quarta-feira, 30 de outubro de 2024

Conspiração subterrânea

Nem havia desfeito o coque bem repuxado nas têmporas para a aula de balé das terças-feiras. Não estava acostumada àquele dia, nem ela nem ninguém, mas ou era isso ou ficariam sem aula indefinidamente. A professora da casa ainda estava em coma depois da queda do cavalo; a substituta havia sido chamada para compôr a companhia de dança da Deborah Colker duas semanas antes, e só tinha horário às terças. Três alunas cancelaram suas matrículas. Todo mundo negligencia o fato de que o cavalo ainda é um animal selvagem pela ausência de dentes afiados como os de um tubarão, por exemplo. Pobres cavalos e sua dentição pouco intimidadora; mas também pobre Cecília, a professora que apostou no cavalo errado, perdeu as férias e quase a vida. 'Fica bagunçada a cabeça de uma pessoa assim', Giovana reconstitui pra si a imagem do acidente num segundo, e aturdida por sua força, treme a cabeça para os lados, tentativa de limpar seu subconsciente da cena. Ainda de collant, se despede e sai.

Nuno acorda com os feixes invasivos do sol disputando sua pele debaixo da marquise. É mais um dia, ele pensa, e seu estômago começa a trabalhar nessa intenção. Tá calor, ele sente o próprio cheiro. Precisa ir, precisa andar, hoje tem umas pendências pra resolver e na verdade não sabe como. Tudo o que ele pensa é de que maneira pode arrumar o que comer naquele primeiro momento. É mais um dia, Nuno odeia pedir e odeia roubar, mas realmente não tem ideia de como comer alguma coisa possível sem partir de uma das duas opções. É enxotado com os olhos de duas padarias nas quais tenta abordagem, e mais tarde, com recusas formalmente verbais. O primeiro, um branco com cara de otário falando inglês. A segunda, uma patricinha dessas de cabelo loiro e pele queimada, com muitas tatuagens, de óculos escuro, falando no celular. 'Esse celular salvaria pelo menos um mês de comida e parada', ele pensou. No momento em que ela deixou a padaria, rodou na Cinelândia que nem viu.

Quando saiu no Daily Mirror que uma espécie de anfíbio havia sido descoberta por uma equipe de pesquisadores ingleses baseada no Pará, Gary já sabia, de ouvir por alto, que teria que estar lá. Não só porque dois dos pesquisadores eram seus amigos, mas porque seria a oportunidade perfeita para, finalmente, visitar o Brasil. Se a coisa toda já tinha ido pro Daily Mirror, já tava rodando o mundo e cedo ou tarde toda a área estaria infestada de mais pesquisadores - o que, por si só, representaria um risco à própria espécie recém-descoberta. O anonimato é a sorte curta das espécies ainda não-catalogadas. Só os peixes abissais dentro da escuridão eterna e os microorganismos nos cumes dos montes gelados têm alguma possibilidade de sobrevivência. Contudo, o caso daquela espécie era diferente, dividindo opiniões entre os pesquisadores. Uma coisa era certa: não se tratava de uma espécie antiga, mas muito recente, estranhamente recente, de modo que parte deles a qualificaram como a primeira espécie do Antropoceno. Um apêndice longo e rugoso nas costas do pequeno anfíbio, assim como o aumento de suas patas, seria uma degeneração na constituição da espécie, e mesmo seu sistema respiratório não era completamente semelhante ao dos anfíbios regulares, não sendo uma evolução, mas o que corroborava, de fato, o surgimento de uma nova espécie. Tudo indicava que a nova espécie era fruto direto da mudança do ecossistema local devido à ação do homem, especialmente durante as prospecções mineratórias nos anos 80. Aquilo iria suscitar uma infinidade de discussões em todas as áreas. Um reboliço científico que Gary precisava ver de perto.

