segunda-feira, 17 de agosto de 2009

As senhoras

Elas sempre estavam ali. E não estavam. Todo mundo via, todo mundo sabia, e ninguém confirmava. A mais nova delas era tão discreta, tão sutil, tão imperceptível quanto uma prateleira de frascos vazios no meio do espasmo sonoro da família à qual a mais velha pertencia. A mais velha. Era uma leonina tão vulcânica, mas tinha, por doutrina, a sinceridade. Quizumbeira. Costumava rosnar para os amigos e namorados novos das sobrinhas adolescentes, até que caíssem no seu gosto ou que os admitisse. E sempre bebia demais, sempre passava do ponto. Talvez isso as equilibrasse.
E elas eram amigas há muitos anos. Se amavam muito, sempre cuidavam uma da outra. As crianças não entendiam aquilo. A mais nova era uma 'tia' sempre longínqua - afinal, onde estava o tio? E aquele véu de incompreensão notório dos menores também povoava a mente dos adultos. O que havia ali? Elas desconfortavelmente tinham ciência da incógnita.
Não se assimilava muito bem. Afinal, a senhora mais velha tinha um filho criado. Sobre a mais nova, pouco se sabia. E ali sempre figuravam. Nos casamentos, nas festas infantis, nos churrascos, nos almoços dominicais. Com aquela aura de uma questão em suspenso; algo que se sabe, mas que se tabuliza para que não se firam orgulhos. Assim elas eram. Duas pretas bonitas, comedidas, que rezavam a cartilha da continência para não escandalizar moralmente os reis.
E todos convinham, sem que fosse preciso verbalizar, que essa paz um tanto hipócrita era bem mais conveniente.

E deste modo, elas sempre seriam duas senhoras obscuras tomando café.

sexta-feira, 14 de agosto de 2009

Montanha-russa


Ela começa a subir, lenta e progressivamente, num movimento retilínio uniforme. Conforme ganha altura, cresce a tensão em mim, acentuada pelo ruído das suas engrenagens dando com os dentes uns nos outros. Daqui de cima dá pra ver bastante coisa, a vista parece ter expandido ou o horizonte parece maior, enquanto o céu está ao alcance dos dedos. Não sei.
Ela pára. Atrás de mim, os outros passageiros do vagão começam a gritar euforicamente, entre uma criança e outra que chora. A cena se congela assim por uns dez segundos, tanto para que se aprecie esse mirante quanto para potencializar a taquicardia na seqüência. Em seguida, o "crack" avisa que agora ela vai descer.
Quebrando numa curva bem fechada, ela furiosamente abocanha os primeiros trilhos para então mergulhar na queda livre que provoca, mesclando medo e exitação, aquela sensação absurdamente deliciosa e única que se derrama inteira sobre cada nervo do corpo em adrenalina, e só quem já experimentou sabe do que estou falando. Eu estou no primeiro banco do vagão, e a poderosa rajada de vento deforma as expressões do meu rosto. Ela vai subir de novo, mas numa elevação menor, para novamente se lançar do alto, em uma construção de ferro e sonho tão contorcida que desafia a engenharia humana. É pura física. É pura inércia. É puro encanto.
A essa altura, quem tivesse moedas no bolso já deve tê-las perdido para a gravidade. A volta do parafuso faz o delírio da galera, que de braços para o alto, saúda a emoção de estar ali. A tarde de sol coroa o cenário, e Daft Punk pedindo mais nas caixas de som dá voz à vontade de todos nós, que sabemos que o prazer está chegando ao fim. E ele vem, enfadonho, na desaceleração do carro ao encontro da estação, como quem acorda de um sonho bom. As pessoas que vão saindo, como eu, parecem rodopiar, sem concatenar os passos. A montanha entrou nelas, e elas vão ficar presas em sua mágica.
Pra sempre.

