a sorte escolhe os mais otários, e se despediu das suas panturrilhas ascendentes com o olhar.

MERMÃO, que mulher gostosa, tomar no cu, aquela dali eu como rezando, cala a boca, já entendi. Adílson era um cara muito sério mesmo. E agora, é pra onde? Pega aí a lista dos pedidos. Tá aqui ó, Andaraí. Que inferno, a água dela deu mais sede.

Um calor insuportável, o sol drenando as forças do corpo. Aquele uniforme quente e ridículo dos desenhos da SATELIGHT. Adílson não entendia o porquê do símbolo de uma galáxia no seu bolso, se a empresa mal dava conta das vizinhanças. Sentiu raiva do trabalho. Sentiu vontade de mandar o cliente tomar no cu. Boa tarde, senhor. Boa tarde. Tô sem recepção alguma de sinal. Já liguei diversas vezes pra SATELIGHT mas vocês não fazem nada. Espero que resolvam o problema e rápido, senão vou processar vocês. Sou advogado.

A casa do advogado é muito grande. Adílson é guiado pelo dono até a antena, mas o outro lhe puxa pelo braço. Você ouviu isso? Isso o que? Puxa sua manga e fala em voz baixa: isso. Adílson pensa ter ouvido sim, mas não dá resposta. Adílson, vamo embora, tem alguma coisa errada nessa casa. Você falou alguma coisa? Não, não senhor, só preciso saber onde tá a antena. É só subir essa escada.

É sério, Adílson, tem alguma coisa errada nessa casa. Você não ouviu uma menina chorando? Você tá é maluco, para de falar merda, não cara, não tô falando merda, se você é surdo problema é seu. Que papo é esse agora? Eu ouvi uma menina chorando. E daí se tiver chorando? E daí, que que tu vai fazer? Monitora a antena com um controle remoto, acerta os canais. Sei lá, cara, tem alguma coisa muito esquisita aqui. O SENHOR PODE IR TESTANDO A TELEVISÃO AÍ EMBAIXO, TÁ OK, VOU TESTAR. Um minuto. Dois minutos. Oito. SENHOR?

Não há resposta, Adílson desce as escadas. Vamo embora daqui, Adílson, na moral. Estuda a casa com os passos, desconfiado, onde está o advogado? Quando encontra a sala, encontra também o cadáver do advogado. MEU DEUS, SENHOR? SENHOR? Adilson pressiona as mãos contra o peito do advogado, reanimá-lo, senhor, não faz isso não. O que que aconteceu com ele? Morreu sozinho? Sei lá! Tá frio, não respira. Puta que pariu! Adílson... que foi? Eu ainda tô ouvindo a menina chorando. Para de falar merda, cara. Não, é sério. Tem uma menina chorando dentro dessa casa.

O homem frio não respira. Adílson pensa mesmo ouvir um som abafado pelo corredor. Morreu mesmo, o advogado? Tem mais alguém aqui? Realmente tem algo estranho na casa. Um quarto com a porta aberta, e o finado é um porco. Terno, gravata, e rabo. Adílson passa as imagens do computador, limpa as mãos na calça. EU FALEI que tinha alguma coisa fedendo a merda aqui. O som de choro insiste pela casa, mais alto.

A garota ainda tem as marcas das amarras no corpo todo. Adílson olha pra ela com pena, não teve muito tempo de pensar no que fazer quando a encontrou, nua e machucada. Ela ainda não disse nada. Espera que ele tenha morrido mesmo. O outro o deixou em paz, porque no carro só havia mesmo espaço pra dois. Pelo menos para alguma coisa nessa vida serviu. Mãos na cabeça, cotovelos no volante. E agora? Olhou mais uma vez pra ela, tão pequena dentro de uma camiseta do velho imundo. Tremendo, assustada, tadinha da menina. Aquilo era hora de criança estar saindo da escola.

quinta-feira, 28 de janeiro de 2016

Gosto de cereja - a poesia terrosa de Kiarostami, ou a estrada é infinita

Contém spoilers.