Os padrões da calçada orientavam os passos leves e bem-coordenados de Giovana, que, por algum momento mais demorado de atenção, poderia ser vista dançando discretamente sobre eles. O balé entrara na sua vida aos cinco anos e lhe deixara memória, postura e joanetes. Era boa o suficiente para vislumbrar uma carreira como professora. Mas preferia a crueza de sua dança, e até os eventuais erros de suas passadas, a instruir alguém. Uma música nos seus fones de ouvido dizia, noutra língua, que tinha muitos problemas na sua cabeça, enquanto conferia no celular o agendamento da terapia, também bagunçado pelo novo horário do balé. Precisava comprar ração pro gato, porque o gato comia melhor que ela. Precisava terminar de escrever dois artigos e precisava terminar um namoro. Precisava de muitas coisas enquanto andava pela cidade enganando a própria pressa, com os olhos fixos nos padrões da calçada e suas pedras portuguesas.

O conselho dos pesquisadores iria se reunir no Rio de Janeiro ao final da primeira parte das pesquisas para discutir a coleta dos resultados parciais. Era essa a informação que Gary havia recebido por e-mail de Timothy, que já estava no Pará. Por hora iria observar o desenrolar dos acontecimentos de casa, mas não gostaria de chegar lá quando toda a junta de cientistas já tivesse reclamado o local pra si, mas não gostaria de ter que adiantar tanto sua ida. Gostava de pensar que a falta de adaptação dos seus corpos estrangeiros naquela terra seria difícil, o que os expulsaria antes, por enfado, e achava engraçado, até. Um monte de cientistas juntos tem sempre muita razão. Gary era cientista também, e sabia disso. Mas preferia o riso, apesar da ansiedade. Também tinha suas questões. O que seria quando chegasse por lá, e desse com aquele campo montado de pesquisadores de todos os lugares? Pensava na espécie nova como um novo elo, not a missing one, but a found. 

Ondas brancas e ensebadas na fronha do travesseiro, cabelos em todas as direções. O peito palpitando forte num trote reemulando o sonho, era Giovana despertando do pesadelo que tivera com uma tropa de cavalos varando violentamente um campo aberto, enquanto ela dançava, só, sobre uma pequena plataforma de madeira. Trouxe a cabeça a noventa graus do corpo, num impulso rápido, esparramando as pernas na outra ponta do sofá em que cochilava. Virou devagar o pescoço de um lado, do outro não conseguiu, torcicolo. Revirou os olhos de incômodo, levantou; no espelho do banheiro, discretas olheiras sobre sua pele negra.

Com esse calor do caralho vai cair mó torozão, Nuno se vira para Ney, um amigo, e diz com a voz preocupada. Tu já sabe pra onde vai se arranjar, Ney? Ney dizia que havia um abrigo perto da Praça Tiradentes pra quando chovesse assim, da forma que se estava ameaçando chover. Nuno ficou pensando na chuva antes dela cair, em como o céu sempre parecia tão escuro em plena luz do dia momentos antes de um temporal, em como sempre pensava na chuva como alguma coisa que aliviava o céu engasgado. Ficava pensando se existia algum deus de verdade se escondendo atrás das nuvens, até das mais escuras. Tu acredita em deus, Ney? Ney acredita em deus ao limite de duvidar da sanidade do amigo pela pergunta em si. Já Nuno não tem tanta certeza. Quando era criança havia uma avó que fazia bolo quentinho, quando dava, pra comer com sessão da tarde. Aquilo era deus. Nuno sabia de pouca coisa, mas entendia muitas, e das poucas coisas que sabia era que, às vezes, entender era mais importante. Se não tivesse aprendido isso, a essa altura já seria um homem morto, porque a rua cobra dos desatentos que aprendam cem vezes mais rápido que as pessoas que têm um teto. Todo esse arranjo doido de pensamentos se desfez ao toque grosso e frio do primeiro pingo de chuva, que anunciava que teriam de procurar logo um lugar pra ficar.

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