quinta-feira, 13 de agosto de 2009

Se quer caô... vai ter caô

O funk já é polêmico desde o seu berçário. Traz, na ferocidade lingüística de suas letras, na assinatura (muito física) de sua difusão, a expressão mais forte de uma massa marginalizada pela especulação capitalista que existe e que permeia todos os braços da sociedade, tendo aqui como objeto a carioca, de onde esse movimento é originário, ainda que seja oriundo da black music produzida nos E.U.A nos idos de 70. E a cultura do funk pulou quase todos os muros: do morro pro asfalto, do pobre pro rico, do preto pro branco, do Brasil pro mundo; mostrando, definitivamente, que este estilo, tanto musical quanto de vida, se incorporou a muitas das esferas que atingiu com o seu alcance referenciário.
Com essa repercussão toda, o funk, exposto, fica facilmente atacável pelos conservadores, retrógrados entre outras pessoas de mesma mentalidade, ou, simplesmente, pelos não-adeptos do gênero, que não conseguem enxergar nele uma unidade cultural massiva, que está muito além de sexo, drogas e tiroteio. Só que o funk, dessa vez, fez barulho alto demais.
Foi aprovada uma lei estadual que visa, literalmente, barrar o baile. O correto seria que ela fosse submetida a um longo trâmite, mas quem liga para o que é correto nesse país? Fundamentada em alegações de cunho duvidoso - tangenciando o preconceito e uma repressão de caráter ditatorial no que diz respeito, respectivamente, ao 'excesso de erotismo' das músicas e à autoridade conferida à polícia para acabar com a festa, invasivamente e sem aviso prévio - a controversa lei Álvaro Lins está levantando duas grandes ondas em progressivo choque: de um lado da mesa, os defensores, que apontam uma relação associativa dos bailes com a criminalidade, e que acreditam que esta seja uma medida válida e seus opositores que, além de considerarem uma alternativa autoritária, já anteveêm sua previsível ineficácia por conta de sua má-formação estrutural. E eles não estão errados.
Essa é uma emenda descaradament fascista, em cujo bojo habita o espectro de uma polícia integralista por essência. O funk é uma arte consolidada, e não há a menor necessidade - tanto quanto essa lei é desrespeitosa - do mesmo ter de se reafirmar a todo instante enquanto tal.
Inacreditáveis episódios como este infelizmente releêm, por exemplo, a presença reativa da polícia contra os sambistas do século passado, que eram violentamente repreendidos sob a frouxa acusação de vadiagem. Agora, pode até soar hilário, mas o preconceito só teve o trabalho de mudar de nome, e hoje é velado pela tênue cortina de hipocrisia. Isso é muito sério porque, dentre muitas outras razões para a institucionalização dessa medida, figura espinhosamente o fato do funk ser música de preto, ser música de pobre. E os discursos do preto e do pobre tendem, desde sempre, a ser silenciados por "forças maiores" para não criar alardes - ou seriam arrastões?
Seja como for o andamento da questão, vai dar caô. Porque agora, talvez pela primeira vez, reverbera, em todas as direções, uma voz que, através da promoção do diálogo em inúmeras rodas sociais, vai lutar contra esse abuso de poder. Uma voz mosaical, que abrange tanto a doméstica quanto o doutor, e em seu caráter unificado, representa uma real possibilidade da mudança não só do ponto de vista efetivo-pragmático, mas também na maneira de se pensar o funk enquanto um fractal identitário.

quarta-feira, 12 de agosto de 2009

A beleza do rascunho


Penso. Repenso. Dispenso. Risco, rabisco, concateno. A extremidade da caneta pendendo no canto da boca distraida. Os olhos castanhos perdidos nas linhas azuis. A tinta que salpica a palma da mão, a folha que pensa ser coração. A inquietude dos minutos.
O prazer ordinário e simples de manuscrever. O incansável e egoístico exercício da grafia perfeita, o vai-e-vem ruidoso que faz a esfera da caneta, que com um borrão desfaz o que deu errado. O que não encaixou. O preterido. O equivocado. O papel, em patchwork de manchas; manchas cobrindo pedaços inteiros de indecisão; manchas espalhadas, indentitárias.
O calo no Seu Vizinho, o peão da (minha) escrita. A graça, a importância da rasura. Faço, desfaço, melhoro. As imagens mentalizadas, que com muito esforço se afunilam para tentar sair pelo ducto estreito e libertador da caneta. A alforria viciosa, viciosa, viciosa de escrever. A construção. A hesitação. A seleção lexical. Gol!
O déficit entre um pensamento e outro. A estrutura organizacional do texto, a estrutura organizacional do papel, a disposição das palavras na folha, tão estrategicamente deitadas. Os pequenos borrões de tinta uma vez mais, que as costas do Mindinho carrega, sujando tudo o que fica pra trás. O amassar duma idéia que não prestou, e a cíclica sem final de começar de novo.
A arte impressa no testemunho.
A imaginação dançando pelo punho.
A beleza do rascunho.

