quarta-feira, 13 de agosto de 2014

Julia

"A felicidade é a vitrine de um lugar que eu não posso entrar.", escreveu, concluindo mais um parágrafo sofrível no seu caderno de memórias. Às vezes, acordar no meio da noite pode ter suas vantagens, a cabeça assustada funciona melhor, o silêncio parece saído daqueles filmes do Hitchcock - e isso era uma coisa boa - e apesar do corpo descoberto de remédios àquela hora, talvez fosse aquela a única hora em que se sentir segura não parecia uma idéia absurda. Levantou e foi à cozinha. Encheu um copo de água até a metade, tô achando essa água amarela, não tomou tudo. Voltou ao quarto, abriu a janela e ficou com os olhos fundos na baía negra, forçando a vista até conseguir ver onde a água se dividia do céu.

Era seu último cigarro. Acendeu-o, enquanto com a outra mão manuseava o caderno e ia lendo o que havia escrito nos últimos dias. "Daí essa mulher veio na minha direção, a barriga protuberante de uma protuberante gravidez chegando antes dela; numa mão compras e na outra um menino de quase cinco anos chorando por qualquer motivo. Ela deveria ter a minha idade, e eu não sou tão velha assim. Dois filhos, compras, um vestido bonito com jeito de caro, e eu tive uma curiosidade fofoqueira sobre a vida dela durante aqueles cinco minutos. Ela parou, comprou um sorvete pro garoto, que calou o choro, sorvete coercitivo. Checou o celular, e sorriu. Pôs a mão sobre a barriga, e o menino também, abrindo um sorriso. Eles pareciam felizes, e isso é uma coisa que me desconcerta. Não por eles. Mas pela falta de dificuldade em ser feliz do resto das pessoas. A felicidade é a colina mais alta, mas há quem simplesmente disponha de elevador. A felicidade é a vitrine de um lugar que eu não posso entrar."

Já devia ser seu quinto caderno de memórias. Luiza insistia que ela devia compilar tudo, entrar em contato com uma editora, e dar um jeito de publicar. Ela ria e desconversava, aquilo não era material pra publicação. Mas Luiza discordava. "Isso pode ajudar muita gente, Julia. Já parou pra ver o quanto são ricas as coisas que você escreve?" Por educação, ela respondia que ia pensar. Não tinha nada de motivacional ou de construtivo em nada daquilo. Pelo contrário: aqueles eram os escritos de uma mulher à beira da morte. Se lidos por outro alguém à beira da morte, poderiam, facilmente, pôr a pessoa na mesma rota. E se havia uma coisa na qual ela acreditava era que, se fosse pra morrer, o melhor a se fazer era levar consigo o menor número de pessoas possível. Por esse motivo havia, voluntariamente, voltado para o apartamento em Niterói. Por esse motivo o casamento havia sido desfeito a tempo. Era melhor ficar sozinha.

Naqueles últimos meses, no entanto, estava ficando mais difícil. Toda suicida conhece aqueles dias. A morte brotava das paredes do apartamento feito mofo. Ela podia sentir sua força se esvaindo, ela podia sentir o braço quedando naquela peleja desigual. Quando ela não ia ao consultório, Luiza fazia o favor de aparecer. Luiza gostava dela, e parecia estar sempre temendo o pior. Chegava lá com uma expressão invariavalmente esbugalhada, que imediatamente se convertia numa espécie de pesar, de pena, e por fim, de uma pequena esperança. Luiza estava sendo uma boa amiga, e ela sabia disso; mas até contra essa possível amizade ela vinha lutando, porque bem sabia que o que tinha era contagioso. Não queria que Luiza ficasse triste, nada disso.

Se lembrou das acerolas na geladeira. Era tempo de aceloras. Comeu umas cinco, sete de uma vez só. Pelas aceloras ainda guardava alguma gratidão pela vida. Pelas aceloras.