terça-feira, 30 de outubro de 2018

I was there in the world

Eu também fui uma dessas mulheres que saiu de casa sozinha no dia 29 de setembro. Com um cartaz, sem adesivos, tomei um metrô que, já pelas adjacências, florescia todo em violetas, em rosas brancas. Meço a temperatura nos olhares, nos sorrisos; é amena, me faz sentir em casa. Há, ainda algo tímida, uma confiança compartilhada, silenciosa e tácita se espalhando na estação de Vicente de Carvalho. Vejo mães, filhas, avós. Conversam umas com as outras, fazem selfies, se abanam do calor que está chegando. Uma delas me dá um adesivo com uma mensagem.
Há que afiar os ouvidos para notar quando a vida ganha um corpo maior que o nosso e nos sussurra, bem baixinho, sua torrente de força. Sua verdade. Tomo o metrô, e meu olhar encontra o de uma mulher, que como eu, saiu sozinha de casa no dia 29 de setembro. Não precisamos, mas sorrimos uma para a outra, e tecemos o velho e necessário fio de prosa que nos mantém humanos. Ela me conta um pouco de sua vida. Também é da educação. Também acredita que pode mudar alguma coisa. Tem os olhos tão brilhantes, a boca pintada e um sorriso que vai se abrindo devagar. Próxima estação, Inhaúma. O vagão vai inchando de um enxame de caras e cabelos coloridos. Ela diz que não se sentiu segura ao sair de casa com uma camiseta que identificasse seu propósito naquele dia principalmente porque estava grávida. "Grávida?", pergunto. Sim, havia descoberto há 3 dias. Próxima estação, Maria da Graça. Uma pequena semente, ainda invisível a olho nu, crescendo dentro dela no meio de uma também crescente multidão em curiosa espécie de metagravidez, marias de tantas graças por ali. De repente seu marido, motorista autônomo, a encontraria mais tarde. Penso no meu pequeno sobrinho, e como certos pensamentos precisam virar palavra, falo um pouco dele. De alguma maneira, ele também está no tênis que calcei nos pés, no cartaz que escrevi, na minha decisão de sair de casa em 29 de setembro. Algo muito profundo está acontecendo, algo que a compreensão falha ao tentar entender.
Estácio, estação de transferência. Na capilaridade da estação em si, uma reunião de pessoas dos mais diversos matizes, idades, estradas. Uma turba dessas é um organismo só, a uma só voz, se orquestrando num ajuntamento que faz com que sua força supere até mesmo seu grande número. Saímos, eu na frente, que sei o segredo escondido dos olhos do resto, aquele pequeno feto em formação. Sem sexo, só o registro de uma existência em botão.
Próxima estação, Cinelândia.
Nada na minha vida até aqui foi como pôr meus pés na Cinelândia em 29 de setembro, ainda dentro da estação. Por algumas vezes na vida pude, sim, sentir uma forte energia, orientada por outras razões, fosse carnaval, jogo do meu time, uma procissão em direção à praia em dia de alto verão. Mas nada como esse dia. Uma horda de pessoas, corações em uníssono: Ele Não. A vibração me atinge da cabeça aos pés e me eletrifica, derrubando dos meus olhos fracos lágrimas sem resistência. Eu abraço minha companheira de percurso, e o clichê é a mais pura verdade: um mais um é sempre mais que dois. Nós vamos juntas. Nós subimos juntas essas escadas, de mãos dadas. Uma senhora pede licença. Penso em minha avó. Como pesam essas cores de esperança, uma esperança que, não havia me dado conta, vinha sendo abafada pela maré de más notícias. Com que intensidade me tomam. Vivi até aqui pra viver esse momento. A mulher é a árvore da vida, portanto a árvore da história. Talvez isso por si já fosse bonito o suficiente, mas nessa corrente humana experimentei uma coisa que mudou pra sempre minha relação com as outras mulheres. Cada uma, um espelho. E os espelhos, quando recebem luz, luz devolvem. Pequena, pude ser imensa, vestida do orgulho que só a consciência sobre o meu gênero pode me dar. Nunca antes amei tanto ser mulher. O Sagrado Feminino, meus caros, é real, e respira, e pulsa. Não se pode matar, não se pode controlar.
O resto desse dia estará fartamente documentado em fotos e vídeos propagados como fogo em mato seco nos jornais, revistas, portais de toda espécie e orientação ideológica. Essa é a grande história. Quanto a mim, posso dizer da pequena, que nem por isso é menor.

