quinta-feira, 25 de agosto de 2016

Partida

A palavra demora
quase tanto tempo pra nascer
que uma pessoa demora

na folha branca se espalha a tinta
desorganizada a tinta se esforça dentro
do perímetro em roxo pontilhado
da mão pequena que coordena
os dedos curtos equilibram
o lapis apontado
que aponta e lavra
o embrião da palavra

aquela poeta sempre soube
a palavra demora
quase tanto tempo pra nascer
quanto quem insiste em ir embora

as curvas excessivas chocam os inicios
no calor da continuidade dos exercicios

linha reta é mérito
e cedo se sabe
é preciso retidão

o tempo arrefece as ondas
e tranquiliza o traçado pela intimidade
o vermelho arruma as arestas
matura em forma e tom

a palavra, então
demora
modera
depois de tanto ser larva
entalhada na pressão silábica
quebra
racha
o repouso confirma a cisão

por sob a mão exausta
inscrita está a palavra
nascida da repetição

segunda-feira, 15 de agosto de 2016

Processo

Nas argolas o homem atravessa
os braços
alinha o fio da vida nesta casa
seu rosto, suas veias e os dentes mal comportados
num sorriso invisível
estável

A palavra enxuta 
filha da força bruta
fura a água 
com sua impossível textura
cava a terra
e seus dedos saindo pretos
pescam pequenas coisas

pedra, fogo, machado

O corpo deitado contempla
na escritura do céu
a plenitude das possibilidades 
as muitas teias de poeira e sonho
que se chocam enquanto dançam 
a mais antiga das danças
O corpo deitado, no entanto,
 não navega

Máquina
Formidável e temporária máquina
da feitura e do feitio se apresenta enquanto
máquina
separada, no entanto,
pela corrente de sangue e água salgada
ao verter do recôndito
a pedra lapidada

O homem
teso e suspenso em teste
vai ao chão de um salto e o músculo
quente em riste
mordisca as bordas intocáveis do número absoluto

Está em jogo o produto
Metal nobre na escuridão
Custando nervo e cabelos
O sucesso e a vergonha debruçados sobre o mesmo cadafalso

Não há no mundo um só poema 
que, se poema, seja falso




Para Fiama

terça-feira, 2 de agosto de 2016

Loja de perfumes

Depois de um tempo a gente entende
O mel e o vidro podem ter a mesma
textura e cor num instante exato
Antônio Conselheiro está reencarnado pela segunda vez
dessa vez, em Zé Ramalho
Da loja de perfumes todos os
transeuntes saem com o mesmo cheiro de tudo
Minâncora e Leite de Rosas continuam imbatíveis no mercado
e no Mercado de Pulgas o samba já foi melhor

Depois de um tempo a gente entende
Toda narrativa é acaso - de grandes insetos a pequenos
dinossauros toda narrativa é
acaso
e a sagrada instituição do casamento começou a rachar quando
os crucifixos sobre as camas saíram de moda
direto para as prateleiras dos bazares
depois de um tempo a gente entende porque
os livros a metro estão sendo vendidos
mas não houve notícias de sebos fechando

A criptografia sofisticada das mensagens
de esferas amarelas escondendo grandes estimas
depois de um tempo a gente entende
a gente aprende a ter vergonha do que tinha orgulho
e também aprende a ter orgulho do que tinha vergonha
e não há nada que possa ser tão errado ou tão certo
na linha irregular do eletrocardiograma

Aparecem pessoas nas fotografias que ninguém havia visto antes
e as chuvas de asas membranosas quando
os dias são de calor
depois de um tempo a gente entende
Waly morreu falando a verdade e
Nixon viveu mentindo
mas vai sempre haver alguma couraça no olhar
que vai impedir a chegada
tanto das verdades quanto das mentiras

Os dentes doem ao nascer e ao cair
em qualquer idade
e quase tudo pode acontecer nos terminais rodoviários da cidade
e o som das geleiras mergulhando no mar (para de novo compor o mar)
pode ser ouvido a quilômetros de distância
o amor não é tudo, mas é grande parte
até mesmo os amores risíveis
a vida não fica melhor ao ser compreendida
e nem este poema
e nem o tempo traz todas as respostas

mas como é (mesmo e apenas) da sorte
que qualquer pessoa no mundo depende
o movimento rápido na mesa
o sorriso na hora errada
o mito da beleza
depois de um tempo a gente entende.

Janta

No prato está, imóvel
A vértebra fina de um fóssil
Quebrantável
como o silêncio da madrugada
Equilibrada
na louça lisa e branca
neta de rústica cerâmica

O taxidermista mais cauteloso da cidade
não seria capaz de encarar
este enigma
porque um enigma precisa de olhos

Enquanto a vértebra no prato
à indiferença faminta do garfo
já se esfacela

Numa viagem de cem milhões de anos
Intermediário destino dela.