domingo, 17 de setembro de 2023

O coiote e o carcará no meio do Sertão

O bom de se ter um blog como se ainda se estivesse em 2002 é que aqui dá pra ser cringe sem culpa. E por isso me sinto autorizada a falar das minhas cringices.



Coisa interessante é observar o que o tempo faz com a gente. Às vezes nem tanto com o nosso corpo, mas definitivamente o que faz com as nossas percepções de mundo.

Desde a adolescência eu desenvolvi uma relação muito estreita com língua inglesa, de modo que cedo entendi que trabalharia com ela. Não deu outra e me tornei professora. Mas preciso ir um grau além nisso. 

Não conheço nenhum professor que não tenha uma relação de vida com aquilo que ensine, até porque não tê-la faria da sua profissão uma prática vazia. Quando a gente fala de um professor de línguas, então, acredito que todos pensem, em alguma medida, sobre cultura e território. Pois bem. 

Apesar de apaixonada pela língua inglesa, sempre cultivei um profundo sentimento anti-imperialista porque: sim, né? É tosco ver caboclos querendo ser ingleses; mas é um embevecimento, sim, vê-los empoderando-se não apenas ao aprender a língua do império, mas instrumentalizando-a para criar respostas à altura que combatam sua influência. Só que não sejamos ingênuos: nem a consciência dessa apropriação nos blinda dessa influência completamente.

Eu, por exemplo, aprendi a gostar muito de inglês vendo filme, e filme americano, claro. E eu não sei quantos filmes americanos eu vi nessa vida que não trouxessem imagens do que acho que existe de mais bonito nos Estados Unidos: suas belezas naturais. Convenhamos: nesses termos, esse é um país riquíssimo. Mas (e com dificuldade de afirmar isso) talvez nada me atraia mais que a arquitetura milenar dos desertos americanos. Tiveram responsabilidade os beatniks? Tiveram. Teve responsabilidade o cinema? Teve. Teve responsabilidade a própria história de disputa desse território? Teve. Enfim, um caldeirão de referências moldou o meu olhar em relação a esses desertos, que tenho até hoje muita vontade de conhecer, com uma motivação bem próxima do que seria uma contemplação espiritual sobre eles.

Mas, ei. Falei ali em "caldeirão", né? Não foi à toa.

Ontem estava ouvindo uma música que gosto muito e já ouvi várias vezes, mas que, por razões que já descrevo, me bateu diferente. Seu nome é Caldeirão dos Mitos, e não consigo pensar em ninguém melhor que Elba Ramalho pra interpretá-la, mas a composição ficou ao encargo de Braulio Tavares - que até o momento da produção desse texto, eu não tinha conhecimento algum a respeito e foi ótimo dar uma pesquisada pra saber quem é (recomendo que vocês façam o mesmo). Mas voltando, a Caldeirão dos Mitos de Elba e Braulio ontem me bateu diferente. E esse impacto só pôde acontecer depois de muita caminhada pelas veredas infinitas da vida que só existem pra provar pra gente que não existe caminho perdido.

Estou lendo A Guerra do Fim do Mundo, do peruano Mário Vargas Llosa. Comprei esse livro por acaso, em um sebo, porque não tinha, até então, lido nada dele e essa era uma pendência pessoal. Poderia ser qualquer outro livro, mas calhou de ser esse, e não poderia ter me atraído mais o seu assunto: a ainda pouco compreendida, principalmente no Sudeste, Guerra de Canudos. 

Só que a Canudos de Vargas Llosa conta com vários personagens ficcionais, o que (eu acho) deixa a História de Canudos ainda maior em suas contradições - como acontece em todas as revoluções.

E é nesse cenário que eu começo a pensar em coisas. Coisas que a canção de Braulio Tavares saúda na voz acesa da Elba.

Um dos livros que mudou minha vida foi Grande Sertão: Veredas. Ao contrário do romance de Vargas Llosa, esse é 100% ficcional. Mas à semelhança daquele, compartilha a paisagem e o modo sertanejo em seus personagens. Enquanto leio A Guerra do Fim do Mundo, aliás, frequentemente imagino Riobaldo dando em Canudos por acaso, sentando-se quieto num canto, ouvindo a palavra do Conselheiro, tendo uma cumbuca d'água servida por Maria Quadrado e partindo em seguida pelo inexpugnável Sertão. E o Sertão, como diria o mineiro, é o mundo. Só que o mundo, principalmente o mundo sertanejo, é fundado no mistério. 

Por isso que abri esse texto notando o quanto é curioso ver o que o efeito do tempo sobre as nossas percepções de mundo.

Há uns 10 anos eu não imaginaria que seria capaz de relacionar os sertões americanos - não é o que são? - com os sertões brasileiros. E ao pensar nessa comparação, cuidadosamente considerando tudo o que me atrai nos sertões de lá, me dou conta que o nosso em nada deve em potencial histórico e por isso mesmo fantástico - ou como melhor diria Braulio Tavares, "insólito". Lá eles têm os rituais indígenas com peyote, e aqui não temos a ayahuasca? Lá eles têm os canyons, e aqui não temos os sambaquis? Lá eles têm os cowboys, e aqui nós não temos os jagunços? Se lá moram os últimos tricksters americanos, os coiotes, não encontraríamos aqui uma correspondência na implacabilidade do condor do sertão, o carcará? ambos, inclusive, potenciais representantes do Outro Mundo em sua sentinela?