Eu avisei

A isenção imediata da responsabilidade civil dos votantes em Bolsonaro - e o que isto diz diretamente sobre o processo eleitoral
Praia do Leme, sol de primavera quente no rosto. Tenho minha leitura interrompida pelo ruído animado de uma conversa de três mulheres ao meu lado. Duas delas argumentam pacientemente com a terceira sobre eleições. A terceira pretende votar em Bolsonaro, e entre os medos que elenca, primordialmente se sobressai aquele do Brasil se tornar uma Venezuela no caso de uma possível vitória de Fernando Haddad. É quando, provocada, peço licença e entro no assunto. Sou bem recebida, e entre uma cerveja e outra (que elas me oferecem), desvelo um pouco da realidade daquelas mulheres que, como eu, não são moradoras de Copacabana, mas do subúrbio. Três mulheres absolutamente amáveis, expansivas, com históricos de vida relativamente semelhantes. Uma delas perdera um filho de 18 anos numa tentativa de assalto, e durante a conversa esse é um assunto que vem à tona em variados matizes, quer no registro da segurança pública ou na pura e simples saudade. Esta havia votado em Ciro no primeiro turno, e tentava convencer a amiga que Bolsonaro não traria a solução que ela esperava. "É só olhar pra ele, menina. Uma cara ruim, fechada; um tom agressivo até pra falar de coisa boa. Tá doida ela!". Mas a amiga insistia, e entre uma frase automática e outra desconversava, escorregando o tópico para a série na academia, o marido, os netos.
Umas das minhas decisões para tentar virar o jogo que infelizmente não consegui foi de me imiscuir em todo e qualquer debate ou promover o diálogo com pessoas que manifestassem simpatia pelo presidente eleito. Foi uma jornada entre barcas, metrôs, pontos de ônibus, vans, praias. A falta de intimidade com desconhecidos é uma ferramenta útil. Coloca o necessário muro social sobre o qual as pessoas geralmente se tratam com educação e ressalva, coisa que as telas dos smartphones ou o excesso de intimidade entre amigos não permite. Durante esse conturbado processo eleitoral, marcado por uma campanha evidentemente caluniosa, muitas palavras gastaram-se, e em algumas outras pouco se falou. Gastou-se a palavra "fascista". Gastou-se a palavra "nazista". "Racista" também entra nessa conta, e o flagrante desse desgaste é notório (e preocupante) quando eleitores de Bolsonaro conseguem incluir, no mesmo campo semântico que estas, a palavra "taxista". Mas chamo atenção aqui para o maior desgaste que pude observar no período que, dois dias após a eleição, mostra sua esperada face: a nulidade da responsabilidade discursiva, a grande protagonista das eleições no Brasil em 2018. A isenção imediata da responsabilidade civil dos votantes em Bolsonaro.
Isso fica bastante claro na grande festa realizada em alguns lugares no Brasil. Na Barra da Tijuca, Rio de Janeiro, bairro onde reside o futuro presidente, testemunhou-se uma cena comparável apenas à que seria possível caso o Brasil não tivesse sido eliminado pela Bélgica nas quartas da copa do mundo, em junho. Porque se tratava precisamente disso: jogo e fé. Assim, fica claro o papel da política para quem elegeu Bolsonaro. Estes indivíduos levam a política literalmente como uma partida de futebol, que acompanham devidamente uniformizados. Encerrados os 90 minutos - cabe dizer, de um jogo crivado de faltas graves, muitos cartões vermelhos e amarelos, arbitragem absolutamente questionável - sequer há possibilidade para os acréscimos. Voltam pra normalidade das suas vidas, porque afinal, nunca foi sobre discussão de propostas, combate à corrupção, engajamento real (sobretudo físico) troca de saberes. Numa conversa que tive com um amigo, tentei mostrar a ele que não, futebol, religião e política não podem estar no mesmo domínio porque política é ciência, e deve ser sempre discutida como tal: com fatos, dados, análise de conjuntura histórica, leituras obrigatórias; ponto que reforcei exaustivamente durante os últimos meses em outras conversas. Sem muito sucesso, como visto.
Decerto: erros foram cometidos dos dois lados. Lula e Bolsonaro se transformaram no que pior podiam para qualquer debate que se pretenda verdadeiramente político: mitos. A criação do mito dentro do espectro político enseja, sem surpresas, uma guerra puramente egóica na qual falta substância, sobra meme e pela qual todos pagamos, aqui e ali com pequenas diferenças. Autocrítica, ao que parece, nunca foi uma palavra tão distante e nunca antes todo um país precisou tão urgentemente ir para o divã de maca. Entretanto, é digno de nota o comportamento do eleitor regular de Bolsonaro no que toca a responsabilidade civil de seu voto: para eles, acabou na urna, e que o mito faça, sem supervisão, o que prometera - afinal, basta a confiança depositada na urna, num número, o número em si uma abstração.
Hoje pela manhã mandei, por whatsapp, uma mensagem para minha amiga da praia que votou no candidato vencedor. Na mensagem, constava uma declaração formal de Maduro, então presidente da Venezuela, felicitando o presidente por sua eleição. Anexei à imagem um comentário, "é possível que isso te interesse", e a resposta foi que eu estava equivocada, afinal, ela era brasileira, e não venezuelana, e que era melhor parar com esse papo chato. Pela internet, vi comentários no mesmo tom, "avisa que a eleição já acabou", "chora mais", "é mimimi de perdedor". É disso que se trata: o mito produz o mimo. O que as pessoas que votaram em Bolsonaro não parecem entender é que a eleição é apenas um momento de um processo democrático contínuo, e que demanda vigilância constante. O debate faz parte disso, naturalmente, mas o que esperar dos eleitores de um líder que limita sua projeção no grande (e no pequeno) ecrã, um líder quase holográfico?
É natural o reflexo do comportamento de um líder como esse em seu eleitorado. Mas transformo numa pergunta a afirmação de um artista contemporâneo: será que meninos mimados podem reger a nação?

domingo, 16 de setembro de 2018

Perto do real

Debaixo
das muitas águas que cobrem o umbigo do mundo
há anos se confundiu a cidade perdida dos atlantes
com a arquitetura enigmática que deixou
o rastro de uma imensa criatura
imenso seu rabo de fogo
espalhando luz e morte e vida naquele dia

Aqui havia um cravo
um temível cravo feito de poeira e trânsito
cozido em gordura e sangue
que espremi até o último golfo com a pinça das unhas
até que restasse apenas a
impressão vermelha da força dos dedos
tão hábeis e impiedosos

extinto o cravo, por certo extinto
não leva consigo sua casa

Quando é frio
na cicatriz da dor eu sinto
só alguma coisa
não incomoda não faz rir e nem machuca
qualquer matéria escura
que recusa a palavra
só alguma coisa onde houve
uma colônia de pérolas
operárias formigas brancas
roendo meus órgãos
eles se lembram
sem boca emitem
isso que percebo como
espasmo de nada no vácuo
cicatriz da dor
eu sinto

O acesso à nuvem é íngreme
cada passo cadafalso

uma constelação pálida no seu sorriso
o último mês de três, eu não sabia
o que você soube no primeiro dia
mesmo ali, no afobamento
a posse falsa
uma borboleta noturna
desmaiada na grandeza da tua mão

perdi um dente e um brinco de ouro
no espaço de um beijo
já faz alguns anos mas
nus os buracos
uma evidência
querendo ou não
me lembro.

terça-feira, 14 de agosto de 2018

Soltas

Que desmoralização ser sonâmbulo em público. É como tomar banho no meio da rua.

