quinta-feira, 24 de dezembro de 2015

Salomão em sonho

Sorte a tua
Que bebeu da teta da terra
Que tomou o leite turvo
De tétano
Donde boiaram os dentes de outros fósseis
Até mais fortes
Fósseis tombados

Idade do ferro
Do gosto pontiagudo
das frutas que a terra verte
O remorso afogado na lama
onde um dia tua avó lavou as vestes

Não, tu não cuspas com ingratidão
o leite desta teta pútrida
Não,
tu não quebres teu retrato de família
Tu,
Tu não vires o rosto em nojo
que a cama já está pronta
que a cama sempre esteve pronta

O leito que alenta morno
Que enegrece os órgãos internos
Mas ainda, leito
peito

Despertando o sono
A cama sempre esteve pronta.



Para Diogo.

terça-feira, 15 de dezembro de 2015

Acidental

Eu perfumei o teu livro
Com pequenas manchas eternas

Foi por acidente - me desculpa!

Quando o tiver nas mãos
vai lembrar das minhas pernas.


Para Diogo

sexta-feira, 11 de dezembro de 2015

Cem Xis Zero

No vão estreito da ponte sobre o canal o tempo se encontrou aos três e colou seus pedaços. Pretas e duras, as raízes das árvores se estendiam em continuações verdes serpenteando a perna mole, afundando os entornos da cavidade dos olhos, e também se distribuindo em igualdade sistemática pelos dedos da primeira mulher.

Todo o mundo em silêncio. Folhas, carros, gente, gatos, rádios, todo o mundo em silêncio, e na caverna impenetrada da primeira forma de vida humana, o pulso. Atenção: o pulso é o primeiro ruído da última mulher. A última mulher não tem dentes, não tem pelos, não tem cílios e não tem roupas, porque a última mulher ainda não sabe que é mulher. Não sabe que existe. Ela só existe, mas seu tempo ainda não começou a se contar.

Se nem mesmo a vida é comprovadamente linear, nada mais tem a obrigação de ser. No segredo da falta de linearidade se ouviu a voz - voz essa que saiu duma equação entre oxigênio, vibração e cordas vocais - da mulher do meio. A mulher do meio está exatamente entre a primeira e a última mulher, e o extremo da ponte uniu as três. A mulher do meio tem um corpo de mulher formado e pleno, tem pêlos, tem dentes que ornam suas expressões de satisfação ou fúria, e traja um vestido que o vento atravessa sem resistências.

Era só qualquer dia de dezembro, de março ou de agosto sobre uma ponte qualquer. Mas é que o extraordinário escolhe, justamente, a mais qualquer das qualqueridades pra nascer.

-- Não tenho pressa, minha filha, se quiser, pode atravessar.
-- Eu também não tenho, vou esperar.
-- Os carros aqui passam muito rápido. Se Deus me der saúde, quero viver até o ano que vem. Faço cem anos no dia de São Sebastião do Rio de Janeiro!
-- Sério? Eu também faço aniversário no mesmo dia!
-- E esse neném aqui? É mulher ou homem?
-- Mulher. Se tudo der certo, é meu presente de aniversário!

Carros cheiram o asfalto, neuróticos. A impaciência se avoluma, indiana. Passa uma impossível cabra na rua paradoxal, e olha para as três mulheres, silenciosa. Para. Os olhos cromados da cabra mentem sua direção, mas as mulheres sabem que são observadas por ela. Um chifre em cada ventre. Cem. Xis. Zero. A matemática, fiscal, brincando sobre as equivalências daquela estranha coincidência natal, pouco antes de despertar do delírio. A impaciência avolumada fala. Pede licença. Ignora o milagre, perfeito, triangular.

No vão estreito da ponte sobre o canal o tempo se encontrou aos três e colou seus pedaços. Mas cada milagre na terra custa uma estrela do céu.

segunda-feira, 7 de dezembro de 2015

domingo, 22 de novembro de 2015

Hipocondriose

As anêmonas
dançando nas
linhas das têmporas

Todos os micronanoatômicoorganismos desorganizados
ao fechar os olhos

com sua revolução em curso

os olhos, eles próprios
dois grandes, imensos vales
invertidos
escorregadio-movediços
e vigilantes
da vida que se movimenta
que passeia, sorrateira

A dor, a dor infinita que cabe dentro dos segundos
As cores redondas dos remédios coloridos
verde, branco, rosa, azul

O frio e o fogo disputando o corpo
o meu corpo, o teu corpo
quantas vezes por dia?

O alívio, o alívio infinito que cabe dentro dos segundos

O tempo é o meu assunto favorito.

quarta-feira, 18 de novembro de 2015

O hóspede

Primeiro ele me disse que eu não poderia sair naquela noite. Hoje você não sai, e foi, acho, a primeira vez que eu o ouvi falando comigo. Contra a sua vontade eu saí, mas ele me encontrou na rua, e me esgoelou. Marcus, tá tudo bem? Tatiana nada entendeu, eu disse que sim, vamo dar um rolé, e a gente saiu dali direto pro quarto dela, onde ficamos ocupados um dentro do outro das quatro às sete da manhã.

Foi uma noite relativamente tranquila não fosse o carimbo das unhas de Tatiana no meu pescoço, me contradizendo e atraindo os olhares do porteiro do prédio dela e das senhoras a caminho da feira às dez, na rua Dez. Eu falei que não era pra você sair, não falei?

Deve ser droga, né, olha só, é tão magrinho ele, e quando recobrei minha visão, três cabecinhas brancas, preocupadas e curiosas me bloqueavam do sol de dezembro e da minha respiração. Você tá bem, meu filho, tô sim, foi só uma vertigem mesmo, obrigado, e enquanto ia me afastando do chão onde quedei, ainda podia ouvir conjecturas pequenas sobre as unhas de Tatiana.

Mas aquilo era um aviso. E o segundo, conforme apontava o que me restava de juízo. Talvez eu tivesse motivos pra me preocupar, as visitas dele agora eram mais frequentes, mas a maior parte do tempo eu evitava pensar nisso. O que eu gostava de pensar era no gosto de Tatiana às cinco da manhã, nas viagens que eu nunca teria dinheiro pra fazer, ou em como é lenta a vida das tartarugas, avaliando a vida de todas as tartarugas que caminham lentamente sobre a terra pela vida da minha, Severina, que tem idade pra ser minha avó. E aí, Jesus multiplicou os pães e os peixes, e todo mundo pôde comer. Mamãe, Jesus é mágico? A menina perguntou, olhou pra mim e sorriu. Nem eu nem a mãe dela sabíamos a resposta. Pergunta de criança é mais difícil que pergunta de adulto. Olha, mamãe, por que esse moço tem cara de triste? Menina, fica quieta, desculpa, moço, e desceram dois pontos depois. É como eu disse.

Desviando de velhos e crianças curiosas, finalmente chego em casa. Já morei em tantas casas, mas o que me dá realmente certeza de estar em casa é o perfume da nicotina em todos os cômodos, que muito mais enfático que todas aquelas plaquinhas de madeira que se compram nas lojas de 1,99, avisa que aqui mora um fumante. Que aqui mora um fumante compulsivo. Um fumante apaixonado. Um fumante terminal.

- Seria mais fácil ter me ouvido, não seria?
- Quem tá aí?
- Para com isso, você sabe muito bem quem tá falando.
- Quero que você vá embora, ou eu vou chamar a polícia. Como entrou aqui?!
- Você é tão burro que ainda não entendeu, né?
- Não entendi o que?
- Melhor tu ficar esperto. É a tua vida em jogo. E eu ganho se você perder.
- Mas o que você tá falando? Oi? Ei, cadê você?

Do mesmo jeito que ele vem, ele desaparece.

Quando parei de cheirar, e isso já devia somar uns dez anos, saí limpo de tudo. Nunca tive dívida com ninguém, entrava e saía de qualquer lugar na maior tranquilidade. Mas diante de uma ameaça dessas, quem acionar? Polícia? A terapeuta que abandonei há dez semanas? Jesus, o mágico? Sem saber o que fazer, nada mais sensato que fumar um cigarro na varanda. E o maço, vazio. Merda. Dez andares sem elevador pelo prazer da nicotina perfumada e sorridente abrindo caminho com as mãos, feito uma sereia, por entre a flora negra dos pêlos do meu nariz e as formas estranhas dos meus próprios interiores por mim nunca vistos, porque a nicotina me conhece melhor que eu. Quando esse elevador volta a funcionar, seu Geraldo? Ih, seu Marcus, isso aí é com o síndico. Mas ele não comentou nada com você? Até o momento não. Tá certo, boa noite, seu Geraldo. Boa noite, seu Marcus.

Tá tudo bem, Marcus?