A primeira vez que ouvi falar em Gosto de Cereja foi numa aula de análise do discurso. Na ocasião, o filme surgiu como exemplo de poder semiótico através da ressemantização do percurso, mas em 2009 nada disso fez muito sentido. O nome do filme, no entanto, ficou gravado.

 Sete anos depois da referência, e quase vinte depois do seu lançamento, após procurá-lo web afora exaustivamente, por acaso o encontrei num desses sites de benfeitores anônimos que compilam títulos difíceis já legendados e em boa qualidade.

Daí vi Gosto de Cereja.



 Gosto de Cereja é um filme difícil de caber em qualquer definição, menos pela questão da sinopse que pela questão de sentido.

 A história parte de uma perspectiva relativamente simples: um homem de meia-idade quer se suicidar, mas para garantir o sucesso da empreitada, recorre à ajuda de um desconhecido confiável para finalizar o processo e, para isso, oferece uma boa soma. O que se desenrola daí é uma costura de situações que podem até ter um início cômico, mas cujo fim (?) é, certamente, singular.

 Uma das palavras que orientam esse belo road movie é perspectiva; bem antes, até, de que esta palavra surja no texto do filme. Perspectiva, quando se pensa no próprio intento de Badii, o protagonista. Perspectiva, quando há o embate - dito ou não - entre esse intento e o que pensam os homens que cruzam seu caminho. A perspectiva ainda se dá no visual, com as bem-executadas e sensíveis sequências de montagem na estrada, de onde se observa a pequenez do automóvel em relação ao plano vasto, aberto, infinito: o automóvel de Badii é Badii. A outra palavra é insistência.

 A estrada em Gosto de Cereja merece atenção especial - e é aqui que, hoje, aquele papo de poder semiótico faz sentido.

 Fica bastante claro que a insistência nela a transmuta em algo muito maior que ela mesma. Ela não é só o palco da ação: ela é a ação; não é só onde se desenrola a narrativa, ela é a narrativa. A pluralidade de elementos encontráveis nela é o que, em alguma medida, ensaiam uma traição ao objetivo de Badii. Ainda, a circularidade do percurso é o que também constrói sua infinitude, e quanto a isso, em Gosto de Cereja, o espectador pode experimentar a sensação de estar diante da mesma imagem repetidas vezes. Esse exercício de repetição pode mesmo ser lido como metáfora do absurdo da própria vida: por caminhos, pessoas e situações pelas quais passamos recorrentemente, mas sempre de alguma maneira, ainda que mínima, diferente.

 A montagem do filme explora a riqueza de sua capacidade multissemiótica. A posição da câmera dentro do carro é, por vezes, uma pista: eu e você também estamos no filme, e somos aqueles a quem Badii pede ajuda. Badii nos convida a sermos cúmplices do seu ato final.

 Existe um poema da polonesa Wislawa Szymborska intitulado Agradecimento, no qual ela explica o amor pela sua negação. Pois Gosto de Cereja faz algo parecido: ao insistir na morte como tema central, Kiarostami revela a beleza da vida. Mesmo o quê de incerteza que Badii salienta pode levar a crer nisso - reza a cultura popular que quem está cego na intenção do suicício, se oculta, e há relativa verdade nisso. Entretanto, ele recebe diferentes lições dos desconhecidos com os quais topa, sendo a última de uma beleza que exaspera: elegia ao poeta persa Sohrab Sepehri, com o qual o próprio Kiarostami teve contato em vida.