Tudo me afeta. É uma prisão terrível, terrível.

O único equilíbrio empírico é aquele que se prova nas aulas de química.

Respeito tanto o outono carioca que quando ele finalmente chega eu visto tudo que tem no armário duma vez só pra ele ver que fiz-lhe os ritos.

A palavra infinito tem 8 letras porque nada é por acaso.

A palavra é o único assunto do qual se pode falar por uma vida inteira sem incorrer no risco do monotemático.

Só hoje de manhã cheguei à constatação assustadora que o mesmo assombro que me causa o cosmo me causa também a palavra.

O problema é que ele não tinha aprendido a valorizar o alívio.

Falar até falo, mas por trás da palavra estou muda.

O critério é uma porta giratória.

A loucura não é mais que a perda gradual ou imediata da linguagem humana.

Talvez se chame fórceps o nome do procedimento operado pelos escritores que destranca o jorro incontinente nos leitores que não se desconfiava por lá.

Fico desabrigada sem uma caneta azul.

A paráfrase é a invenção do que não existe.

A palavra é instrumento tão instável que a qualquer momento pode se transformar em anti-instrumento e se lhe servir toda em contrário.

O fogo é a mais bonita das criaturas.

As coisas invariavelmente acontecem muito mais rápido do que qualquer um pode entender, porque naturalmente ninguém é deus.

Não me lembro onde ouvi que a edição está muito próxima do cacoete.

Os filhos brincam de apnéia na piscina enquanto a mãe corre o risco do afogamento.

Depois dessa prometi a mim mesma que serei capaz de deixar nessa terra metanos melhores que você.

As pedras submersas são de outra família de pedras. Demora até que se entenda seu metabolismo. Diferentes das pedras criadas em terra seca, ganham guelras discretíssimas e olhos membranados por uma camada fantasma de água, de onde observam, espectadoras máximas, a vida que corre tão devagar no mundo. A água imortal lhes enovela ensinando a paciência; à pressão infinita dos anos inteiros mergulhadas na imóvel vida molhada respondem redondamente.

O clitóris é o sino no topo de um templo.

Não é porque sou mulher que eu escrevo com as entranhas. Eu escrevo com as entranhas porque sou uma mulher feita só de entranhas.

Se a opção for uma, deixa de ser opção. Opção é bando bandoleiro de vampiros da vontade.

Poder extremo dado a umas criaturinhas tão pequenas olhar para o céu e inferir o passado violento dos astros.

Perder um concurso de poesias é o fracasso mais digno que existe.

Uma das minhas militâncias mais aguerridas é pelo direito de não ter resposta o tempo todo.

É de madrugada que os canais da cidade se lembram da genealogia antiga de suas águas anteriores. Chiam tanto para fazer ouvir o choro próprio de água criança que se desgarrou demais quanto para atestar que ali ainda é água de rio debaixo do entulho grosso da civilização.

Nem adianta tentar levar só a minha boceta. Eu vou com meu sexo.

Maternidade é o nome do paraíso do qual todo mundo dispensa padecer.

O que será que passou pela cabeça dos dinossauros naquele dia?

Me dá preguiça e fome o coração hermético.

Já sabe que a felicidade é um estado, e não uma condição, Marina; a felicidade que você sente é uma nostalgização do presente.

Contemplei as ilhas. Dos arquipélagos às ilhotinhas. Por menor que seja uma ilha demorou pares e mais pares de séculos pra nascer e por isso já nascem velhas com o preço da maturidade do individual em riste: romper a casca das águas.

Porque é a vida o mar criou pêlos em sua epidérmica robustez de réptil e lhe emprenhou de milhares de conchas, o mesmo mar que pacientemente lhe roía a forma também a concedia num esmerilhar intenso e especial, sem sossego e sem excessos.

Assim também eram como as pérolas, a ostentação duma inflamação perfeita.

A minha felicidade era tão anômala que necessariamente me constrangia.

A minha felicidade parecia um beija-flor sonâmbulo às cabeçadas no colo das flores.

Nemesis

Nosso assunto começa na boca.

Se teu ofício te encarrega de deliciar o que entra por ela, improcedente não seria dizer que o meu me responsabiliza pelo deleite que o que sai da minha pode provocar. Sim, aqueles que visamos encantar pela boca, devemos impressionar considerando nossas então diferenças quase fundamentais. Tu precisas colecionar essas bocas, em criar e aprisionar matemático dentro delas para assim traduzir nelas o que é o gosto do afeto; elas vão descobrir teu dote na adivinhação molhada das línguas. Tu entras. Meu movimento é inverso, é de expulsão. Preciso aprender, cada dia o primeiro sendo, como concentrar a força, de que maneira pesar cor e tom de cada palavra escolhida, que uma vez fora de mim, não me pertence mais.