O que se vai buscar no Sertão que tem o descaminho como princípio? O misticismo que emprenha as histórias sobre estes espaços se inclina sobre o próprio inconsciente desejo humano por isolamento, silêncio e se arrisco um palpite mais fundo, transcendência. Em um ensaio poderoso, o crítico literário William Deresiewicz faz um resgate ao fundamento bíblico de que não seria possível ao homem ouvir a voz divina na multidão, recorrendo então, à fugere urbem. Mas nesse contexto, cabe lembrar que foi no deserto que, segundo as escrituras, Jesus teria sido tentado pelo Diabo. Sendo assim, seria o Sertão uma espécie de portal por onde o Invisível entra e verbaliza, ou mesmo o contrário, entrando o homem no terreno do Invisível?

O pacto de silêncio feito por sertanejos e cowboys em relação aos seus territórios parece justamente ser o terreno fértil onde me sinto encorajada a plantar minhas conjecturas. E se antes eu pensava que a resposta pudesse estar em Nevada ou Utah, hoje acredito ser possível encontrá-la mesmo é na Bahia ou em Caruaru.


terça-feira, 11 de julho de 2023

O vácuo da imagem


Death of an Image n.5, Andrea Galvani, 2006

como a geração brasileira que adolesceu na primeira década dos anos 2000 pode ter sido a última a não ter imagens de si própria neste intervalo - e de que maneira isso permite sua reinvenção  


Existe um intervalo entre o fim do analógico e o início do digital que foi percebido de maneira peculiar por uma classe média que não podia fazer uma viagem por ano para a Disney. Essa classe média, valores inflacionários corrigidos, nominalmente a classe C, que se espremia entre pagar a mensalidade do colégio particular (isso quando, muitas vezes, não inseria seus filhos no ensino público), água, luz, bens de consumo e pôr a comida na mesa era aquela que, diante dessa transição tecnológica, não tinha dinheiro sobressalente  para custear os primeiros celulares com uma câmera - e mesmo as câmeras de qualidade só surgiriam no fim da primeira década dos anos 2000, quando acontece a ascensão do IPhone e com ela a implementação definitiva do sistema Android, permanentemente desbancando o império escandinavo-gêrmanico da tríade Sony Ericsson-Nokia-Siemens, até hoje lembradas pela durabilidade de seus aparelhos de então. Neste período, correspondente aos dez primeiros anos da década de 2000, quem não podia Nova Iorque ia de Madureira: era, para esta classe, a era da câmera digital (que já era popular entre as classes A e B nos últimos anos da década de 90). E aqui mora a peculiaridade.

Para a geração brasileira da classe C que entrou na puberdade no início dos anos 2000, era comum um certo bordão num programa de TV que dizia "Agora vamos falar de coisa boa, vamos falar de TekPix!". Teria sido o Juarez da TekPix, anunciante do produto, o primeiro meme brasileiro? É possível. TV FAMA, o programa em questão, numa era pré-smartphones e pré-internet como conhecemos, gozava da mesma popularidade que outros contemporâneos, encabeçados por Pânico na TV e seguidos por demais programas de auditório distribuídos por canais abertos. Depois das novelas, estes eram os programas mais populares, mas se nas novelas a merchandising é, até hoje, relativamente velada, nesses programas ela era estridente. Ocorre que o anúncio desse tipo de câmera, feito em programas com uma vultuosa audiência, surtia um interessante efeito de vendas. Se a propaganda cria o desejo, e se em cada época existe um bem de consumo supérfluo que captura o zeitgeist (como foi o Discman nos anos 80, seguido pelo Bip nos anos 90), o desejo do trabalhador brasileiro em 2002 era adquirir uma TekPix. A essa altura, as câmeras analógicas mais práticas (aquelas, que o meu pai e o seu tinham, não a Leica do filho do patrão deles) já estavam saindo de circulação. 

Estabelecidos os supracitados critérios de classe, quem nasceu no fim dos anos 80 teve, durante a infância, certa intimidade com o analógico. É claro: a relação das pessoas com câmeras varia bastante, mas isso não importa muito durante a infância, pois seus primeiros detentores de direitos de imagem são os pais. Para muitos destes, que tinham crianças em casa nos anos 90, as fotos poderiam ser abundantes. E tome fotos em aniversários, em viagens pro sítio, pra casa de praia (em Iguaba), no trabalho da mamãe, no passeio da escola, do cachorro. Toda família certamente continha ao menos um membro que tinha alguma relação com o ato do registro, o que, desde as pinturas rupestres, é a atividade mais genuinamente humana da qual se tem notícia. Foi o último momento em que reinou absoluta a Kodak, subestimando a ameaça que já surgia com o desenvolvimento das primeiras câmeras digitais, ainda na década de 90. Em seu conforto e garantia monárquicos, não anteviu a própria queda.