Já estava me acostumando com Tatiana enunciando nossos diálogos perguntando pela minha saúde. Dez andares depois, retornei a ligação evitada no sétimo andar. Sua voz tá péssima, você sabe, né? O elevador ainda tá ruim aqui, Tatiana. São vinte andares, se eu contar o percurso todo. Hm, entendi. Só liguei pra dizer que achei sua identidade. Ah, ótimo, eu nem sabia que havia perdido. Pela mudança de timbre, ela sorriu do outro lado. Boa noite, Marcus. Boa noite, Tati.

- Gosto quando você fuma. Você não deveria fumar, mas fica incrível quando fuma. Fica com cara de inteligente.
- Já mandei você embora, não mandei?
- Mandou, mandou sim, mas eu só vou embora quando eu quero. E agora eu não quero. Eu quero ficar aqui com você, na varanda. Podemos ser amigos, sabia?
- Não podemos.
- Claro que podemos. Um amigo nunca deixa o outro só. E é por isso que eu tô aqui. Tô contigo até o fim.

Fumo, ignorando a presença do meu novo amigo. Ele comenta alguma coisa sobre como são pequenas as luzes da cidade, mas o quanto a luz é a mais poderosa das forças, e faz mais alguns outros comentários pros quais não dispenso atenção. Pego no sono e durmo na varanda mesmo, e quem me avisa dessa inconsequência é a luz do sol, invasora, a mais poderosa das forças. Ele tinha razão.

- Olha, eu fiz seu café
- Não vou gostar de você por isso. Quero que me deixe em paz, e só.

Severina me olhando do canto da cozinha. Parecia cansada da minha lentidão matinal, e veio se arrastando, pré-histórica, na minha direção. O que será que Severina pensava de mim?

Confiro no espelho o estrago que o tempo sedimentou no rio assoreado dos meus sulcos de velho de quase quarenta e dois anos. Magro, ainda. Talvez pior porque magro, despertando a pena das crianças e dos velhos de passagem. Os poros pretos das margens, a barba rala, e a intimidade triste com o meu próprio reflexo é quebrada pela voz intrometida dele me avisando que hoje é dia de consulta.

- Hoje é dia de consulta, você se lembra, né?
Não respondo. Ele insiste.
- Hoje é dia de consulta, você se lembra?
- Sei

Ele desaparece.

A rua, tão cheia de cor. Minha camiseta verde fazendo par com as cores nas roupas dos bebês e das plantas e dos sinais de trânsito. Verde também é a cor da bancada do hospital, mas um verde clínico. A boca do doutor Andrade diz uma coisa, mas seus olhos dizem outra. Olha, Marcus, seria bom que você parasse de fumar, diz a boca. Olha, Marcus, você já visitou as Maldivas? dizem os olhos.

A rua de Tatiana é cheia de jacarandás. É tão cheia de jacarandás que alguém esperto o suficiente, ao invés de nominá-la com o nome de algum bandeirante, astronauta, governador ou médico, simplesmente lhe chamou de Rua dos Jacarandás. Na janela do segundo andar, Tatiana finge não me esperar, e sei que finge porque está maquiada, o que constato quando ela abre a porta com seu sorriso habitual, cheio de flores. Hum, tá cheiroso, a mão corre a cintura, automática, não mais que você, e demoro minha língua dentro da boca dela por alguns minutos. Foi ao médico? Fui. O que ele disse? Me perguntou se eu já havia visitado as Maldivas. Que pergunta estranha. Tô estudando, infelizmente você não vai poder ficar muito tempo. O que é uma pena, porque, pelo menos enquanto estou com Tatiana, ele não vem incomodar. Sem problemas, vim mais porque tava de passagem, e aproveitei pra pegar a identidade. Hm, ela tá lá no meu quarto. Em cima da cama.

Diferente da rua de Tatiana, a minha é cheia de pombos. E como já se sabe, os pombos fazem muita sujeira. Ficam aquelas nuances entre o branco e o preto, das asas que aninham o vírus que vai matar a humanidade à merda que eles acertam nos vidros dos carros inadvertida ou inevitavelmente parados na rua. Nada do elevador, seu Geraldo? Nada. Cento e oitenta degraus físicos para uma relação de mil e oitocentos degraus mentais. Abro a porta, ele fala.

- Precisamos ter uma conversa. Hoje.
- Não preciso ter conversa alguma com você.
- Precisa, sim.

Tudo o que sei é da insuportável dor de ouvido que sinto ao perceber Severina caminhando ao meu redor. É como se eu fosse capaz de ouvir o menor ruído, o ruído até mesmo do silêncio, e todos os ruídos doem. Estou acordado e deitado no chão da sala. Eu desmaiei. Ele me levanta e me leva para a varanda.

O horário de verão faz a noite chegar às oito e quinze. Vencido pelo cansaço, eu e ele ficamos fumando um cigarro na varanda.

- Desse mês você não passa. Desculpa te dizer.
- Mentira sua.
- Não, não é. Você viu. Eu ganhei. Tomei tudo já. Tô em todos os lugares.
- Você faz tanta questão disso assim?
- Não foi uma escolha minha.
- Se não é sua, é de quem?
- Quando a gente ignora um problema, ele cresce, Marcus.
- Você gosta de ser um problema pras pessoas?
- É a minha condição.
- Por que não escolheu ser uma flor? Um animal doméstico? Uma música!
- É a minha condição, Marcus.

O sol se posiciona no céu de maneira tal que tinge todos os vidros de todas as janelas de um laranja brilhante, e todas as janelas se olham e tremem no centro da cidade. É um belo espetáculo da luz poderosa. "É a minha condição", ele diz. E a minha, qual é? Esperar a morte me nocautear através desse monstro, que explodiu da laringe por todo o resto? E será que aceitá-lo faria com que se calasse, e me deixasse ter esses trinta dias decrescentes em paz? Quanto é uma passagem pras Maldivas? Sem saber o que fazer, nada mais sensato que fumar um cigarro na varanda. E o maço, vazio. Merda.

quinta-feira, 12 de novembro de 2015

Furta-cor

De costas à face oposta do espelho
Existe outro espelho, e no meio,
onde a luz cai bruta
nasce uma luz-fruta
a luz fruta-cor.

Do lado de dentro do espelho
Infinitiza outro espelho
de onde brota uma inexata trufa
Inexata, a trufa-flor

De que cor ficam os espelhos quando se olham nos olhos?

terça-feira, 3 de novembro de 2015

Depois do eclipse

Não que este seja um fato extraordinário, mas as coincidências são verdade. As coincidências, inclusive, costumam carregar verdades mais bem elaboradas do que pode imaginar a marcha lenta do cotidiano. Por isso me retenho, olho devagar: há sinais por toda parte. Por toda parte.

Ainda me são nítidos os joelhos proeminentes de Lúcia na varanda, aqueles joelhos colados, cascas de ferida recente, arranhões, e são aqueles joelhos a única lembrança clara que de fato tenho dela. Talvez ela usasse óculos, talvez não. Talvez usasse aparelho, talvez não. Talvez tivesse cabelos lisos enfiados na faixa; nada disso vou lembrar. Como Lúcia, toda vizinhança estava contando nos dedos quanto tempo ainda faltava para o eclipse. Um olho no relógio, o outro no céu. O velho Braga não saíra de casa o dia inteiro, disse que tinha de dar comida aos pássaros, que não gostava de eclipse. Foi o único. No imenso terreno baldio atrás de sua casa, os meninos se reuniam naquela tarde para folhear revistas de mulher nua. Eram cinco ou seis. Dona Esmeralda também espreitava, sentinela, a cabeça em bobes azuis. Dona Esmeralda era gentil e maternal com todas as pessoas. Foi dela que recebi uma afetuosa trouxa com bolos de castanha pouco antes de deixar a cidade. Seu Braga. Os meninos, imberbes ainda. Lúcia batendo os pés na varanda de casa, encolhida, o queixo nos joelhos. Há muito tempo eu não pensava nesse dia.

Uma vez ouvi dizer que só não conseguimos esquecer as coisas que, em alguma instância, nos traumatizam. E eu sei que mesmo o que é belo e bom pode traumatizar. Em alemão, por "traumm" entende-se sonho. Associação feita, é inescapável concluir que sonhos traumatizam, especialmente os mais belos. Sonhos traumatizam. Talvez só se trate de um jocoso capricho linguístico. Mas talvez essa via heterodoxa exprima a mais perversa natureza do sonho em si: sonhos são linhas mágicas costurando e descosturando as passagens por onde a beleza caminha. A beleza, traumatizatória.

Um a um, todos foram saindo de casa. A hora do eclipse, à vista. As crianças se empurrando em brincadeiras de rua, os adultos disfarçando suas próprias crianças em comentários superficiais com as mãos nos cotovelos. Chovia uma chuva meio amarelada, incerta, deixando o dia meio amarelo, deu na televisão que talvez a chuva comprometesse a visibilidade, mas em cada coração se sabia que não, e se sabia que naquela tarde sol e lua se beijariam por onze minutos, onze anos a idade de Lúcia na varanda, onze segundos o tempo total do gozo de um menino, onze minutos e todas as belezas do mundo se firmam e padecem. Onze os bobes azuis na cabeça de Dona Esmeralda, e onze também os pássaros prisioneiros e bem alimentados de Braga, o velho. O eclipse está no chão.