Somos terminantemente cientes: o ponto errado (coisa de tempo a mais, ou a menos) avaria o resultado. Mas até falar nisso é complicado: seja tu nos estômagos, ou eu nos ouvidos, só algum aspecto sacerdotístico para nos nomear conquistadores máximos em nossos (a)fazeres. Precisamos languidamente, cada um à sua moda, descortinar o histórico que guarda abaixo de si os sentidos dos que nos requisitam; tateá-los, com ritmo e intimidade, até a submissão, voluntária e declarada. O percurso é exatamente o mesmo, do mais simples ao mais refinado paladar. Magia existe, e acontece assim. Lhe arrenegam os que nunca foram tocados por ela. Alquímicos, nós? Não duvide.

O nobre de nossas tarefas se deve à obrigação compulsória aos nomes que nos antecedem. Ou como honrar consciência e caminho ao dividir o mesmo nome de oficio que Atalla, de Szymborska? É maior que nós o fato: consciência obrigada e debitada de si mesma. Exigências. Tua natureza profundamente discreta desmente tua anarquia verbal. Eu sei, não terás como te defender: ambicionas o celeste das bocas, desde a fruta escolhida com o máximo do olho; o odor dos temperos estalando tuas analíticas narinas adentro. Mesmo com as horas pesadas em tuas costas (largas), a carência completa de noção de quem é míope à tua arte, inspiras o coentro, os cogumelos frescos; tomas de empréstimo o sabor do caldeirão no canto da palma da mão (suave batida da colher-de-pau), deslizas o dedo experiente nas rapas dos tabuleiros, porque sabes o que fazes. Assim, amor, faço com as palavras. É seleção tão difícil quanto, tão próxima quanto. Antes, eu costumava pensar que meu trabalho se parecia mais com o de um estilista, em Balenciaga eu pensava, em Chanel. Afinal, eles também sabiam a importância da precisão de um ponto. Mas pousei meus olhos em ti, e entendi. Como não entender?

Como não entender? Tu dentro; eu, toda fora. Se eu preciso de expansão, se preciso de dois ouvidos (e com isso a exponencialidade por si só já diz do resto), tu atomizas: uma língua bem papilada e está feito. O que fazemos, aí e aqui, é integrar nossa matéria a cada fibra de quem atingimos. As palavras que saem me custam horas debruçada sobre a indecisão, e para todo o visível há muitas sombras de renúncia, momentânea que seja (o descarte é sempre algo momentâneo). Não é também assim quando tu crias? Sabes o que funciona e onde, mas me diga como, sendo quem és, (sendo quem sei que és), como não amar o desconhecido, por que não a ousadia, por que não a assinatura? E assim, depois de tantos passos roubados, aí e aqui, se consolidam duas órbitas colisivas. Porque sim.

A cozinha e a palavra são os duplos perfeitos que nós mesmos somos.

domingo, 22 de julho de 2018

As Beatitudes - 1

A vista turva
de borboletas explosivas
em cada choque
chuva de asas

Debaixo das idades
do meu umbigo
é por onde ando e sempre andei
Meu corpo me sabe antes
bota um viço em minha boca
o viço molha as ideias

Na intermitência do mundo
um céu todo negro
sob a carne grossa do olho

na revoada da vista
estou sentada na pedra
dura
pérola do mar na beira
e fico vendo a lua

ganhando a matéria da cor conforme gira a terra

me toma pelo braço o chão
sem que eu caia
- não,
me toma pela mão, elegante,
e segura meu dorso,
me desce dessa nuvem de pedra

agora, o corpo já todo mina
água pura pelos poros
cristalina
eu descuidei, entrou ela
a serpente cheia de esporas
desmedida e sem medo
de perder sua unidade enquanto
no sul de meu tronco se espalha
e me cavalga toda

cada repuxo de seu rabo
um lanho dentro
das minhas coxas queimadas
por si mesmas queimadas
rastro negro das carnes que se mordem no calor - ai, carnaval!
dois peixes tão iguais em grandura
se destruindo, vermelhos galos premiados
aquário, cemitério
há penas
bolhas

me alcança a cabeça
essa esfinge, que dona
nada me pergunta
manda
e se me manda pensar
eu penso
e se me manda cuspir
eu cuspo
desfolha meu peito atrás do músculo
busca facínora pelo ápice da vida

-agora!
-sim senhora!

no caminho (da volta)
morre muda, me despossui,
abre qualquer porta por onde sai
arrastando o rabo evanescente
retorna ao nada donde veio

no entanto, jamais lhe penso aniquilada
por hora ausente, jamais aniquilada
estando sempre
à pequena distância de um discreto chamado

quando me sento
na minha doida língua
do diabo

quarta-feira, 23 de maio de 2018

Alô, Clarice? ou 55 teses

1. Dá mais trabalho andar erguida.

2. A cozinha da minha casa é uma área militar de controle alimentar regida por cinco espelhos.

3. Me dá vontade de fumar aquele quando ouço as sirenes.

4. Ontem esqueci que estava de dieta e comi pequenos punhados de chocolate na ponta de uma faca.

5. Meço a experiência dos pombos pelo tanto de cacarecos que carregam agrilhoados às suas patinhas imundas.

6. Esquizofrenia ou espíritos indiscretos?

7. A hora não existe.

8. É difícil organizar a matéria diante do excesso de sintetizadores nos shows das bandas mais modernas.

9.Também acho de bom tom considerar alguma caduquice do cânone.

10. Tudo o que eu boto na boca tem um gosto infantil.

11. Quero conhecer a constituição das coisas por isso as queimo.

12. Lavei até o prato no qual você não comeu.

13. É excelente à saúde da vista uma laranjeira bem carregada no quintal às quatro horas.