 Nos relevos infinitos, vicissitudes. Nas cores do horizonte, o Irã, metonímico. Nas portas, o céu. Nada em Gosto de Cereja é gratuito. Os planos-sequência, o texto, a escolha de localidade; tudo fecha num arco final que é tacada de mestre: Kiarostami nos informa, de maneira muito sóbria e seca, que nada daquilo é real. Já dizia o professor e crítico brasileiro Jean-Claude Bernardet, em O que é cinema: "Também nos dizem que o cinema reproduz o movimento da vida. Mas sabemos que não há movimento na imagem cinematográfica. O movimento cinematográfico é ilusão, é um brinquedo ótico. A imagem que vemos na tela é sempre imóvel." Porém, entretidos pelo enredo, nos frequentemente nos esquecemos desse fato, e é aí que Kiarostami nos acorda do sonho, com um balde de água bem gelado; ao mesmo tempo respondendo, de maneira direta, ao mesmo tempo, deixando muitas lacunas. Perspectiva, dessa vez, dos espectadores.

 Cinema corajoso, forte e, dentro de uma base constante, cheio de inconstâncias: assim é Gosto de Cereja.

 Por via das dúvidas, é melhor experimentar.

domingo, 24 de janeiro de 2016

quarta-feira, 20 de janeiro de 2016

É o que é

As cinzas do mundo no canyon de prata
enquanto ora aos párias e às putas
mais a história que pulsa
que a história que passa

Ao capricho lunar,
bom animal
ora se encolhe, itabirana
ora se levanta, marciana.

o corpo todo é boca
e também é monstro:
os braços de pérola,
as pernas de alcatrão

Seu altar é de acúmulo: rostos e espelhos
-- inevitável a vaidade enquanto virtude --
faz miséria do afeto pouco
não se demora em lugar pequeno

Vulva inteira em negação
Onde não cabe é na casa,
na cozinha, no chá de domingo, na sala de estar
na fazenda longa de remendos das roupas
do homem que não vai voltar

Tantas as terras pisadas por seus pés
mas, leves, fincaram raiz não
menos ainda renderam frutos:
bens maiores foram outros.

O elmo loiro em sua cabeça
conta, quase discreto
é a última guerreira
duma linhagem que finda nela,
que responsabilidade.

Guerreira só
conhece a lança, a flecha, a palavra
as muitas palavras vivas e mortas
porque os bens maiores foram outros:
o mundo sabe seu nome
ela abre todas as portas

Medo secreto das despedidas
O queixo altivo toma em lugar
De si sua própria gangue,
não dói o mesmo ferimento aberto por cinquenta anos:
As verdadeiras vikings não têm medo de sangue.


Para Elke Maravilha
obrigada por aquela tarde.

quinta-feira, 14 de janeiro de 2016

Autofágico

Imagina
que inusitado
se os cânceres
tivessem cânceres
e morressem
de si mesmos

Para Alan Rickman e David Bowie

Eles nunca vão me pegar, não

Copacabana sob névoa. Do meio da névoa, um grito. Pega ladrão. Do meio do grito, o fantasma de um menino negro, descalço, correndo em direção ao mar. Redenção. Os gritos insistem. O menino desaparece devagar, entre a névoa e o mar.

Que meus inimigos, tendo pés, não me alcancem.

Manipulação

Para cada verdade
há muitas mãos.

quinta-feira, 7 de janeiro de 2016

Intermitência de abstinência

Me fodia a noite inteira

E por 3 meses se abstinha

Como um soldado
Como um cigano
Procurando o que já tinha

Me fodia a noite inteira

E por 3 meses se abstinha

Como um marinheiro
Pago pelo mar
Pego pelo vento

Me fodia a noite inteira
A noite inteira

E por 3 meses se abstinha

As luas todas do meu útero
Mudando de tamanho e cor
Enquanto ele não vinha

Me fodia a noite inteira
A noite inteira

E por 3 meses se abstinha

E depois, um ano mais velha
O formato do corpo dele
memorizado nas entranhas
(Sozinho o corpo sabia)

Me fodia a noite inteira

E por 3 meses se abstinha

O quarto, aberto
Ao sabor incerto
A espera dormente do retorno
que não se anuncia

Me fodia a noite inteira

E por 3 meses se abstinha

Mas após muitos sóis depostos
Muitos sóis depostos
Reclamava sua carne dos pés à espinha

E me fodia a noite inteira
A noite inteira

e por 3 meses se abstinha.


Para Diogo.