terça-feira, 7 de setembro de 2021

As chaves

 Não pôde acreditar quando se viu diante de um evento que, de tão temido, já tinha sido experimentado até num sonho estranho que envolvia portas e cartas. Mais especificamente ela sendo espremida nesse movimento enquanto duas mãos gigantes embaralhavam múltiplas portas como quem está prestes a começar um jogo preparando-o sem pressa. Naquele dia acordou sobressaltada, com um sorriso confuso, mais nas sobrancelhas que nas maçãs do rosto. "Coisa de sonho", pensou, enquanto o resto do dia tratava de diluir aquelas imagens incompreensíveis. Mas havia nódulos dessa suposta diluição, ainda, que foram prontamente acessados quando ela socou as costas da porta do banheiro, ejetando, do poço da garganta, tudo o que poderia:

-- PUTA QUE PARIU, CARALHO!

Não era responsabilidade sua, tantas vezes antes que havia falado com Francisco sobre o problema da porta. "Eu vou consertar", tantas vezes antes Francisco lhe respondera, com a convicção dos preguiçosos. "Eu quero ver o dia que essa merda emperrar com alguém dentro e não tiver ninguém em casa, Chico. Porra!" "Isso é impossível, Andrea, moram 7 pessoas nessa casa. Ainda que aconteça, sempre vai ter alguém pra ajudar". Na promessa da impossibilidade eles seguiram, seguros em sua certeira previsão dos eventos. Mas Taísa e Tarsila decidiram ir pra Acapulco por duas semanas, de quebra convencendo também Vinícius (3 a menos); Francisco estava de frila marcado e hoje, dia 07 de setembro, era aniversário da mãe de Paula, que morava em Vargem Grande. O universo e seu jeitinho de nos informar sobre nossa arrogância: Andrea trancada no banheiro, na terrível companhia de si mesma.

Os palavrões cresciam no eco do banheiro bem à conveniência da palavra. Mas arrefecido o som, um fato enche de agulhas as pálpebras da confinada: ela não trouxera o celular. E naquela hora o celular seria muito mais útil que uma chave, que um grampo, que uma prece. Formigas quentes passeiam em seus olhos, e dessa vez, o silêncio é o sinal da implosão de sua fúria. "Ah!", bate palmas e ri em deboche sobre si mesma. "Ah!".

Mas lembra que está no banheiro, e lembra para que servem os banheiros.

Puxa a calcinha devagar e senta-se na privada, mastigando a língua e deslocando a mandíbula pra lá e pra cá. Respira profundamente, a insatisfação colonizando cada centímetro de seus gestos. Repete o movimento, e começa a acalmar-se, lentamente. Que estranho aquele silêncio branco das 4 horas da tarde de um dia sem sol. Leva a mão à cabeça, lembra lividamente do sonho das portas de cartas. "Tenho certeza que era isso, como não poderia ser?" E percebe em seu ventre navegar uma criatura longa e mole por fora, mas articulada. Sente seu movimento e sua consciência, que a criatura sabe para onde ir e vai tranquila, suave, conversando com Andrea dentro de seus olhos (fechados) sobre como o que é pra sair encontra a saída, leve o tempo que levar. Que sensação antiga de paz. Que sensação de paz antiga. E que vem de novo, em deliciosa sequência, marcando seu rastro de ponta delgada de enguia no expirar prazeroso que soltam as narinas de Andrea: é o fim de seu curso. Andrea desenrola o papel higiênico, e se higieniza, calada. 

Nua, se olha no espelho, aproxima seu rosto dele, e no rosto da Andrea de lá vê cravos, pintas, e uma pequena marca herdada de um acidente doméstico. Não se acaricia e vai para o banho. Taísa, Tarsila e Vinícius em Acapulco estão fazendo selfies na praia, e Tarsila até tratou de comprar um bikini que se parecesse com o figurino de Chiquinha na Uruguaiana, que customizou ao chegar em casa. Apesar de muito tranquilo o casal Cassel-Kunakey, é intragável sua assessora de mídia, assim como algumas pessoas da equipe responsável pela propaganda do perfume que Chico havia sido escalado pra fotografar em pleno feriado (o cachê valia a pena, ele sabia). Dona Albertina, depois de muito beber e contar causos, soprava as velas pelo seu sexagésimo oitavo aniversário enquanto Paula disfarçava mal o quanto os mosquitos em profusão lhe deixavam desconfortável. 

Em lugar da acelerada bateria de David Lovering de sempre o que Andrea ouve dessa vez é o som da água contra seu corpo, e por ele vão muitas águas: a que nele bate, a que o percorre, a que cansa. A água faz veios por sobre a pele de Andrea, que faz caretas, atriz. "Sou um mutante das profundezas! Tremei, ordinários, tremei! Preparem-se para morrerem, todos vocês, dispensáveis mortais esquálidos pela mão de quem comanda o próprio Kraken!" ri-se, velha e ridícula, o gelado da água companheira testando-lhe o tato, o cheiro invisível de enxofre longínquo saindo dos furinhos do chuveiro, e ela se agarrando toda na cauda desse cheiro e indo com ele por dentro do furinho, por dentro do cano, por dentro das metrópoles tubulares onde nunca foi ninguém, e chegando à estação de tratamento de águas da cidade vê homens conversando uniformizados com pranchetas sem demorar neles os olhos; busca o umbigo da água e o encontra, lá longe, escondido entre as areias, os seixos e as folhas. A água não procura abrir o caminho porque é o caminho, diz a voz em sua cabeça ao ver aquele espirro borbulhante e incontinente saindo de algum ponto onde os órgãos da terra permitem ter sua existência presumida, e nele ela afoga as mãos num nada como quem brinca com o limite entre duas dimensões, até abrir os olhos em seu banheiro, sobressaltada, e fechar a torneira. As gotas mais grossas se desprendem, atrasadas e últimas, da caixa reservatória do chuveiro. Pisa o chão com o cuidado de quem aterrissa em algum lugar, toca devagar o vidro do box até puxar pra si uma toalha na qual enrola o corpo frio, e pensa que não está, naquele momento, muito diferente de um girino que acabou de nascer. Do lado de fora, uma porta range e ela ouve passos pela casa.

-- Andrea? 
-- Chico, quando eu sair daqui vou te matar, mas tudo bem.