14. A extorsão acontece quando o poder dá cria.

15. A cabeça e o corpo padecem juntos.

16. Quero conhecer a constituição das coisas por isso as como.

17. O corpo tem muitas portas, mas mais numerosas são as chaves do lado de fora.

18. Tenho medo de ter razão demais e meus dentes passarem a revirar a terra.

19. Não se pisa no mar de sapatos, é falta de educação.

20. Não se pede licença às metáforas, é falta de educação.

21. Às vezes as pessoas mentem por prudência.

22. Não se pisa em ovos a menos que se seja Bataille.

23. Um dia tranquei a porta do meu quarto e fiquei batendo nela do lado de fora.

24. As chaves mesmo estão todas do lado de fora.

25. Domingo ela não vai, mas talvez vá segunda.

26. Andar erguida implica decivilizar placas inteiras de anos de timidez.

27. As avós não são as melhores pessoas do mundo, mas bem que tentam.

28. Fico alguns sorrisos mais rica quando chega carta tua.

29. No exercício da preguiça vai uma boa dose de prática.

30. As melhores poesias vão desvendar o metabolismo dos átomos.

31. O mofo no banheiro é uma gestação infinita.

32. A prudência é um sintoma de civilidade bem implantada.

33. A palavra é simples. Quem lhe complica é a tradução.

34. Mas para isso se usam saltos no tango, é mais que uma convenção, é realmente uma correção ortopédica.

35. Por hoje não escrevo mais nada. Nada.

36. Tudo permanentemente está. Nada também.

37. Os amantes compõem a espécie mais bélica do mundo.

38. Dia desses troquei todas as minhas chuvas pelas roupas secas no varal.

39. Todas as coisas geniais que eu pensei há dois minutos sem querer sumiram. A genialidade é isso: dura dois segundos, e passa.

40. Tudo que eu leio me emprenha um pouco.

41. É correto afirmar que também o tempo é sem pé nem cabeça.

42. Até para pedir silêncio é preciso da palavra.

43. Um dia todas as palavras fugiram de mim e passei quatro dias no CTI procurando-as desesperadamente calma.

44. Minha boca assa quando falo demais como deveriam todas.

45. Toda comissão parlamentar de inquérito é uma epopéia de mal gosto.

46. A palavra "olheiro" é muito interessante.

47. Ela está tomando banho do outro lado da calçada. Ou está tentando. Quando passa um homem ela tenta, sem sucesso, fingir que faz outra coisa. Ela não tem direito ao mistério. Nem direito ao vizinho que lhe espreita a nudez de longe, do outro lado do apartamento. Sem direito às coisas que se podem fazer no banheiro. Sua intimidade é desossada a cada deslize lento do sabonete que emplastra sua pele de bolhas secas e acinzentadas.

48. Desconfio da natureza escura de toda matéria que requer que eu lhe experimente pelo toque.

49. O cinto no entorno de um homem nu é disfuncional a menos que afivele-lhe o pescoço.

50. Já ouvi barulhos que fizeram espumas enormes.

51. Das maiores humildades que conheço consta aquela na qual a pessoa voluntariamente abandona o desejo de domínio da palavra. É geralmente assim que se lhe conquista.

52. Ainda encontro de onde vem esse cheiro.

53. O esqueleto carbonizado de um sofá é uma demonstração violenta de destruição.

54. A palavra é uma arma de criação em massa e de destruição também.

55. A palavra é simples. Quem lhe complica é a cabeça.

domingo, 13 de maio de 2018

Pra desfilar na Mangueira

Não sei de onde veio esse delírio. Sequer passei pela Tijuca, faz tempo não volto os olhos para o pombal à esquerda da saída da estação do Maracanã onde você morava em condição tão solteira: o colchão de casal gasto no chão, alguns livros guardados em caixotes de madeira, outros espalhados por um quarto no qual, na ausência de um armário, você organizava suas peças de roupa em uma arara de metal simples herdada da exposição de um amigo. Meias seriam um problema se você usasse. Falando nisso, percebi que você até tentava manter alguma ordem na disposição linear discreta dos sapatos no canto esquerdo do quarto, mas porque precisava trabalhar e ir à praia e ir a outros lugares que nunca saberei, o jeito desconectado como se encontravam parecia dar continuidade inanimada à tortura dos seus passos. Na pequena sala, uma bagunça sem fim e becks por toda parte. Também havia um aparelho de som, herança de outro amigo, você contou que quem tinha amigo não morria pagão. Daquele dia nesse apartamento, herdei o zumbido da final do Flamengo contra o Fluminense e dos 3 álbuns do Pixies que ouvimos em sequência (enquanto produzíamos, nós dois, nossa própria orquestra sob a franja do som ao redor.) Nada digno de nota, só fui tentando remontar algumas das horas mais recentes que passei contigo para entender de onde veio o delírio. Entender o delírio, veja só. Nunca disseram que seria simples a emoção do ponto de vista de quem nasce sob a lua em exílio. Gosto de pensar (ainda) que o horóscopo e Shakespeare explicam nosso desarranjo. Melhor dizendo, meu desarranjo contigo. Melhor dar descarga. O horóscopo tá na moda, por isso todos os dias vemos resumos das nossas vidas em colunas nos jornais que parecem prateleiras. E Shakespeare é moderno, usava brinco na orelha, como você. Vocês dois, culpados.