Onze minutos.

Só sei que se ouviu um grito vindo do terreno baldio. Não. Da casa do Braga. A vizinha o encontrou com um meio-sorriso terno e confortável e gelado, sentado numa cadeira de palha, as duas mãos nos encostos, feito um rei. Os meninos, que chegaram depois do grito, abriram todas as gaiolas, e foi uma pequena revoada de periquitos, canários-belgas, sabiás. Aproveitaram, ainda, para tomarem pra si as mangas, que de tão intensas, se desprendiam dos galhos da mangueira sem resistência.

 Dona Esmeralda nunca mais foi vista. Ninguém soube dela. Nunca mais cheiro de bolo de canela perfumando a rua, nunca mais favores, nunca mais bobes azuis na janela. Mas a ultima lembrança que tenho daquele lugar e daquele dia é de Lúcia.

Lúcia no centro da violência das belezas. Lúcia chorando, desesperada na varanda, e afastando de si as próprias roupas, tingidas no meio por uma mancha indissolúvel do que parecia ser o primeiro café do primeiro dos dias.

domingo, 25 de outubro de 2015

Em silêncio

Quando se pensar

grande
poderoso
gostoso
esperto
malandro
inteligente

demais

Lembre-se que

As supernovas e os buracos-negros e os sóis que borbulham e tudo o mais que está lá fora
que ainda não é conhecido

acontece em silêncio.

quinta-feira, 22 de outubro de 2015

E ele vai castigar os Maus

Todos esses
Corpos
Porcos
Aí deitados no chão
Esfregando pés e axilas
E bundas e peitos e culhão
Todos esses
Corpos porcos
Cada um cabendo
Cada outro sendo
Um na palma outro da mão
Hocus
Pocus
E a mágica se fez
Dos corpos porcos
suando salgrada a desnuda tez
Atirem seus parcos corpos
À pira da vez
Queimem de luz seus corpos
Porcos
Christi Corpus tem inveja
De vocês.

Macumba

Eu vou te prender
Nas tranças do meu cabelo
Passeando teu nome
Pelos meus fios
Pelos meus dedos

Vai ficar bonito
O meu cabelo assim - ornado
Com as conchas do mar e
as letras do teu nome
Amarrado
Eu duvido você conseguir fugir

Eu vou te prender
Nas tranças do meu cabelo.

sexta-feira, 16 de outubro de 2015

Quarando

 Não tinha mais que 7 anos, mas me lembro. Minha avó acordava cedo, para aproveitar que a casa ainda dormia, e ia lavar os lençóis. Sentada num banquinho de madeira gasto, espremia sua barriga grande entre as pernas e os ombros enquanto as mãos e os braços se ocupavam de esfregar repetida e veementemente aqueles grandes tecidos brancos. Não tinha máquina de lavar na casa de praia. Ela sintonizava o rádio em uma estação AM, e ouvia as notícias, as promoções de supermercado, e pequenos fatos fantásticos do cotidiano. Às vezes tocava um samba, e ela discretamente sacudia suas cadeiras.
 A bacia de prata fazia o rosto de minha avó brilhar, salpicando-o das pequenas estrelas que nasciam entre a luz e a água. Ela olhava pra mim e sorria, "vem ajudar a vovó", e eu ia segurar as pontas dos lençóis para deitá-los na grama e então, dentro de 7 minutos, todo o quintal havia se tornado um jardim do mais puro e branco algodão, cheirando a frescor e sabão, enquanto eu cuidadosamente caminhava entre eles testando meu equilíbrio ao me imaginar um títere de anjo suspenso pela vontade de um deus desconhecido.
 Naquela casa, todos os dias eram de sol.

sexta-feira, 9 de outubro de 2015

Poema tirado de um artigo de psicologia

Só as tripas dizem a verdade
Ou predizem o futuro

Triste resultado
Para nossos lóbulos frontais.

quinta-feira, 8 de outubro de 2015

segunda-feira, 5 de outubro de 2015

O grande pugilista

Percebi meu coração no meio da noite. Percebi que ele batia na garganta. Mas também batia nas mãos, batia na tatuagem do meu braço esquerdo - onde se inscreve um poema sobre não-ser - e batia, inclusive, no peito. Poderia bater por tantas coisas, o meu coração, e de fato bate; bate, inclusive, pelo (im)pulso biológico da existência. Bate pela pressão alta, pela pressão atmosférica, bate sob pressão. Grande pugilista, - touros indomáveis não o alcançam - de tanto esforço, meu coração, não duvido, me trairá cedo.

Meu coração não me deixa dormir.
E eu preciso trabalhar tão cedo amanhã de manhã.

sábado, 3 de outubro de 2015

Descabida

(Uma pausa)

Ocupo, por mania,
Apenas a metade
Inferior
Da minha própria cama.
Minha cama
(de solteira)
tem todas as medidas
convencionais
De uma cama
de solteira
normal.
Mas os meus pés, eles não cabem.
Eles se balançam do
lado de fora da cama
Pensando na última vez

que eu trepei aqui.

sexta-feira, 2 de outubro de 2015

Prototype

- Você não precisa ser tão linear, sabia?
- Eu não sou linear.
- (risos) É sim. Mas não vai assumir. Tudo bem. (risos)
- Tem uma mosca no seu milkshake.
- Que observadora!
- Nem tanto. A mosca tá aí, boiando. Você já engole mosca o bastante no dia-a-dia, acho que essa é evitável.
- Hum, O.K.. Um a um.
- Eu não sou linear. Já disse.
- Você também disse que não gostava de Red Hot Chili Peppers. Mas aí ouviu o Blood Sugar Sex Magik.
- Eu não gosto de Red Hot Chili Peppers. Um álbum bom não torna uma banda boa.
- Durona.
- Chato.
- Mimada.
- Problemático.
- Você é engraçada.
- Por que?
- Não é uma coisa específica. Eu só acho teu jeito engraçado. No fundo, você é uma tonta. (risos)
- E você tá apaixonado.
- Hahahahahahahahahahahahahahaha
- Não é óbvio?
- Tô falando, é por isso que você é engraçada.
- Posso te perguntar uma coisa?
- Não sei o número do meu CPF de cabeça.
- Isso é só comigo ou com todo mundo?
- Hum, quer saber se você é especial? Espertinha!
- E é assim que você trata as pessoas especiais?
- Se todo mundo é especial, ninguém é especial.
- Você é engraçado.
- Por que?
- Toda essa relutância elaborada pra negar que tá apaixonado.
- Você tá viajando.
- Durão.
- Irresistível.
- Babaca.
- Médium.

(pausa)

- Você gosta de mim?
- (demora) Não devia... mas gosto. Por que?
- Touché.
- O quê?
- Nada.
- O quê?
- (demora) Quando a gente diz que gosta das pessoas, o que sente é maior. Especialmente quando demora a responder e o final do verbo se arrasta dentro dos olhos.
- Hahahahahahahahahahaha, eu conheço esse jogo.
- Não tem jogo. Só tô te mostrando que você me fez de espelho pra uma coisa que tá sentindo. Mas eu devolvi. Quem tá apaixonada aqui é você.
- Você tem uma teoria pra tudo?
- Eu não. Mas sou bom leitor de sobrancelhas.
- E eu, de vácuos. Assume, ler o invisível é mais difícil.
- Então vamo fazer um pacto. Você assume que é linear. A gente vai pro cinema no sábado.
- Eu sou linear.
- Vamo pro cinema?
- Sim, vamo pro cinema.
Touché!

(https://www.youtube.com/watch?v=uqhJfjbNuQg)

Para Diogo

quinta-feira, 24 de setembro de 2015

Pequenos poemas do mar

A água
é viva
Mas não vemos
a água - alguém disse

O que vemos é
97% da água
E o vivo da água
que resta
(O vivo que não vemos)

É dor.


_ _ _ _ _


O mar vomita
Os vestígios de uma civilização
Há milênios destruída

Uma moeda carcomida
Uma rocha esfacelável
Um pingente de bronze

O mar vomita
Uma cidade inteira
Goteja-a na garganta das praias
Remonta-as todas na beira

I m p e r c e p t i v e l m e n t e

[...]