Tamanho único

Chego à loja. Mal respiro entre as araras, a vendedora de sorriso aparafusado se apresenta e diz que, qualquer coisa, é só chamá-la. E eu chamo. Pergunto se tem dessa blusa tamanho M, a predominância da mulher brasileira - aliás, alguém precisa avisar a lojas como Colcci, Cantão, Farm e afins que as gordas também existem. Qual não é a minha surpresa quando ela me responde que aquela blusa que está suspensa pela minha mão é... M. "M? Tem certeza?" Pergunto, incrédula. "Sim, é porque esse M é pequeno mesmo..." Ué? Se o 'M' é pequeno, não seria ele... 'P'? Simples: etiquetaram errado a peça... certo? M, até onde eu sabia, era a inicial de médio, mas acho que os fabricantes de roupas, principalmente de lojas dessa estirpe aí ressemantizaram esse M pra mignon. E quem sofre sou eu: roliça, baixinha, seios pequenos, costas largas, bunda grande e perna grossa. Ó, moda excludente!
Para achar calças então... uma odisséia. Sou adepta da skinny, embora a balança já esteja no vermelho, apitando que é melhor eu arrumar outra coisa pra gostar. Mesmo assim, não abro mão. Geralmente, um descomplicado 42 resolve os meus problemas. Mas e a fôrma mal feita? E o gancho muito baixo? Apesar de adorar, não, eu não vim comprar saruel, cacete. E o cós muito alto? Hello, the 90's are gone, e hoje eu só vim atrás de uma impossível skinny! Uma harcoriedade, afinal, eu não sou a Giane Albertoni - e pra ser sincera, nem gostaria.
Etiquetas, etiquetas. Às vezes, a impressão que eu tenho é que etiquetaram tudo errado só de sacanagem. P pra parrudas e G, de galetos. E o que dizer do famigerado tamanho único, que pretende, abusada e abusivamente, universalizar os contornos do mulherio? Absurdo. Não sei se os homens passam por este tipo de problema, e acredito que não passem, mas nada faz mais sentido no universo bizarro das etiquetas, e achar um M ou 42 de verdade pode acabar virando um ofício razoavelmente remunerado num futuro não muito distante, no que depender da progressiva incoerência anatômica dos fabricantes de roupas.

quinta-feira, 6 de agosto de 2009

Perdas, ganhos e danos


Começou numa dança estranha
de palavras eletrônicas
de imagens difusas
de juras sem piso nem direção.
Quando eu vi,
Já tinha largado a casa.
Amor,
juízo.
Linhas imaginárias e intáteis
que me enquadravam dentro do aceitável
e do plausível.
Quando abri os olhos
Já não tinha mais chão, não tinha teto
Já não tinha mais onde escorar
Só o vácuo
Só o vão
O pedaço vacante de peito que me sobrava
a lamentar um outro tanto que você levava.
E eu abdiquei
de tudo o que era certo
tudo que era sólido
pela via mais torta e insegura
pelo deslumbramento,
pelo perigo
E dei de cara contigo.
Dei de dentes. E de pele, e de beijos, cheiros,
Um amálgama corporal gritado. Intenso.
Não durou muito. Não durou nada.
Saí dele aos pedaços,
confusa,
sem norte,
sem sorte
e sem reação.
Mas se quer(em) saber
Com todos os cacos que ficaram pelo chão,
Com toda a razão pelo ralo na contramão,
Eu faria tudo outra vez!
Porque o que aconteceu, ficou,
E o que enraiza na memória
Não se perde na história.