Mas de que maneira isso afeta a adolescência do grupo em questão? Voltemos ao início do texto.

A transição dita provoca uma vacuidade de registros que, em 2023, já não é possível, salvos estejam os eremitas digitais. Se aqueles que foram adolescentes nos anos 70 possivelmente tiveram sua infância e adolescência fotografadas em câmeras analógicas (sempre sendo considerado aqui um parêntese socio-econômico), os nascidos em 1988, a exemplo de quem vos escreve, experimentaram uma suspensão temporal de, aproximadamente, 7 anos no mínimo, a 10 anos no máximo, que foi o tempo que durou essa transição. É improvável que estejam preservados, por exemplo, registros feitos, em 2005, por um Motorola V3, em meio a tanto lixo digital. Nesse período, este era considerado um super-celular, e tremendo sonho de consumo para a classe C. Quem não poderia comprar um, apelava para TekPixes ou similares (parceladas em até 12x sem juros). 

A isso, some-se a questão da funcionalidade e portabilidade. Em 2023, já não há mais quem diga que "celular é pra falar", por menos íntimo que seja de redes sociais ou mesmo que se abstenha delas por completo. A menos que você fosse um fotógrafo (ou aspirante a um), não seria muito comum carregar uma câmera digital na bolsa - principalmente se você fosse um adolescente. Desse modo, a câmera digital continuava com status de pequeno luxo, sendo reservada às ocasiões pontuais já comentadas anteriormente. Além disso, havia certo trabalho em transferir as fotos de uma câmera digital para um computador, para que pudessem ser visualizadas em uma tela maior, uma vez que revelá-las não seria a ideia - e mesmo falar em "revelação", aqui, sequer faz sentido, pois este é um termo intimamente ligado à mecânica do aparelho analógico. A ideia do digital era sua conexão com um computador pessoal, necessariamente. Retomando o recorte socio-econômico aqui feito, não era toda família da classe C que tinha um em casa há vinte anos atrás. Havia, ainda, o risco de perda: câmeras digitais poderiam ser perdidas. Uma coisa era perder uma câmera analógica que já teria seu filme revelado; a outra era perder uma com todas as fotos dentro. Tudo isto posto, calcule: quão seguras estavam as fotos desta época? Abra o baú das suas fotos físicas. Quantas fotos digitais deste período você tem? Os primeiros celulares com câmera miraram justamente esta lacuna, e como se vê, encontraram aí um nicho tecnológico sem precedentes econômicos.

Mas com o desenvolvimento deste nicho surgem problemas que não poderiam sequer ser calculados.

Não há dúvida que o suicídio sempre tenha sido uma constante na história da humanidade, mas o surgimento das redes sociais cria uma relação entre ele e o cyberbullying, sendo o primeiro caso documentado em 2006, quando do suicídio da jovem americana Megan Meier, aos 13 anos, vítima de uma difamação que tomou proporções trágicas. Deste momento até aqui, há um crescimento exponencial de suicídios que têm alguma origem no cyberbullying. A geração Z é a maior vítima, justamente por ser aquela conhecida como nativa digital. Sua adolescência se dá a partir da primeira década dos anos 2000, pouco mais de dez anos atrás, momento em que a internet já está assentada como conhecemos. Por mais nativos digitais que sejam, falta aos membros dessa geração o desenvolvimento da sensibilidade para lidar com aquilo que, antes, se restringia ao tempo e ao espaço da escola, e que assim sendo, permitia rotas de fuga. Em lugar desse desenvolvimento, o que tem-se é uma supressão violenta, que reveste esses adolescentes de uma casca emocional frágil que, quando se fratura, tem potencial arrasador, quer para o ofendido, quer para os ofensores. O aumento dos ataques em massa em escolas também pode ser observado como um desdobramento desse fenômeno. Se antes você tinha, ao menos, o direito a um mano-a-mano na saída da escola (e não que isso tenha acabado), hoje o tipo de vingança mais comum é a exposição indevida de alguma foto ou vídeo conseguidos ilicitamente e replicados a perder de alcance. O poder da imagem é implacável. E a internet não esquece.

É muito provável que a geração nascida no fim dos 80 seja a última com direito real ao esquecimento do período que costuma ser o mais problemático para todo ser humano. Geralmente é na adolescência que surge a vergonha, a sensação de ser ridículo por alguma coisa, a timidez e tudo o mais que caracteriza esta fase. Se uma imagem vale mais do que mil palavras, as fotos da adolescência de alguém podem ter o poder de cristalizar todo esse momento, reduzindo o sujeito a uma imagem estereotipada que pode ser simplesmente passageira. Experimente contar quantos artistas mirins seguiram na indústria e estabeleceram carreiras sólidas crescendo diante das câmeras. Entre outros fatores, é mais do que comum a constatação de que muitos sucumbiram à pressão das expectativas criadas sobre eles, voltando para o anonimato no melhor dos casos. Em um ensaio revelador de 2019, a escritora Nausicaa Renner reflete sobre a premissa contida no livro de Kate Eichhorn, O Fim do Esquecimento: Crescendo nas Redes Sociais, de 2015. Neste, a autora defende que a facilidade com a qual crianças hoje geram e administram a própria imagem no mundo virtual pode prejudicar sua capacidade de filtrar as memórias que realmente desejem reter, e que isso viria a impedi-las de reinventarem-se ao longo da vida. 