Chuta o que restou da coroa de ouro da imperatriz
O pé de um bebê aprendendo a nadar


_ _ _ _ _


O mar molha
A mágoa
E melhora a medula
(A memória é maior, maior que o mar)
O mel mole do mar
Lambe os milênios
Lento
Atento
Lento
Atento

Lento

Atento

Lento

Atento

Lento

Atento


Lento


Atento


Lento


Atento

Inundação

Fui abandonada no oceano. Completamente à deriva, o oceano morno como leito eterno enquanto lá de cima estrelas curiosas conjecturavam sobre a minha sorte. A noite no oceano faz com que você vire noite também, e você vira noite e vira água, de tão irrisória que é a sua presença no meio daquele choque: o choque te transforma em amálgama. Você, então, é uma não-existência própria, que flutua ao sabor das correntes do oceano. E ainda assim, nunca antes esteve tão viva.

Mal parece existir mais mundo além das cortinas da noite; porque não há pelo quê nem para quem gritar, o impulso é pra dentro, já que as águas são tão persuasivas. Submersão. Bem-vinda ao lado debaixo, bem vinda ao lado de dentro.

Uma cauda imensa abre caminho sem pedir licença, e o que era o resto da criatura é mistério. O mar noturno guarda todos os segredos da evolução da vida de uma maneira muito mais bonita e muito mais intensa do que qualquer representação é capaz de traduzir. E se revela, do oculto, o que parece uma moreia lânguida. Também imensa. Brilham miúdas luzes. Mais à frente dança, cheia de ventosas, uma língua que sobe e que desce, agitando a água - sei apenas pelas vibrações. A selvageria dos pulsos incita mais selvageria; pré-cambriano sentimento.

Subitamente as águas criam nervos: uma presença massiva, turva e cheia de força revolve o oceano e o crescendo prenuncia que o impacto vai vir de qualquer lugar - e será dantesco. Não entendo. Aprendi que todo destino de maremoto é areia. Mas toda a água se intumesce e o debater descontrolado dos meus braços denuncia: alguém vem vindo. Alguém que cavalga esses mares com a força de um dândi que os tem na palma da mão. Alguém vem de lá e vem furioso, vara o escuro, como o maior dos megalodontes, eu não deveria ter me deixado encantar pelo canto dessas águas, bato as pernas, a mão em concha, mas agora alguém chega como se fosse arrasar a vida com a implacabilidade da própria vida. Vibração, um grito abafa do lado de dentro, a onda abissal varre a consciência: o monstro é o oceano em si. Mas não morri.

Levanto. De êxtase, os olhos nem abrem. Acendo a luz, e vou tomar banho.

quinta-feira, 17 de setembro de 2015

Recorrências

"Seu nome completo. Data de nascimento? Profissão? Onde ocorreu o delito? Aqui, senhora, por aqui. Débora, agora é contigo."

Débora deveria ter 37 anos, era loira, um sorriso bonito e bem disposta. "Olá, tudo bem? Sua identidade, por favor?" e seguiram-se as perguntas protocolares. "Ele era moreno como, mais pra negro?" "Ele usou alguma arma?" "Mais ou menos que altura?" Débora computava todas as informações com sua rapidez quase estúpida, tac-tac-tac-tac, Débora fazia aquilo todos os dias, porque havia roubos todos os dias, porque havia ladrões todos os dias. Tac-tac-tac-tac, "o que ele disse pra você?", tac-tac-tac-tac, "enquanto termino aqui você dá uma olhada nesse caderno e vê se consegue identificar o sujeito, mas só confirma se é o autor do crime se tiver certeza, tudo bem?"

Eram dois os cadernos e eram grossos. Cada folha que se passava, um desconforto avolumante. Cinco, sete, oito folhas plastificadas e um rosto de cada lado, e era como se aqueles homens olhassem diretamente para quem investigasse o caderno. Veja bem, olhar é um exercício de dois. E em cada olhar uma faca, um ódio, uma fome diferente e qualquer um que folheasse o caderno dos rostos deveria, por pavor ou por decência, se sentir psicologicamente assaltado de sua média paz.

Wellingtons e Jeffersons e Leandros e Raimundos e Dentinhos e Rafaéis e Orelhas, mas também Marques, Silvas, Moreiras, Damascenos, de Jesus e por um momento foi possível o delírio de ver alguns deles sendo citados formalmente no desenvolvimento de algum projeto social, num jornal de grande circulação, na palestra da universidade; não fosse - ainda - tão certa e tão flagrante a teoria da predestinação. Vinte, vinte e cinco, vinte e sete folhas, Jorge é assaltante de carros, vinte e nove, Fábio aparenta 16, Maicou está identificado com uma etiqueta onde consta "saidinha de banco", quarenta, Valdemir foi fotografado com os olhos fechados. "O que ele levou de você, só o celular?" "É, é realmente complicado, a gente sai cedo pra trabalhar..."

Débora encerra e imprime a ficha no mesmo instante que a última folha do segundo caderno é virada.

As pontas dos meus dedos estão tingidas do negro das circunstâncias.

terça-feira, 8 de setembro de 2015

O olho da rua

"Tão bonita e tão triste. Ou está cansada? Ou está com a cabeça muito longe pra olhar na minha direção e me dar um sorriso? Um sorriso, é! É com você mesmo que eu tô falando, moça. Nossa, agora gostei de ver, isso é que é um sorriso de verdade. Eu não gosto de ver uma moça bonita como você com esse olhar perdido. Isso aqui é terra de Madame Satã, moça. Eu sei que é fácil se perder. Tem que ficar esperta com tudo: é com os bolsos e é com o coração. Saiu, olhou pro lado, segura o celular, a gente nunca sabe quem tá na esquina. É gente desse mundo e do outro. Tô tão feliz que você falou comigo, moça, às vezes ninguém fala por medo - por falta de vontade também, porque eu não sou o cara mais legal do mundo, né, mas quase sempre é mais por medo. Eu? Eu tenho 32 anos, 1,95 e aqui nos meus dentes tem esse buraco porque o meu pai gosta de me esculachar. Porque eu sou morador de rua, né. Tênis, elástico no short, cabelo e barba limpo, isso tem muito tempo, não sei o que é. Eu vendia óculos na rua, às vezes arrumava um pra mim, e o resto do dinheiro dava pra comer alguma coisa. Hoje eu nem vendo óculos mais. Às vezes eu fico aqui, olhando quem sobe e desce a escadaria e eu já notei que é gente do mundo inteiro. Alguma coisa traz essas pessoas pra cá e é coisa forte. Já senti. Moça, com todo o respeito, a senhora teria qualquer moedinha pra inteirar na minha cachaça? Não? Não tem problema, o melhor você já fez, você sorriu pra mim. Inteligente? Eu? Hahahaha, eu não, moça, eu só observo as pessoas. De verdade. Lúcio. Meu nome é Lúcio, mas não é de Lúcifer não. Fica com Deus, querida, mas cuidado que aqui é terra de Madame Satã.
Tem que ficar esperta com tudo."

Lúcio, morador de rua, num monólogo aos pés da Escadaria Selarón, na Lapa, a dois dias do carnaval.

terça-feira, 25 de agosto de 2015

Enquanto Cassandra dormia

Fiquei meia hora olhando pra porta branca que antepunha o dia branco do lado de fora. Cassandra dormia alheia um sono de mais de 400 anos, mas agora toda a cidade estava branca: os carros estavam brancos, os telhados estavam brancos, os batentes das janelas, brancos, as flores, brancas, as marquises, brancas. Tenho certeza que você se lembra daquela vez, há dois anos, em Mondorra, quando nós dois tivemos a impressão de que todas as pessoas passavam por nós como se soubessem algum segredo nosso. E elas passavam por nós, levando os nossos segredos com elas dentro dos olhos. Os nossos segredos, aqueles mais imundos. Você sabe. Era uma sensação estranha, era como perder alguma coisa. Mondorra também estava branca naquela ocasião.

Pois deve ser o branco, então. Não é no escuro das vielas que as pessoas não se veem. É na luz. É clara e evidentemente na luz que os detalhes escapam todos, e escapam os vincos nos rostos, os vincos quase invisíveis e placentários de tantas expressões que os segundos engolem como aos infinitesimais crustáceos engolem as baleias azuis dos infinitos mares gelados do oceano Índico.

Escombros. Ontem sonhei que abria a porta branca e tudo o que havia era escombros do lado de fora. Eu começava a andar por cima deles e de repente me dava conta de que cobras retiam meus pés, mas as cobras eram os fios dos teus cabelos, e os escombros eram a tua cabeça, e quando me dei conta disso, tua cabeça ficou movediça. Eu nunca duvidei que na tua cabeça havia escombros. Mas ficou engraçado tentar me salvar da destruição pulando para um lobo mais seguro da tua cabeça. Logo a tua cabeça (eu tentei alcançar o hemisfério esquerdo - dizem que é onde mora a lógica - mas uma das suas sinapses me deu um choque no pé, e eu caí antes). Quando eu acordei, olhei pela janela. Estava amanhecendo, Cassandra ainda dormia. Cassandra iria de destruir o mundo um dia, mas que bom seria se começasse pelos hemisférios da tua cabeça.