Eu vi você desfilando ao meu lado na ala dos compositores da Mangueira num carnaval em suspensão: não aconteceu e não acontecerá. Apesar de nunca ter demonstrado, não tenho dúvidas que você sabe sambar. Há mais malevolência nos atos que julga nossa vã filosofia, e fosse na preparação de um drink, de um prato ou de uma sinfonia, lá, cravejado, estava o samba que você deixava escapar. Você, no delírio, gingava, botando pra gemer essa voz extrema abafada no calor da cozinha industrial dos dias comuns -- há algo fundamental escondido no silêncio dos seus sonhos fervidos -- e quanto a mim, fui beneficiada pelo sangue. Sambar na avenida não é tão misterioso assim. A imagem é bonita, acredite sem muito critério: sapato bicolor, chapeuzinho vagabundo, calça branca e camisa verde-e-rosa, os dois na avenida, pra desfilar na Mangueira em um delírio enrolado em cetim barato. Talvez pra não azedar a beleza da imagem com hipóteses mais dramáticas, essa foi a única cena que o delírio me deu. Sem discussões anteriores sobre desfilar no Salgueiro, conforme talvez eu quisesse; sem discussões entre a escalação do Flamengo após a saída do Muralha e uma possível diferença de desempenho e resultado na Libertadores no caso de uma melhor direção do Vasco, sem discussões sobre o mistério -- esse sim, o maior deles -- do que acontece contigo entre março e novembro. Nós dois, sapato bicolor, chapeuzinho vagabundo, calça branca e camisa verde-e-rosa, os dois na avenida, pra desfilar na Mangueira em um delírio enrolado em cetim barato. No recuo, Shakespeare, enfim, nos espera num púlpito. A gente aceita.

quarta-feira, 9 de maio de 2018

Sei lá, essa afirmação metafísica

A associação instintiva que fazemos entre as palavras velam filosofias secretas sob a desatenção, ou sob a urgência da comunicação, naturalmente. Aqui, valho-me de um desses pequenos brilhantes sob a poeira da funcionalidade da linguagem para demonstrar o que digo: a expressão 'sei lá'.

Sei lá, essa afirmação metafísica em si, e também metatemporal por supuesto. É uma das mais corriqueiras expressões em português, transitando tranquila entre todos os estratos sociais. Qualquer brasileiro ou brasileira conhece seu contexto e uso, mas rompo com o vício pragmático para dar vazão a uma despretensiosa divagação.

Sua noção registra, no presente, uma espécie de consciência sobre uma razão ainda desconhecida por nós que, para isenção inconsciente da ignorância, lançamos mão. Assim, dizer "sei lá" não é o mesmo que dizer  "não sei": enquanto este afirma a negação do conhecimento, o outro de certo modo o adia, não dando o braço a torcer. Também é diferente o uso de "vou saber (lá)" em relação a "sei lá", a começar pelo fato de que a primeira se trata de uma expressão com posição e contexto claros, também reconhecíveis por todos os falantes de língua portuguesa. Desmerecidamente, o contexto no qual se aplica "sei lá" pode vir imbuído em algum desdém, o que pode (quem sabe?), refletir nosso incômodo com nosso presente estado de ignorância e inveja do tempo em que sabemos. Com relação ao advérbio locativo, o "lá", o palpite é de que sempre seja uma referência ao futuro, e não ao passado, como sua abertura semântica pode nos levar a considerar. Porque, se sabemos de alguma coisa, usaremos esse conhecimento na resolução de algum problema -- essa é uma das funções da experiência -- e o que contrapõe o uso entre "sabia lá" e "sei lá". Por este motivo quando, diante de um problema, respondemos "sei lá", estamos dizendo que a resposta está no futuro, e que nós já a conhecemos. Uma coisa meio A chegada, filme de Denis Villeneuve.  

"Sei lá" é saber em outro tempo, e o reconhecimento de que sabemos disto agora, o que me provoca e me convida a uma revisão na linearidade do tempo. A literatura científica é prolífica quanto a possibilidades de viagens transtemporais, mas não há notícia, até o momento, de sua factibilidade. Avanços científicos podem provocar grandes mudanças na língua, mas o balé semântico que existe nela -- e seu crescimento exponencial -- é suficiente para gerar constrangimento à mais avançada das ciências.

É algo injusto que as palavras sejam surdas para si mesmas ao mesmo tempo em que podem produzir tanta coisa de modo inerente. Me perco pensando num velho cantor de blues surdo-mudo a mendigar por centavos enquanto desencrava, do silêncio, as mais belas canções; ele mesmo não podendo ouvir os próprios acordes não que aprendera a tocar, mas que (como se fosse possível) sempre soubera.

sábado, 17 de março de 2018

Todas as ruas da cidade se chamam

Todas as ruas da cidade se chamam
A cor da guerra cheirando aerosol
O leite amargo da carne mais barata
em procissão gritada
Cada abraço um paiol

Todas as ruas da cidade se chamam
agora, a microcidade da origem
que no nome bagunça as águas
e no avesso de atlântida
EMERGE
Todas as ruas da cidade
seu endereço fixo

Todas as ruas da cidade enxame
Todas as ruas da cidade cardume
Fosse possível um mar dentro
De outro mar
Em cores graves e diferentes

Todas as ruas da cidade em chamas -
delírio, sonho
já que são tão distintos os ossos
humanos dos ossos
das catedrais

Todas as ruas da cidade
registram tua presença
se para uns a luta é vã
e pra outros questão de vida
a quem carrega o mundo no colo

é condição de nascença.








Marielle Franco VIVE.

sábado, 24 de fevereiro de 2018

Que mundo maravilhoso! / Carta ao pai

Vejo árvores verdes, rosas vermelhas também

Uma tempestade desliza pelo céu como quem adentra uma igreja, sufocando a luz com as mãos. Ele insiste comigo, você está preparada para a grande viagem?, mas meu braço é teso do outro lado: já não estamos em curso, meu pai? No seu rosto, um sorriso em falso. Ele toma a minha mão livre -- na outra, está a metade de uma maçã. Vamos ter que vender o carro.