Renner menciona que, segundo Eichhorn, todos se beneficiam da experimentação na adolescência. Em um dos pontos centrais de seu ensaio, ela chama atenção para o que postulou o psicanalista Erik Erikson. Ele acredita que, durante este período, nós vivemos no que ele intitulou de "moratória psicossocial", um estágio no qual oscilamos entre "a moralidade aprendida pela criança e a ética a ser desenvolvida pelo adulto". A moratória é um período de tentativa e erro em que a sociedade deixa livres os adolescentes, a quem permite correr riscos sem o medo das consequências, na esperança de que, agindo assim, eles irão construir o núcleo de sua personalidade - um senso pessoal do que dá sentido à vida. A internet interrompe a privacidade dessa era, com a tendência de escalar pequenos deslizes a erros monumentais que constarão em uma espécie de ficha permanente. Se delimitarmos a questão por gênero, as coisas podem tomar proporções dantescas. Por exemplo, na minha adolescência tive uma amiga que namorou com um rapaz durante algum tempo. O namoro terminou quando ele gravou e divulgou um vídeo íntimo dos dois na internet. Requintando a falta de caráter, foi capaz de gravar um DVD e vendê-lo no camelódromo no centro da cidade. A menina deixou a escola e, no boom do surgimento das primeiras redes sociais, como Orkut e Facebook, ela nunca fez um perfil pra si, tamanha foi a repercussão do caso. Havia se tornado um fantasma de si mesma. Era o primeiro revenge porn do qual eu tinha notícia. Desabrochando em sua vida sexual, ficara marcada definitivamente. Por quanto tempo não terá carregado esse trauma para outras relações? De que maneira o crime que foi cometido contra ela não tornou-se a imagem mais forte de sua adolescência, até para si própria? Após algum tempo mudou-se, e nunca mais tive notícias dela. Como dito, a internet não esquece.

O vácuo da imagem sentido pelos que podem ser chamados de late millenials, ou simplesmente aqueles nascidos no final da década de 80, permite a eles uma melhor capacidade de seleção da memória, o que faz com que valorizem as experiências boas em detrimento das ruins, de modo que essa agência crie uma personalidade menos suscetível a provocações e ao bullying feitos internet adentro. Quem aprendeu a se defender na vida real e cresceu tendo sua privacidade relativamente preservada tem mais chances de sobreviver nesta espinhosa selva de informação. Assim sendo, será mais fácil lembrar de como o Luizinho ainda tinha cabelo naquele passeio para Petrópolis em 2002 e das risadas naquele dia, ou mesmo recriar, mentalmente, um primeiro beijo que nunca aconteceu enquanto o ônibus voltava da serra. Já nos dizia Waly Salomão: a memória é uma ilha de edição. A magia que amplia a criatividade humana acontece no ato de recontação - uma sorte que, depois da exatidão inflexível do Google Photos, pode estar perdendo o seu encanto. 

segunda-feira, 29 de maio de 2023

Quando Jorge Errou - imperdoavelmente

Tenho um amigo que costuma dizer que se parece com um marreco. Em sua perspectiva, um marreco é capaz de fazer muitas coisas, mas nenhuma delas faz direito. Foi assim que há alguns anos ele começou sua entrevista no Programa do Jô, auto-apontando sua suposta falta de talento, quem sabe utilizando isso como um escudo à prova de ataques sobre seus dotes artísticos - meu amigo é escritor, DJ, músico e cineasta. De fato: é para poucos expandir o talento em múltiplas direções, e principalmente manter sua qualidade nesse superdigitalizado mundo pós-industrial. Para poucos, sim, mas esses poucos estão por aí, entre a fama e o anonimato - quando a humanidade dá sorte, alguns deles alcançam a fama. E um desses poucos é Seu Jorge.

Seu Jorge é um dos personagens brasileiros mais consistentes em sua versatilidade artística. Digo isso sem medo. Bem sucedido como ator, intérprete, compositor, cantor, produtor e sabe-se lá o que mais, Jorge Mário é um brasileiro cuja trajetória artística foi marcada por alguns altos e baixos, e mesmo sua conhecida história faz dele um exemplo de superação. Os prêmios que coleciona, tanto na música quanto no cinema, não foram concessões voluntárias de uma indústria apenada por sua história, mas pelo mérito de seu esmerado trabalho artístico reconhecido globo afora. 