Às vezes escuto uns estrondos, e não sei se saem da minha mente ou se são dos aviões, que mesmo muitos quilômetros depois, deixam esse rastro sonoro no ar. Você já ouviu? É feito o som de um trovão, mas mais contínuo, calmo e baixo, como se ao encontrarem as nuvens, as turbinas chorassem. Nuvens são coisas fascinantes principalmente porque apesar de tão altas e portadoras de uma das coisas mais valiosas que existem, continuam humildes, basicamente emprestando sua vida para comportar o que não pode ser comportado nem transportado facilmente. Porque somente a leveza sustenta algumas coisas. Talvez por isso sejam capazes de assumir tantas formas e continuar a mesma coisa. Só as nuvens são verdadeiramente livres. Transcendentais.

Mas não essa fina nuvem branca que turva os caminhos e as pessoas. Essa nuvem que tomou conta da cidade da noite pro dia, não como em Mondorra (aliás, fomos embora de lá antes. Não soubemos o que aconteceu.) Diferente das nuvens do céu, nuvens de chão metem medo. O mau presságio é respirável, todo mundo sabe e está na boca de todos, mas todos se recusam a falar, porque o falar, em si, é monstro que se agiganta quando mencionado. É a palavra saindo da boca e voltando, tentáculo maldito, pra sufocar a boca da qual saiu. Em algum lugar eu ouvi que existe um termo pra isso. Não me lembro. Já foi dito que falar de depressão nos deixa mais propensos a ter depressão.  Deve ser por isso que as pessoas não falam de depressão. Deve ser por isso que as pessoas não falam dessa nuvem que está aqui, entrando e saindo das nossas casas, e ainda assim não falam sobre ela. Talvez seja porque ninguém veja o rabo da nuvem.

Enquanto isso os sonhos pesam. Dentro de cada sonho, uma verdade imperscrutável, secreta. A ligação com o mundo branco ao redor da minha casa existe, mas é vitralizada pelo sonho; nunca inteiriça, frontal. Enquanto isso, ouço meus vizinhos fazendo amor. Enquanto isso, os gatos que se movem nos telhados parecem entes do próprio branco surgido. Enquanto isso, você deixou tudo pra trás e foi cavalgar a improbabilidade de uma vida sem endereços. Enquanto isso, Cassandra ainda dormia.

No entanto, foi poucos dias antes de você chegar que eu entendi. O estresse, a tensão, o desequilíbrio. Eu pude ouvir o gelo rachando a quilômetros de distância. Eu pude ouvir aquela revoada anormal dos pássaros. Foi dias antes, e tudo pareceu tão óbvio, tão óbvio. Dos meus vizinhos, que se amavam com regularidade, eu passei a ouvir a discórdia. Vários acidentes de carro aconteceram no mesmo dia, mas não pela falta de visibilidade provocada pelo branco, mas porque as pessoas estavam irritadas, num estado coletivo de suspensão do juízo. A água de toda a cidade se tingiu dum ocre forte na cor e no cheiro. Deus, como fui perceber tão tarde. Era você voltando, não tinha como ser outra coisa.

E você chegou às 5:28 de uma manhã na qual eu não conseguia dormir, coincidindo com o despertar de Cassandra. Ninguém nunca poderia imaginar. Quando finalmente abri a porta branca, eram você e Cassandra juntos entrando dentro de mim. Eram todos os meus vizinhos, olhando tontos para cima, como se estivessem em dormente processo de abdução. Ainda era escuro, mas Cassandra se revolvia lá de cima, e gritava violentamente com ódio de nós, em linhas verticais de fogo líquido e selvagem, sucessivas vezes. Você segurou minha mão sem acreditar. Eu vi Cassandra nos teus olhos, dentro das tuas lágrimas quentes, porque a gente iria morrer e sabia. Você veio pra morrer comigo. Cassandra olhou pra nós mais uma vez, e brilhou da cor da morte. Da cor da nossa morte. Veio num trote negro e quase macio. Mas ainda tive tempo de rir: o branco não existia mais. O espaço não existia mais. Eu vi cada centímetro do que o tempo fez em você naqueles últimos meses. E nunca no mundo um abraço poderia ter sido mais completo ou mais pontual ou mais necessário.



quinta-feira, 20 de agosto de 2015

Sem título

Muitas coisas poderiam ser ditas sobre a aversão de Adorno com relação às unhas escuras das mulheres. Nenhuma delas que consta nesses escritos é verdade, mas poderiam ser. Adorno, afinal, morreu ontem, sem nunca ter me dito o porquê de tamanha repulsa. Ele sequer conseguia fixar o olhar em unhas femininas que haviam sido pintadas em tons de roxo, vinho, preto. Mas, morto Adorno, qualquer conjectura é assumível. Crível, inclusive.

Uma vez, em uma conversa de porta entreaberta, ele teria dito a um amigo que, quando criança, foi passar uns dias na casa de uma avó que morava numa cidade pequena na região do Gratário. Privada de maiores modernidades, estas nem mesmo faziam falta: a pequena cidade era conhecida pelos seus fortes vendavais, que varriam tudo a qualquer época do ano e, ao espalhar as folhas coloridas das árvores pelo chão, reconfiguravam a aparência do lugar diversas vezes por dia. Adorno corria pela casa da avó, e gostava de imaginar que cada vez que as portas se fechavam bruscamente pela força do vento, diziam NÃO! a quem tivesse ficado do lado de fora. Apesar de tanta beleza, teria sido nessa cidade que a paranóia de Adorno teve início.

Numa tarde como qualquer outra, sua avó sofrera um pequeno acidente doméstico oriundo da fantasia de Adorno. Coisa de criança. A avó o perseguira pela casa, insistindo que almoçasse. Mais rápido ao chegar a seu quarto, Adorno, deitado na cama, se recusava a comer e, quando a avó o alcançou, o NÃO! da porta encontrou suas unhas num choque forte. A velha deu um grito que o vendaval espalhou pela casa, atordoando o menino. No dia seguinte, todas as unhas da sua mão esquerda, a excetuar pelo polegar, estavam tingidas do profundo roxo do sangue pisado e da insolência de Adorno.

Na adolescência, tinha um grande amigo, Fabrício. Na época em que se conheceram, ambos eram muito novos, e estavam descobrindo o amor. Pelo menos Fabrício. Adorno tendia à frieza. O que se sabe é que Fabrício havia tido uma paixão arrebatadora por uma menina, Fernanda. Mas por alguma razão, Fernanda e Fabrício não podiam ficar juntos. Melhor: não conseguiam. Fernanda era dona de um gênio fortíssimo, uma mulher enorme, engolidora de gente, e cabia, inteira, em uma certa música de Caetano Veloso. Quando o romance problemático entre Fernanda e Fabrício chegou ao fim, este entrou em depressão, e passou as duas últimas semanas de sua curta vida ouvindo insistentemente tal música. O laudo pericial confirmou que, no último momento, Fabrício havia se arrependido do suicídio, mas era tarde. Não adiantaram todas as palavras de Adorno dispensadas ao amigo, nos muitos meses que antecederam sua morte; todas as noites não dormidas, toda cachaça entornada. Por alguma razão, não era à Fernanda que Adorno atribuía a responsabilidade do infortúnio; mas à música de Caetano, que, por descrever Fernanda, cimentava sua imagem na mente de Fabrício, repetidamente. Sob o efeito da hipnose auditiva, Fabrício perdera a guerra para o amor. E Adorno ganhara seu trauma de unhas negras.

Diz-se ainda que Adorno também tinha medo de aranhas. A fobia teria começado quando, numa feira de ciências da escola, ele teria ficado de frente com uma tarântula imensa que havia escapado de um dos aquários que havia quebrado no transporte de uma sala para outra. Na ocasião, Adorno não só teria encontrado a aranha, como ela andou sobre ele, e, apesar de inofensiva, só a mera imagem do animal movimentando suas presas levou o garoto ao desmaio. Por algum motivo, tempos depois, ele passara a associar as unhas escuras às presas da aranha, e todas as mãos de mulheres tornaram-se tarantulares quando tamborilavam as unhas escuras sobre qualquer superfície. Eram todas a tarântula perdida da feira de ciências. Aquela que caminhou sobre sua pele provocando sinistras cócegas psicológicas. Eram mil tarântulas, e sempre duas por vez.

Mas nada disso é verdade. Só pode ser. Adorno, o próprio, nada pode dizer. Se pudesse, talvez o pavor lhe devolvesse a vida: havia inúmeras mulheres de vestes e unhas em luto ao redor do seu corpo frio na noite de ontem.


domingo, 9 de agosto de 2015

Sempre

Gosto da assunção de determinadas palavras. Curioso em si: parece uma percepção contraditória já que as palavras são arbitrárias, mas de tanto transitar da boca pros ouvidos elas parecem se deitar eternamente dentro do sentido que propõem, como se sempre estivessem estado lá. Quando foi mesmo que começaram a florescer as cracas no peito dos navios afundados?