Eu as vejo florescer, pra mim e pra você

Há suor onde seus músculos dobram; não é difícil encontrá-lo suado, sempre na confecção incansável e quase viciosa de pequenas banquetas de madeira que, nos últimos anos, dedicava-se a talhar. Como, há algumas décadas atrás, também o fazia seu pai. Rodopiamos em franca descoordenação pelo chão branco, dança esquisita e sincera, tentando acompanhar a música que tenta nos ajeitar. Ele tem os pés imundos.

E eu penso comigo

Como assim vender o carro? Mas ainda não estamos pagando? Isso é fácil, só preciso ver quanto falta, fazer uns cálculos. O silêncio não é possível; não com aquela voz negra misturando sua graveza com a gravidez das nuvens. Nas nossas cabeças é que chove. Tá difícil, sabe? Não tenho mais de onde tirar. Não sei o que dizer, e prefiro me privar de dizer o óbvio. Tem outras coisas que estou pensando -- num movimento brusco, ele enverga minha coluna. Ah, é? E o que seriam? Uma trovoada seca substitui sua voz.

Que mundo maravilhoso!

Pelo menos ela chega amanhã, né? Ah, com certeza! Tô doida pra ver a barriguinha dela. Será que é menino ou menina? Eu sonhei que é menina.

Vejo céus azuis e nuvens brancas

Um dos meus chinelos se arrebenta por completo com o peso de uma das passadas, fazendo com que eu me livre de ambos, chutando-os em qualquer direção. No chute, perco o equilíbrio sobre a maçã que cai, newtoniana. Pai, nós somos péssimos dançarinos. Ele não responde. Continuamos dançando, fazemos troça, agradecemos à invisível platéia pela atenção dispensada, também envergo sua coluna. Trocamos de lugar várias vezes. É engraçado como ele me chama de mãe. O céu se tinge de um repentino e instável mormaço dourado.

O dia claro abençoado, a noite escura sagrada

Imprimimos discretas linhas de nossos volteios no chão. Aqui jaz a marca mística da dança: se o chão se convertesse numa grande cartolina, o braço forte encontraria no garrancho uma rima interessante. Acho que assim vai ser melhor pra sua mãe, também; ele salienta, se justificando. Cada um vai poder viver da maneira que achar melhor, sem ter mais que se magoar, sem precisar se deslocar pra encontrar quem quiser. Em suma, vou sair do caminho dela. E com isso, sai do meu também? Minha filha, você já tem quase 30 anos. Não precisa mais se preocupar com isso.

E eu penso comigo

Envolvo seu pescoço com meus pulsos e diminuímos o ritmo da galhofa: a música parece nos encontrar. Fecho os olhos e olho para baixo, meus pés pequeninos sobre os dele, a unha do dedão do pé esquerdo sempre encravada e feia demandando cuidados; meus joelhos não dobram, ele é a dança, ele é a música. Me falta o dente da frente que há 30 minutos ele arrancou amarrando-o a uma linha em conexão à porta da sala. Eu já parei de chorar, mas ainda está doendo.

Que mundo maravilhoso!

Pai, não é justo você fazer isso. Eu entendo suas razões, mas isso não é justo, não é. Ué, minha filha, e que outra solução você vê? Você entende que não tem mais cheque especial? Que ou é isso ou podemos perder a casa? Eu falei com algumas pessoas. Não queria isso, na verdade é meu último tiro, mas talvez eu volte a trabalhar em ambulatório. Pai, escuta o que eu te digo. Eu posso não ter dinheiro agora, mas não vou ficar desempregada pra sempre. Quando eu voltar a ter dinheiro você não vai precisar sacrificar tanta coisa assim. Mas o que eu faço enquanto isso, filha? Olha, não é querer falar não, mas tá demorando, né? Você já vai pra quase dois anos desempregada. Eu não entendo muita coisa, mas com as coisas que você sabe, já poderia ter dado um jeitinho. Não pense que isso é uma cobrança, bom, não deixa de ser, também, mas não quero que você se sinta mal por isso. Eu só não posso ficar contando com você, não diante da nossa atual situação. Preciso agir agora. Eu sei que um dia você vai ganhar seu dinheirinho, e ele vai ser só pra você, filha. Eu não quero ele.

As cores do arco-íris, tão bonitas no céu

A questão não é essa, pai. É essa, mas também não é. Você sabe que esse é meu último ano na faculdade, que infelizmente tudo depende dos próximos seis meses; e esse é meu compromisso máximo. Eu não vejo a hora de trabalhar feito uma doida, mas eu tô presa nisso. Por enquanto. Desculpa, pai, mas eu não estudei tanto pra ficar atrás de um balcão e prejudicar a conclusão da graduação por conta disso. O retorno vai vir. Pelos nossos esforços, juntos. Eu sei que você também sabe disso, não sabe? E não tem essa de "meu dinheirinho é só pra mim", é claro que eu vou chegar junto e vou tapar todos os buracos que eu puder, assim que puder. Não sou ingrata. É claro que eu vou cuidar de você e da minha mãe, nenhum de vocês precisa ter a menor dúvida quanto a isso.