Como qualquer pessoa no mundo, o artista tem suas complexidades, sobretudo políticas. Em 2007, Seu Jorge fez coro no vergonhoso movimento Cansei, que reunia o que de pior havia na vampira elite brasileira, entre socialites, celebridades situacionistas e figuras públicas no mínimo questionáveis. Falo de gente como Regina Duarte, Hebe Camargo. Para quem possa vir a ter a memória embaçada, o Cansei é a versão coxinha do que viria a se tornar o bolsonarismo anos depois. Algum tempo depois disso, Seu Jorge volta a se posicionar, desta vez ufanando-se de morar em Los Angeles para justificar seu desprezo por um país que nada lhe deu. Considerando seu histórico, não é tão difícil fazer um pequeno exercício de alteridade e se identificar com a revolta que pode tê-lo motivado à certa arrogância ao tentar se defender de certas acusações com relação ao seu posicionamento político: questionado (e disputado) por uma esquerda ocasionalmente dogmática, Seu Jorge parece esforçado em manter-se longe dela (desde sempre), indo na contramão do que geralmente se espera de um artista negro brasileiro que chega ao estrelato; coisa que, no passado, experimentou também Wilson Simonal. Longe de absolvê-lo, ao menos é possível encaixar certas peças neste tabuleiro que me levam minimamente a compreendê-lo. Em certa medida, estes são episódios apenas lamentáveis diante do Grande Erro de Seu Jorge.

E o Grande Erro de Seu Jorge acontece no ano de 2015, quando ele lança uma das maiores tragédias da música popular brasileira: a música FELICIDADE.

Movido pelo justíssimo sucesso de Músicas Pra Churrasco Volume 1, lançado em 2011, Seu Jorge lança a segunda versão homônima, quatro anos depois. E é nesse álbum que esta música está. 

Há muitas razões pelas quais uma música cai (ou não) no gosto popular. Melodia, letra, embalo, algum tipo de piada interna, algo que motive a criação de memes: as duas últimas têm funcionado como um método fácil de popularização. "Felicidade" atingiu sucesso no ano de seu lançamento e até hoje é bem difundida no rádio, e aparentemente passaria incólume pelo público se eu não tivesse nascido.

Não há nada mais enfadonho na cultura brasileira inteira que a letra desta música pela mesma razão que todo comercial de margarina é cafona, porque inverossímil. "Felicidade" é, portanto, como se um comercial de margarina tivesse sido musicado; um marketing feito na medida para vender um produto que - sabe-se - é ruim para o consumo, dada a sua redonda artificialidade. Na letra, Seu Jorge elenca situações que traduziriam o que é a felicidade (o que por si só já é um dos assuntos mais complexos que há), mas a maneira como faz isto é tão pobre e crivada de imagens previsíveis que revela um despudor significativo sobre o próprio assunto que escolheu abordar. Felicidade, sem entrar em camadas filosóficas mais profundas, é tópico sério, sensível e altamente subjetivo, mesmo que não deixe de ser leve. Até mesmo gente aparentemente menos ajuizada conseguiu se sair melhor que Seu Jorge em sua definição - afinal, felicidade pode ser, sim, um fim de tarde olhando o mar, como os cariocas aprenderam em 2005 na voz de Danilo Cutrim com os demais meninos do Forfun, que inclusive pareciam mais relaxados sobre ela, não procurando defini-la à exaustão com pares de frases tão preguiçosas. Talvez more aí a diferença: a Felicidade de Seu Jorge é compartimentada, pronta para o consumo. Em último, instagramável. E não existe, no mundo moderno, nada mais cafona que o próprio conceito de instagramabilidade. 

Mas me resta, ainda, uma última teoria. E isso tem potencial de mudar completamente tudo o que foi colocado até aqui.

É possível que "Felicidade" seja uma das músicas mais inteligentes do país se lida como uma peça irônica sobre o que pode vir a ser a tal difusa e inconceituável felicidade. Só gente muito grande faz esse tipo de movimento. Luiz Melodia aprontou uma dessas em Mico de Circo, de 78, quando cantou "Eu Sou o Samba". À uma segunda vista, o que antes parecia ser a entoação de um coro de saudação dá lugar à jocosidade esperta e madura que Melodia sempre depositava nas suas músicas como senhas (ainda que esta, em específico, não fosse sua). Na voz do menino que desceu o São Carlos, a interpretação desta música surge em tom debochoso, de alguém que conseguiu entrar na festa dos brancos, mas sabe muito bem de onde veio. Coisa semelhante (e convenhamos, menos discreta) também fez Gonzaguinha em 73, com "Comportamento Geral", em uma letra que discorre sobre a passividade bovina do trabalhador brasileiro frente ao achatamento de sua própria vida pelas engrenagens do sistema capitalista. Se Seu Jorge tiver tomado este caminho ao compor a música que dá assunto a este texto, ele passa de fastidioso a gênio num estalar de dedos. Mas infelizmente tenho motivos para desconfiar que não seja o caso.