A palavra marca, primeiramente, o que existe. O conceituável. O nominável. Num esforço, muitas vezes se esmerilha entre combinações laboriosas de prefixos e sufixos para atender até o que parece mais imprecisável. Inexistente a palavra, desconsiderada a existência. Lovecraft já havia nos dado a dica em 27.

Mas gosto da assunção de determinadas palavras.

Do vasto universo de palavras que por si só pesam toneladas, me amedronta e fascina tudo o que gira em torno dessa invenção que se grafa "sempre".

"Sempre" é uma palavra universal.

Traduz a ideia de uma paz absoluta e imperturbável, de uma serenidade abstrata e corrosiva; de estado inalterável de qualquer coisa: gente, rochas, governos, matéria, forma. Inexorabilidade. Nem mesmo "nunca" é páreo para "sempre". "Sempre" é a palavra que vencerá todas as outras pelo cansaço. "Força" cede, todo "invencível" tem um ponto fraco, e mesmo Drácula prova que "imortal" tem seus limites. Mas "sempre" segue se imiscuindo pela vida de todas as coisas, incansável e oxidante, desde a primeira planária a todos os mistérios que se seguem depois do que for último. Não há antes ou depois diante de "sempre". "Sempre" ignora recortes, impetuoso.

"Sempre", portanto, não é apenas um mero advérbio de tempo.
"Sempre" é o próprio tempo em si.

segunda-feira, 20 de julho de 2015

Sobre afeto e laranjas

A repetição sempre guarda algo de extraordinário nos invisíveis pontos das intersecções. Uma vez que nunca são perfeitas, deixam brechas, de tamanhos variados, para reacontecimentos. Sei disso nas pequenas cruzes que minha avó fazia com seus dedos curtos na toalha de renda sobre a mesa da cozinha. Ela fazia círculos nos cabelos - a repetição em todos os lugares - e cruzes com os dedos quando começava a contar uma história diferente. Talvez fosse o espasmo de uma vida inteira no catolicismo, mas, automático ou não, aquele era sempre um discreto sinal de mudança de narrativa. Minha avó e seus detalhes.

Silogismo barato: se na repetição há sempre algo de extraordinário, e se na velhice são possíveis pontes com a repetição, talvez então a velhice reserve extraordinaridades. Especialmente a velhice da minha avó. Entre recordações carcomidas, fotografias queimadas e anacolutos emocionais, minha avó me oferecia amostras simples de filosofia material aos domingos entre duas e seis da tarde, e falava sobre quase tudo, porque quase tudo era objeto de sua atenção. Ela gostava de ver aviões de seu terraço, por exemplo. Havia até ganhado um binóculo de presente para acompanhar seus vôos, imaginando repetidas vezes o quão estranha era a total subtração do peso daqueles componentes de metal, que consequentemente se desprendiam do chão. Pouco convencida da infalibilidade dessa física - minha filha, você viu na televisão, caiu mais um avião!, não era raro ela começar uma conversa assim - minha avó tinha medo de andar de avião. E não andava.

Cruzes. Agora eu tenho dez anos e estamos na casa de praia. Ela descasca uma laranja. Com a boca cheia, me diz que minha mãe havia me arrumado inteira, banho tomado, vestido, cabelo penteado; mas que por alguma razão eu teimava em me embrenhar nos matagais altos que circundavam a casa à procura de possíveis animais. Você queria ser veterinária, falava isso o tempo todo - cospe os caroços na mão em forma de concha. Sua mãe ficava louca, "é pena não ter uma sucuri aí pra te engolir", ela gritava. Mas a sucuri não apareceu, eu não me tornei veterinária e dezessete anos depois isso ainda a leva às gargalhadas. Ela passa as unhas sobre um dos meus braços, carinhosamente. Pega pra si outra laranja.

Cruzes. Laranja e banana são minhas frutas preferidas. Criada na pobreza, a gente não tinha luxo, meu pai só podia me dar laranja e banana, então laranja e banana são minhas frutas preferidas. E de tanto que ela dizia aquilo eu já não conseguia passar por bananas e laranjas sem pensar nela. Uma vez, lhe propus o desafio de descascar uma laranja inteira deixando a casca numa espiral intacta dos cortes da faca. Aquela era uma de suas grandes habilidades. E o cheiro azedo das laranjas era cheio de memória. Minha avó descascando laranjas pros meus primos em 94. Minha avó descascando laranja pro meu avô em 97. Minha avó descascando laranjas na atemporalidade do descascar em que eu me imaginava subindo ou descendo o infinito caracol cítrico. A memória não é lógica.

Às vezes - muitas vezes - não é sobre o conteúdo das anedotas, mas sobre a maneira como elas são colocadas. A tentativa de emulação que elas trazem, como se pudessem nos devolver quantos anos possíveis no tempo. E no hábito inconsciente da recontação das histórias era inferível que aquele talvez fosse um recurso para evitar o escoamento das lembranças, como um menino que segura, inerte nos braços, seu cachorro que morreu. Minha outra avó havia sido vítima do Alzheimer. Quantas amigas minha avó já teria perdido para a morte não é possível estimar, mas das piores mortes que se tem notícia, a demência é uma delas porque a demência é a perda do afeto. Se encastelar por dentro, e partir as pontes que dão para o mundo. A persistência da minha avó em manter-se recontando as mesmas histórias era tática de sobrevivência. Eu não tenho dúvidas disso.

O que era claro era que havia afeto. Quanto mais velha, mais afetuosa minha avó se tornou. As histórias eram as mesmas, mas o afeto havia crescido de alguma forma não-aferível, não-nominável. Esse crescendo abrigava espaço pra pequenas minúcias que não haviam surgido até então. Histórias recentes de um passado ainda mais distante, quando ela tinha dezenove anos e trabalhava na intendência da guerra e a maria-fumaça, expelindo carvão vivo, fazia pequenas queimaduras no seu vestido simples. Ou mesmo seu interesse (sincero) na minha conturbada vida amorosa. Maria passe na sua frente, minha filha.

Certamente era um afeto maior. Até as laranjas ficaram mais doces.

terça-feira, 16 de junho de 2015

eu só sei que fui atravessada inteira por um bonde e o bonde vinha dos seus olhos curiosos e até incrédulos quando eu fiquei ali parada do seu lado e você só tomou consciência de que aquela mulher era eu quando perguntei aceita cartão à recepcionista você ficou me olhando como quem olha para um fantasma ou qualquer outra coisa não-definível e eu fiquei te olhando como quem olha para um fantasma ou qualquer outra coisa não-definível e entre um fantasma e outro se detiveram cinco segundos intermináveis que iam se desmanchando numa velocidade loucamente ambígua conforme caíam sobre sua barba purpurinada sua cabeça purpurinada seu olhar purpurinado e o excesso de luz cegou meus olhos e cegou minha boca e secou meus olhos e secou minha boca e tudo o que ficou guardado secando ao longo de três pointless meses me voltou numa enxurrada impiedosa e incontinente pelo nosso silêncio gritante pela nossa completa imobilidade pela nossa total incapacidade de esboçar qualquer reação além dessa materialização escrota que serviu de resposta a esse intervalo de três meses em que desapareceram os sorrisos os pratos vegetarianos as músicas de belchior os beijos na minha vulva e tudo o mais que pareceu um dia ser o prenúncio do céu num simples quarto a três quadras da estação saens pena.

sexta-feira, 29 de maio de 2015

Mad Max Fury Road: porque toda mulher precisa ver esse filme

ATENÇÃO: Contém Spoilers (lá pro final!)

Me ressabiam unanimidades. Sei que há quem sustente, em absoluto, argumentos sobre a excelência ou o fracasso para toda e qualquer coisa e a superficialidade em geral não me espanta. Mas o que vi, li e ouvi sobre Mad Max Fury Road foram opiniões unânimes sobre seu indiscutível mérito de pessoas das mais variadas correntes ideológicas, dentro e fora do feminismo. Um filme hollywoodiano que agrade a gregas e a troianas? Resolvi prestar atenção.

Então fui ver Mad Max.



Pessoalmente  precisei de um espaço de quase uma semana para poder me distanciar do impacto inicial que o filme me causou para organizar qualquer parecer sobre ele - e confesso que, depois de Imperator Furiosa, eu ainda não consegui achar as palavras certas. Muitas coisas circulam no filme com fluidez, mas está bem claro que Mad Max é uma obra firmemente ancorada em questões pertinentes à mulher, que depois de décadas de aparente vilipêndio, reacenderam por toda parte e viraram objeto de teorização e problematização tanto quanto de consumo pop - e nesse sentido, muito se deve à internet e suas diferentes formas de organização e militância. Estou longe de ser a primeira a apontar que Mad Max é um filme feminista, mas o que acho surpreendente é como esse filme conseguiu a aprovação universal de todas as vertentes feministas de maneira tão expressiva tanto quanto despertou, ainda, o interesse dos homens para ele. Até aqui, eu achava isso impossível.