Também estão nos rostos das pessoas que passam

Você acha que você é melhor que alguém que trabalha atrás de balcão, minha filha? Olha, seu avô começou trabalhando atrás de um. Trabalhou atrás de um balcão por quase oito anos, até ele conseguir mudar de condição. Sua avó era merendeira. E não era só eu e uma irmã em casa não; era eu e mais dez. Já se imaginou morando com mais dez irmãos? Vendo dois deles morrer porque faltava tudo? Eu comecei a ajudar em casa com dez anos, filha. Dez anos. Eu ia e voltava pra lá e pra cá entregando as quentinhas que sua vó fazia. Muito me orgulha que você não tenha precisado passar por isso, muito me orgulha que com essa idade você tava na escola, bem alimentada, fazendo dever, viajando quando podia. Muito me orgulha que você vai se formar por uma grande universidade. Mas você acha que é melhor que alguém que trabalha atrás de balcão, minha filha?

Vejo amigos se cumprimentando, dizendo "como você vai"

Sacudimos as mãos no ar, trocando o ritmo por um sapateado displicente. Meu pai dá um salto, e de sapateado vamos ao foxtrote; mas nos demoramos pouco, voltamos à valsa tosca e performática de antes, ele me suspende pela cintura, e meus braços florescem no ar abrindo e fechando quase no mesmo instante, ele me devolve ao chão lentamente como se me pusesse pra dormir. Tomo seus braços num movimento drástico, um, dois, três rodopios, e antes que ele fuja da minha órbita é resgatado pela minha mão no limite da extensão, ele ri do que penso ser nossa falta de cadência, tem razão, filha, nós somos péssimos dançarinos.

Na verdade eles estão dizendo "eu te amo"

O peso da chuva finalmente rompe a membrana das nuvens; as gotas cadentes vão procurar o asfalto com as bocas bem abertas; o asfalto ferve a água morna e nos devolve o calor vaporoso que angustia o corpo, ressentido pelo desconforto da resposta: espécie anômala de frio vespertino no deserto. Entre mim e meu pai se interpoem delicados cavalos microscópicos que nos atiçam o suor. A água, déspota da fome, tem como único objetivo alimentar-se de mais água. Quer se parecer mais e mais consigo.

Ouço bebês chorando, eu os vejo crescer

Tombo a cabeça no peito quente de meu pai e ouço um ruído de raízes serpenteando lá dentro sem agonia. Estudo sem pressa o rigor saudável de seu amor retumbante e incorruptível forjado na tradição dos costumes, na força educativa das perdas humanas e capitais, no compreensível bem-estar físico de seus méritos por seus esforços, na lentidão cálida de infinitas horas rezadas aos santos de sua confiança, e lá, nesse alto que presumo, está a beleza opulenta e incontestável da fé, que por afastá-lo diariamente de uma pérola de cianeto de potássio, tem de mim uma gratidão diagonal muito superior a que ele jamais será capaz de imaginar, na contraintuição de quem nunca aprendeu direito a rezar.

Eles saberão muito mais do que eu jamais soube

Como foi no sonho, ele me pergunta. Sonhei que era uma menina! Estávamos na casa de praia, ela me chamava pra ir ver alguma coisa nos fundos da casa, onde a gente comia pão-com-ovo que minha avó fazia pra gente escondido. Lá ela tirava o neném da barriga, como se desfizesse uma dobradura. E era uma menina. Ah, uma menina linda! Ele sorri, ponderando. Eu queria menino. Imagina só se vier um menino -- seu rosto se avermelha intensamente e os olhos explodem. Eu vou endoidar. Mas se vier uma menina você vai poder fazer as mesmas coisas, já pensou? Ensinar a soltar pipa, jogar futebol, é tudo criança, é tudo curiosidade, é tudo desbunde. Mas ele não concorda, eu sei que não; então prolonga o sorriso que vai se perdendo em alguma outra expressão indefinível. Eu vou amar independente de qualquer coisa, é só isso que eu sei. Eu vou ser avô! Você não sabe o que é isso. Não vai saber tão cedo. Confirmo com um sorriso. A gente tem sorte, pai. A dança vai se convertendo num abraço que termina sem aplausos. E eu penso comigo, que mundo maravilhoso.



segunda-feira, 8 de janeiro de 2018

Carta ao avô

Se este fosse um janeiro como os anteriores, a essa altura eu estaria provavelmente submersa na dimensão azul e sem som das praias que banham a costa da região que me conhece desde que me arriscava em suas águas envolta nos braços de meu pai. Mas a entrada pouco triunfal da humanidade num novo período geológico revolucionou a face do mês, e o sol apático craquelando sua luz morna sobre minha cabeça e alimentando as plantas ainda selvagens do jardim me informa da violência discreta da finitude.

Foi pouco depois de lavar a louça do almoço. Eu tateava o colo seco das gavetas procurando por um pano de prato, de certo modo temerária da justa e silenciosa presença de alguma aranha ocupando o espaço -- uma questão de lógica, éramos nós os hóspedes. Nenhuma quelícera me deteve. O que a mão sem olhos encontrou foi coisa de outra espécie.

Trazer aquele óculos pra fora foi uma exumação. Mas no verso da luz anêmica desse dia experimentei o acalanto do sorriso psicológico na transparência de suas lentes. Testo esse óculos, estrangeira. Me pergunto se um dia meus olhos perfeitos vestirão sua antiga deficiência. Era assim o mundo bifocal e amarelado de meu avô. Era assim que ele me percebia, ligeiramente dupla e amarelada, e talvez no fim de sua vida eu não fosse diferente de uma estrela do cinema ou de uma das árvores do jardim. Aquele esqueleto logo se infla da matéria que o tempo leva mais tempo para roer. Os objetos da casa animam seu fantasma, revelando sua antiga anatomia: o banco de assento curvado e pernas arcadas, a falsa arcada de resina sem mandíbulas escondida no banheiro, o corpo de plástico de seu exclusivo garfo, arranhado por leves queimaduras. Meu avô na sala, meu avô na varanda, meu avô na porta da cozinha. Meu avô no espelho, comigo.