Pequenas Notas sobre o Igor

Gosto como o Igor se utiliza de adjetivos inusitados pra descrever unidades de medida, por exemplo. Uma colher de plástico pequena, na boca dele, torna-se "interessante".  Na boca dele, aliás, nada parece desperdiçado: tudo tem uma função, um porquê. Gosto de como Igor brinca com possibilidades silábicas criando palavras novas, e não que ele seja o primeiro a fazer isso, mas as palavras dele são dignas de popularização: revesfrengo mariolete, pacolalafágrigo, ximbirra; a graça é o costura-descostura. É um self-service semântico: pegue uma e aplique-lhe um contexto. Atesto: vai servir. (É claro que, segundo o mesmo processo eu já ganhei vários adjetivos, mas sobre isso vocês não precisam saber). 

Gosto de ver a sensibilidade do Igor onde é inevitável: seja sua opinião sobre a textura de um caldo, ou quando uma situação envolve as finíssimas camadas das relações interpessoais. Sob o risco de não parecer sincero o bastante, Igor prefere o silêncio. Talvez seja mesmo coisa dessa gente de maio, que observa mais, absorve menos. Para uma deglutição lenta: quatro estômagos.

Gosto de ver o Igor dormindo, pesado feito o esquecimento e leve tal qual a consciência, como quem confia naquela hora em que o corpo se entrega à toda vulnerabilidade que pode. Gosto como Igor confessa quando não tem certeza. Pessoa muito lógica, Igor não se sente constrangido ao revelar o que não sabe, não fica procurando circundar, com argumentos imprecisos, algum assunto que não domine só pra não se sentir excluído ou defasado sobre ele. Nem sempre é indispensável estar por dentro de tudo. Inclusive, gosto como Igor lida com a solidão.

Acima de tudo, gosto de como o Igor não me dá tudo o que eu quero, porque me obriga a repensar meus quereres. Quem tem tudo o que quer, ao tempo e à hora, acaba sendo mimado por desejos pobres, mal construídos. E a verdade é que estamos nos livrando de incômodos e desafios cada vez mais cedo por esse motivo. Por não me dar tudo que quero, Igor me dá o benefício de desejar melhor.

Gosto quando o Igor tenta rimar. É sem sucesso, mas pelo menos é engraçado. Falando nisso, Igor sente muita cosquinha, mas antes que isso seja usado contra ele, ele parte pro ataque. (Hoje acho que isso pode ser análogo aos seus sentimentos também, mas esse é um segredo bem guardado). Gosto de testemunhar o Igor aprendendo algo novo.  Desconfiado, é como se ele se recusasse a aceitar algo de primeira, precisando ser convencido daquela verdade. São tantas as particularidades do Igor que é fácil me estender, o que faz com que seja difícil escolher o que mais gosto sobre ele. Mas acho que me decido assim:

Gosto da maneira como o Igor aumenta a minha curiosidade pelo dia seguinte. A curiosidade é o melhor avesso da ansiedade. E estar curiosa pelo dia que vem é o que me deixa em paz com a vida.

sexta-feira, 4 de março de 2022

A tensão nas montanhas

Como uma cidade inteira tornou-se refém da força da natureza e do descaso do poder público - e como minha história breve atrela-se a ela.

Por Ícaro Gonçalves
02/08/2007


BRILHAM DE LONGE - EU VI

Os carros passam rápido por aquele trecho da avenida. É prudente fazê-lo, mas a imprudência ainda move o espírito humano, e sendo assim, há quem se detenha, mesmo rapidamente, e olhe para os lados. O líquido aceso, dali se vê, escorre lento do cume das montanhas, feito a cabeça apedrejada em sangue dum gigante, interrompendo o escuro da avenida mal-iluminada. Essa avenida, aliás, tinha ficado bastante conhecida por ser corredor intenso de passagem pra vários pontos da cidade, sendo cortada tanto por gente rica quanto por gente pobre, representando a interseção acidental entre dois mundos que, pelo menos na maior parte do tempo, pareciam não se tocar. Da pista, a cadeia de vulcões é visível a quilômetros, enquanto os vulcões mais violentos seguem vilipendiados pelo poder público, ganhando os jornais apenas em épocas de atividade muito franca. 

É promessa comum de campanha o investimento expressivo na pasta de Geologia e Segurança. Na cidade inteira não há propósito mais urgente. O governador Cesário Felix, velha e conhecida raposa das massas, vive anunciando a abertura de concursos e contratação de todo um novo corpo de geólogos das melhores instituições, nacionais e internacionais, que venham sanar o problema da atividade vulcânica excessiva, sofrendo críticas de todos os espectros políticos que, se de um lado defendiam, à miúda, a importância econômica dos vulcões, por outro argumentam que, como força da natureza, os mesmos não deveriam sofrer controle, e portanto, é responsabilidade do estado fornecer alocamento nas regiões centrais para as pessoas que, por falta de opção, têm que viver aos pés deles. Nesse estica-e-puxa verbal, nada se resolve, afinal, era assim o jeitinho carioca desde a corte portuguesa. Mesmo assim, não havia quem negasse como era bonito ver aqueles raios vermelhos de deus furioso, o tipo de beleza perigosa que atrai pra ferir, pra matar.