Quando digo que é surpreendente tal consenso é porque considero os muitos vértices do feminismo atual: as divisões existem; umas bem específicas, outras um pouco menos, e nenhuma deveria se sobrepôr à outra porque cada vivência implica uma perspectiva. Apesar disso, as discussões seguem intermináveis (ótimo), cada militante defendendo as pautas de sua corrente, e muito dificilmente há acordo. Aí reside o grande feito de Mad Max: contemplar (ou interseccionalizar) de pautas liberais a radicais.

Apesar do personagem-titulo ser um homem, o filme é francamente ginocentrado até fim, a começar pelo fato de que o momento em que tudo realmente tem início é quando vemos a nuca marcada de Charlize Theron. Aliás, desconfio que todas as cenas que precederam esta tiveram por função única sinalizar quem seria o tal Max - uma vez que sua própria história praticamente desaparece depois disso. O filme traz uma infinidade de símbolos que estão direta - e intransferivelmente - ligados à mulher: objetificação feminina, gravidez compulsória, estupro marital, parto, misandria e, por fim, o símbolo maior que alicerça esse arco: a sororidade. No filme, a sororidade (ou a misandria, conforme a escolha de quem estiver lendo) é resistência. A insurreição protagonizada por Furiosa se baseia e se sustenta na luta pela sobrevivência não só dela própria, mas como na libertação da classe mais explorada daquela comunidade: as mulheres. No entanto, pontuar isso não abrange os propósitos de Furiosa porque ela é uma mulher que pensa coletivamente, e seu pensar coletivo se centra na proteção e auxílio à independência de outras mulheres. Por falar nelas, a escolha pelas atrizes jovens que representam as esposas de Immortan Joe chama atenção para a objetificação feminina de maneira muito interessante quando da bela cena onde elas são apresentadas à platéia pela primeira vez: em trajes sumários, o mínimo de decência que se pode esperar do homem que assiste o filme é que ele tenha uma sensação de desconforto por desejar mulheres que acabaram de deixar um cativeiro sexual. Não muito atrás há, ainda, espaço para mulheres mais velhas e a questão da misandria torna-se evidente nelas pela vivência que já experimentaram - e os percalços que já tiveram que passar - nas mãos dos homens. Existe no filme um diálogo entre uma anciã e uma das esposas que, para feministas mais escoladas, ilustra perfeitamente o choque de duas linhas feministas distintas, e esse diálogo diz respeito à misandria. Misandria foi o que livrou essas mulheres da morte, e a sororidade foi o que as manteve vivas. Não à toa o clã se chama Vuvalini.

                               

Igualmente fortes, e por si só, eloqüentes, são também os símbolos que se associam aos homens e trazem à lume o fato do quanto a masculinidade é predatória - o que nos deixa com uma resposta amarga e óbvia à uma das perguntas deixadas na ala onde Immortan Joe mantinha seu harém. Immortan Joe, aliás, é a personificação hiperbolizada do homem comum: numa das primeiras cenas em que o vemos, lá estão a decrepitude em querer-se para sempre jovem, o poder, e um símbolo de morte é posicionado justamente à frente de seu falo num close generoso.

É oportuno situar Mad Max numa perspectiva de opostos perfeitos. Se aos homens está associada a destruição, a guerra, o espólio e a violência gratuita, às mulheres cabem a vida, o (re)nascimento, a diplomacia, a razoabilidade. Curioso observar que é o destempero masculino que leva o mundo à falência, enquanto, por tanto tempo, foram responsabilizados os úteros das mulheres por tudo o que supostamente fugiria de um comportamento aceitável.

Para além dos elementos presentes em Mad Max, tem-se, ainda, o seu pano de fundo.

O cinema tem uma vasta literatura a cerca de road movies. Entretanto, por mais prolífico que seja, ainda é tímida a produção cinematográfica desse gênero se a submetemos ao Bechdel Test. Ainda, são diferentes as motivações que levam mulheres e homens a cair na estrada. Se os homens o fazem em busca de auto-conhecimento, as mulheres recorrem à ela pela necessidade da fuga. Foi assim com a Alice de Scorcese, com Thelma e Louise, com a Felicidade da brasileira Ana Carolina. E com Mad Max, que leva a insígnia de road movie até no nome, não é diferente. Mesmo aqui, numa outra instância, encontramos mais uma desconstrução feita por Miller: Imperator Furiosa deixa no chinelo qualquer machista que se atreva a dizer que mulher não sabe dirigir.

Mad Max teve duas oportunidades de derrapar e se render às saídas fáceis e esperadas pelo público e tenho meus motivos para crer que, se não fosse pela presença de Eve Ensler nos bastidores, poderíamos ver essas derrapagens acontecerem. Max e Furiosa, por exemplo, não se tornam um casal. Não caberia torná-los um casal, e isso pode ser desapontador para algumas audiências. Noutro momento, uma das emocionantes cenas pode ser lida como a ascensão do matriarcado, enquanto o homem fica fora do holofote porque se sabe que sua posição foi a de coadjuvante. Essa glória não lhe pertence, e esse entendimento é fundamental para compreender Mad Max enquanto um filme feminista.

É importante perceber essa inclinação do diretor para que as futuras produções de filmes de ação sejam cada vez mais desmonopolizadas pelos homens, abrindo, assim, terreno para que mulheres ou pessoas trans possam se sobressair sem estarem sempre nos mesmos lugares de adereço, aberração ou qualquer outra lacuna onde não haja agência ou autonomia. O reconhecimento e a perda de privilégios dos homens é peça-chave para que esse tipo de empreitada seja bem-sucedida. Mas esse reconhecimento e consequente perda de privilégios não virá gentil nem rapidamente: vai ter muita luta até lá, e apesar de ser um filme só, Mad Max deu um importante soco inicial nesse processo.

Com um braço só.

segunda-feira, 20 de abril de 2015

Relação de importâncias

Antes era o teu cheiro
Chegando, selvagem
Abrindo caminho pelos pêlos
Do meu nariz

Hoje, bem mais gostoso
É o cheiro não teu
Mas de um bom feijão fresco
Que me deixa feliz.

sábado, 18 de abril de 2015

Perguntas de um milhão de dólares

Das minhas maiores curiosidades, entender o tempo é uma delas. Todas aquelas teorias fisicoquânticas eu acompanhei sem muito sucesso. Quantos anos envelheci em seis anos? Me peguei pensando. Quantos fios de cabelo eu perdi, quão amarelos meus dentes ficaram, quantas novas marcas eu ganhei no meu corpo? Me encontrei olhando uma fotografia em preto e branco de cinco pessoas desconhecidas em um carnaval. Sem razão aparente me detive naquela fotografia. A foto não era tão antiga, só tinha seis anos. Ou, caramba, já tinha seis anos. Quantos anos envelheci em seis anos?

A passagem do tempo não me incomoda. Juro. Mas o que me intriga é ser humana demais, e não perceber o tempo em sua horizontalidade. Basicamente é isso o que não me torna deus - se deus existir. Aliás, deve ser incrível observar o tempo sem recortes. Seria esse o único desejo para o gênio que nunca vai chegar. Aliás, se deus existir, ele vai ter que me responder um monte de coisas.

O tempo é elástico. É eterno. E é um. E eu me perco constantemente nos seus túneis. Relatividade. Olhar para as estrelas é olhar para o passado, já me disseram. Mas como é olhar fisicamente para o passado? É quando passa o grande amor da sua vida de mãos dadas com outra pessoa, e você lembra, um tanto resignada, porquê não era o grande amor da sua vida. Ou porquê foi. Pode se olhar para o horizonte, também. O horizonte, assim como as estrelas, sempre esteve lá. Ou para o tronco de uma sequóia, ou para o meu filho de dez anos.

Talvez matéria. Acho que a matéria é a resposta. Se a matéria é o tempo concreto, então, quando eu olho pra você, eu vejo o tempo, de alguma maneira. Talvez te entender seja, de alguma maneira, por mais arbitrária que seja, capturar e entender o tempo. E é bom acreditar nisso.

Obrigada.

Correspondentes

Você se lembra daquelas beliches em que a gente dormia no navio? Aquelas, com cortininhas? Hoje vi uma daquelas naquele antiquário lá perto da casa que a gente morou na Tijuca. Sei lá, pensei em te dizer. Me lembro de você abrindo e fechando as cortininhas, fingindo que era um mágico, cê sempre foi tão cheio de truques. Tava me lembrando daquela viagem há um tempo atrás. Se lembra também daquelas flores na escrivaninha? É engraçado que apesar de adorá-las, eu não me lembro delas, só lembro de você reclamando que eram muito feias e que era muito brega ter flores numa escrivaninha. É curioso gostar tanto de uma coisa e depois de um tempo perder a memória, como se aquela coisa nunca tivesse existido. Tenho medo disso às vezes, você sabe que o meu avô morreu de Alzheimer.

Aqui tem chovido bastante. Já é a segunda vez na semana que dá anúncio de ciclone na televisão. Sua carta demorou quase dois meses pra chegar, eu não sei porque você ainda insiste nisso, tendo facebook, e-mail, tudo. Pior é quando chega, já estou acostumado a abrir os envelopes e ter só dois parágrafos, um desperdício de dinheiro e tempo. Às vezes penso que você é louca, porque não é possível. Sério, por que você não faz um facebook? As coisas seriam tão mais fáceis. Eu tô bem, emagreci quase sete quilos. Veganizei agora. Tá difícil, mas eu me lembro do seu sorriso quando dizia que iria cogitar a ideia. Às vezes eu até chegava a achar que o branco do seu sorriso era porque você não comia carne. Saudade do seu sorriso.

Hoje fui à feira e soube que o filho do Manuel - aquele feirante simpático, você lembra? - morreu num acidente. Soube porque perguntei por ele. Cheguei em casa e não consegui comer nada. A morte é uma coisa assustadora.
Enquanto eu escrevo tem um gongolo andando perto da janela. É como desafiar o meu passado olhar pra esse bicho, acho que é a única coisa que eu não consigo desconstruir na vida. Não é o primeiro que eu vejo por aqui. Morte e gongolos. Os dois últimos medos que eu tenho. Não ando dormindo direito.

Até que dessa vez só demorou um mês pra carta chegar. Fiquei triste pela perda do Manuel. É sempre complicado isso, de perder alguém num acidente. Aqui eu tenho visto cada coisa, você não faz idéia. As notícias que chegam pro Brasil não dão conta nem da metade. Na última chuva forte que teve um dos bairros ficou debaixo d'água, e eu soube que morreu gente lá. E nem mesmo com as enchentes os conflitos cessam. Vontade de ir embora às vezes. Perdi mais dois quilos. Tô me adaptando aos poucos. Minha barba tá quase igual à do Tom Hanks no "Náufrago". Eu tô todo quase igual ao Tom Hanks. Espero que você esteja bem.

Comecei as aulas de dança. Até que enfim! Tô feliz com isso, acho que vai adicionar leveza à minha vida. Que frase engraçada, "adicionar leveza". Também voltei a pensar no doutorado - você bem sabe que quando eu começo projetos, nunca começo um só. Outra coisa importante aconteceu. Voltei a falar com a minha irmã. Foi a maior caminhada da minha vida cruzar esses cinco quarteirões, é como se eu tivesse andando pela primeira vez em dez anos. Ela teve um bebê, e eu não sabia. Me senti culpada, chorei o dia todo, mas agora estamos bem. Ela inclusive deve chegar daqui a pouco porque combinamos que hoje o almoço seria aqui. Comprei umas cenouras de um laranja tão vivo que se eu espremê-las acho que consigo pintar uma tela da Yoko. Minha mãe colocou à venda a casa em Maricá. Ninguém vai mais lá depois que meu avô morreu mesmo.

Que maravilha você ter voltado a falar com a sua irmã. E a notícia do doutorado também. Queria saber mais sobre isso, mas já sei como você é, tá tudo no nosso acordo. Hoje fui fotografar a cidade. O tempo ajudou, e fiz umas fotos incríveis que tô te mandando aqui na carta. A da menina de tranças é pra você. Sua mesmo. Teve um show numa praça movimentada que fica perto do lugar onde eu tô morando ontem, conheci um pessoal bacana. Não sei bem como você vai encarar isso, sinceramente acho que não tem problema te falar, mas eu fiquei com uma mulher lá. Na verdade, eu e essa mulher temos saído há algum tempo. E eu tô gostando dela. Sabe, eu esperei você por muito tempo. Você sabe que o que me trouxe pra cá não foi só o trabalho. Tô gostando mesmo da Diana. É claro que eu ainda penso em você, senão eu não tava aqui escrevendo, mas também acho que o que a gente viveu só tem lugar na memória mesmo. Não quero que você pense que tô te responsabilizando por tudo, mas eu acho que a gente podia ter tido outro destino, se você assim quisesse. Um beijo.

Comprei umas flores bem vistosas pra pôr na minha escrivaninha. Tem feito bastante sol por aqui.

quinta-feira, 9 de abril de 2015

Roleta Russa

Às vezes
Quase sem querer
Me encontro
Pensando
Que necessariamente passo
Pelo dia da minha morte
Ano
Após
Ano.

Haicai da Tranquilidade

Recentemente concluí
Que meu salário
E minha menstruação
Caem
No mesmo dia
Só pra me lembrar
Que o mínimo do razoável
Ainda está
No lugar.

quinta-feira, 26 de março de 2015

A beleza é perene

Tantos dizem da beleza passageira
Beleza que é presságio
Do que da superfície não adensa
E que fica sempre suspensa

Beleza, a grande rainha do mundo,
Desde Homero saudada por todos os povos
Dona das reverências mais sinceras e desesperadas
Tantos dizem da beleza, com a beleza, pela beleza

A beleza nunca acaba: se transforma
Como muda o gelo a própria forma
Em cristal líquido se converte, mas mantendo o seu sentido
As suas paredes, a sua estrutura, a sua composição

A beleza nunca se dissipa: se multiplica
Se metamorfoseada em novas belezas
Vai ocupar novos corpos e novos tempos
E deixar pelo caminho elegias mais inspiradas

A beleza nunca morre: ela fica
Ela se recusa, e se debate: beleza não há quem prenda
À beleza caprichosa bálsamo, flor, oferenda
E mesmo enquanto objeto
Dentro de dois olhos não se comporta, mas explode
De tão plena

Absoluta, vibra entre as imagens, e se reverbera
Produzindo ecos próprios no corredor do tempo
Alia-se ao poder - flerte tão antigo -
A beleza deita, inerte, o mais irascível inimigo

Cochichos e falas miúdas
À beleza não atingem
Não sabem é que ri, a beleza,
De toda maledicência:
Sabendo-se maior que a pequenez do descrédito
A beleza com tédio atira
Pequenos dardos à grande pira

Tantos dizem da beleza passageira
Danada em si, tão sorrateira
Beleza despudorada e faceira
Ao que a própria ignora, solene:
A ingenuidade e a maldade com os homens caem
florescendo em verde grama;

A beleza é perene
A beleza é perene
A beleza é perene.

segunda-feira, 2 de março de 2015

As quatro paredes do rosto

Vomitei quando te vi pela segunda vez. Abri caminho com os braços, navegando entre as pessoas, para que você não me visse. Então vomitei. Fazia algumas semanas que não te via depois do seu sumiço - explicado - e o choque de ver você chegar misturou muitas coisas na minha cabeça.

Quando apaixonada, meu corpo experimenta sensações muito próxima às que sente alguém que está doente. São tonturas, pressão alta, ansiedade, intensificação da asma, arritmia; é todo um quadro de sintomas incrivelmente físicos. Se te vejo, eles eclodem vesuvianamente e em uníssono. Por mais que eu tenha tentado, ficou impossível disfarçar isso de você. E você acabou gostando de saber.

Olha, eu não sei amar direito, rapaz. O amor me deixa leve e me dá cansaço - até mais que isso, o amor me dá fadiga - e me faz dormir 8 horas por noite. Talvez o amor seja mesmo isso. Mas sei me apaixonar. Como ninguém. Vivo profunda e leoninamente grávida de paixões impossíveis, me rendo a todas elas quando na minha porta tocam campainha, presto continência e serviço, bato cabeça. É como se cada uma desnudasse um mundo novo e a minha eterna capacidade de ir ainda mais além dentro de mim. Me esqueço todas as lágrimas, e fórmulas, e precauções, e receitas, e ignoro todos os sinais de "pare" à minha frente. Controle nulo. Mas nunca fiz mal nenhum a ninguém por conta disso - a não ser, é claro, a mim. É que eu não resisto. É que eu simplesmente não resisto.

Você caminhou pela praça, com os olhos nas barraquinhas. Assinou uma petição, comprou uma camiseta vermelha, bebeu uma cerveja. E não me viu. Não deixei que me visse. Porque eu não sustento o peso dos teus olhos sobre mim. Porque eu não sustentaria seu bom humor galopante, seguida do seu abraço - minhas narinas ainda guardam o cheiro bom do seu abraço - e dos seus beijos no meu rosto. Nem por um minuto eu sustentaria. Ou, pelo menos, essa seria a versão contra-factual das coisas: quando você me viu, acenou e veio ao meu encontro, me abraçou e, meio sem jeito, me apresentou sua namorada nova, moça simpática.

Te sorri de volta e cumprimentei - sem contudo parar de sentir ondas de pequenas mortes percorrendo cada nervo meu.