CATALOGAÇÃO 

A última catalogação geológica feita no estado não abrangia o interior porque se dizia que o índice de atividade sísmica por lá era ínfimo o bastante para não se despender esforços do já débil governo - ou assim as condições se retroalimentavam, com o governo de certo modo contando com a atividade sísmica moderada pra depois da serra das Araras, ao longo do Vale do Paraíba e também na região da Costa Verde, o que era, mais uma vez, puro e simples vilipêndio e ardil governamental. É claro que tinha havido erupções nesses lugares, não era pouca a literatura sobre centenas de pessoas desalojadas, por exemplo, nas encostas de Muriqui; é claro, também, que muitas haviam morrido, como bem documentado naquele filme que prefeito e governador tentaram obscurecer (mas que encontrou seu caminho e foi notícia por um tempo até realmente sucumbir à falta de divulgação). Mas estes são barulhos que acontecem longe da capital o suficiente para que não suscitem interesse público. 

Naquele momento, de acordo com a catalogação, os pontos de interesse geológico mais fortes concentravam-se na regiões que abrangiam as Tijucas 1 e 2, Cidade Nova, Costa e Bastos; partes pontuais do subúrbio e baixada fluminense, além de contar com o imenso Rosso, que competia, em tamanho e atividade, com o vulcão de Costa e Bastos, e que por não estar tão distante assim do chique bairro do Itanhangá, movimentava certa rotina de monitoramento no seu entorno. 

De acordo com os vulcanólogos em recente entrevista ao canal Tempo e Hora, a falta de monitoramento em regiões mais remotas do estado poderia vir a se tornar ainda mais dispendiosa que o não-monitoramento destas áreas, dado que a falta de observação teria grandes chances de resultar numa resposta muito mais difícil e pouco eficiente em caso de erupção repentina. A avaliação dos profissionais fora unânime. Virgílio Satzio, do departamento de Vulcanologia 1 do campus de Paciência da Universidade Batista, afirmou categoricamente que "o que se espera é que, sentados sobre uma bomba relógio, ela não exploda", e alertou para o episódio do ano passado ocorrido em Samarillo, no interior do México, quando da explosão do vulcão El Kike, que deixou em seu caminho um rastro de mais de cem mil mortos e incalculável prejuízo material e humano para o país. 

ERUPÇÕES HISTÓRICAS 

Me lembro até hoje do dia que o sismógrafo central disparou o alerta simultâneo dos três vulcões mais ativos da cidade (Tijuca 2, Costa e Bastos e Rosso). Eu estava voltando pra casa, de ônibus, depois de um dia pesado de trabalho, quando os rádios da cidade começaram a veicular a notícia. Chegar em casa foi o caos em todos os pontos da cidade. Soube de muita gente que, com medo, procurou outros lugares pra ficar. Precisou a força nacional chegar, no terceiro dia, pra erguer a barreira de contenção que, por custar aos cofres públicos o que os deputados chamavam de insanidade, era considerada medida extrema e aplicada apenas em último caso, quando borda de segurança e parede de titâneo já não mais seguravam o avanço da lava. As erupções desses vulcões, nesse período, fizeram história, e foram tomadas como marco geológico durante muito tempo. Muita gente, pega de surpresa, sucumbiu aos vulcões, e até hoje as estimativas de mortos são imprecisas. Na época, falou-se em duzentos mil de setecentos. O estrago maior foi provocado pelo Costa e Bastos, apesar de Tijuca 2 ter recebido maior cobertura de mídia dada a sua localização. Até este dia estuda-se a possibilidade destes vulcões terem, em algum nível, algum tipo de comunicação subterrânea, o que explicaria a erupção simultânea. O trauma coletivo foi tão grande que fez com que até mesmo com que os mais arraigados moradores dos sopés das montanhas deixassem tudo pra trás, mesmo a mineração. 

A mineração, inclusive, é um problema à parte nesta situação de vida ou morte, de quase tudo ou quase nada na qual as pessoas vivem. É complexo. Falo isso porque sei do que falo. Meu avô veio dos arredores de Tijuca 1, não muito longe do próprio gigante de fogo, e foi por causa do sucesso dele na mineração que hoje posso dizer que durmo num lugar tranquilo. Isso começou mais ou menos no seu tempo. Sem perspectiva de vida na região central, os moradores dos arredores dos principais vulcões haviam construído uma organização comunitária sem base fixa, figurando, cada uma, em cada comunidade que vivia sob o julgo dos vulcões. A organização, RESIDENTE RESISTENTE, tinha por objetivo vigiar os projetos de lei em tramitação que ampliassem os recursos para-eruptivos e monitorar não só a lava e os sinais dos vulcões, mas também ficar de olho vivo nas companhias clandestinas de mineração, que muitas vezes instalavam-se da noite pro dia em pontos estratégicos ao redor das montanhas e só não ganhavam força devido ao esforço conjunto das militâncias para desarticulá-las quanto mais cedo possível. A grande ironia de morar no Rio de Janeiro: as comunidades mais abandonadas têm iniciativas de primeiro mundo em relação ao próprio governo.

MINERAÇÃO 

Demorou um tempo, mas desde que fora tornada pública a descoberta de que praticamente todas as encostas vulcânicas continham enormes quantidades de diamantes, as abordagens em relação à Geologia e Segurança mudaram de tom. Geólogos de grande prestígio, como Camilo Braga, Renata Sandoval e Hermínio Lima, já no início dos anos 70, apontavam para a possibilidade de grandes reservas de minério nas regiões de vulcões, tão logo eles começaram a demonstrar índices de atividade de moderada a alta - o que teve início precisamente em 76, quando o grande Rosso entrou em uma formidável erupção que durou 3 meses, à época, sem causar grande prejuízo humano pois seus entornos ainda não eram urbanizados. 15 anos depois, a pesquisadora Renata Sandoval publica um importante compêndio descrevendo o comportamento dos vulcões, e nele confirma e detalha a existência das reservas minerais ricas em diamantes. O documento, à época, causou um alvoroço dado seu potencial, o que levou a discussões sobre medidas de tombamento ambiental dos vulcões para estudo mais aprofundado - coisa que nunca de fato ocorreu. No entanto, a Lei do Carbono, sancionada em 1978, tornava ilegal a comercialização dos diamantes na intenção de refrear o garimpo ilegal e possíveis receitas que fugissem de lastreamento fiscal. Assim sendo, toda mineração era, portanto, ilegal. Decorridos alguns anos, por mais que fosse tentador arriscar incursões nas vizinhanças dos vulcões afim de minerá-los, era perigoso demais conforme a violência das erupções aumentava. Apesar da Lei do Carbono, muita gente morreu tentando escavar os diamantes, frutos brilhantes do fogo pastoso que a boca dos vulcões regurgitava. Mas uma quantidade razoável também conseguiu acumular pequena fortuna sabendo como movimentar-se no mercado negro de diamantes, que, é lógico, tornou-se um rio caudaloso de relações clandestinas.

Apesar de proibidas por lei, era mais do que sabida a existência das companhias clandestinas de mineração. De tão conhecidas, pra encurtamento de conversa, eram chamadas de CCMs - inclusive suas conexões com o próprio governo eram notórias (quem não lembra do escândalo, diga-se, fartamente noticiado na época, envolvendo a filha do deputado Olegário Neto, quando, num acesso de fúria, entrou na câmara em um roupão de veludo e, ao despi-lo, portava duas algibeiras de onde, aos punhados, sacava diamantes, jogando-os na cara do pai? Mais tarde confirmou-se a conexão do deputado com pelo menos três CCMs, que tiveram seus membros presos.) Qualquer pessoa com um mínimo de discernimento não iria demorar muito para associar que o total desinteresse na destinação de incentivos pra projetos que barateassem o custo de planos de segurança e resposta em caso de erupções violentas poderia se explicar pela soma que muitos deputados da câmara levavam por fora em acordos escusos com as CCMs. 


FUTURO - UMA CHAMA ACESA?

Nasci em uma família de origem humilde do Rio de Janeiro. E isso quer dizer que boa parte dos meus tem uma experiência de involuntária intimidade com os vulcões, assim como muitas pessoas que conheço. Isso quer dizer que, num grupo de cinco pessoas que eu conheça, pelo menos uma já foi engolida por um vulcão, e as outras quatro acumulam histórias semelhantes. Tenho uma namorada há três anos, e temos certo medo de ter filhos. Sondo a vida em outros países que já tenham obsolescido a relação rudimentar que essa cidade trava com uma força tão natural, tão antiga e, com alguma vontade pública, que pode vir a ser minimamente contornável. Sei que não é um desejo isolado, mas é certamente o sentimento de frustração que me guia ao escrever esta coluna. Muito especula-se sobre o futuro da cidade com o possível surgimento de novos vulcões - mais ou menos no centro da cidade, mais ou menos nos confins das fronteiras. A natureza sempre nos ensina, de um modo ou de outro, sobre nosso próprio tamanho, mas, diferente dos homens, não é ingrata e nos oferece ferramentas pra que tenhamos o mínimo de agência pra mover o curso do que pode ser movido, e quem sabe conte secretamente com o nosso discernimento para que saiamos de seu caminho em caso contrário. Penso nisso enquanto olho, hoje, para fora da janela do quarto, pensando ouvi-los rugir, pensando vê-los brilhar. Penso em meu avô, tentando trazer para os meus próprios olhos o brilho das pedras que ele encontrou, e quase consigo vê-las dentro das mãos sujas da mente. Manuseio este brilho imaginário, prolongamento da chama sempre acesa do cume das montanhas vazadas, que lá estavam bem antes de mim, e que lá estarão também depois, e depois de tudo, das paredes de titâneo, das barreiras de contenção, dos carros, tanques, das medidas e das leis. 

Neste momento não sinto medo. Longe daqui, motoristas noturnos encostam seus carros no acostamento daquela avenida, acendem um cigarro, confundem a cor da brasa das pontas dos dedos com a cor do mistério imprevisível que agita as caldeiras subterrâneas e eventualmente sobe ao topo, como um desconhecido que pisca um olho só.