quarta-feira, 29 de junho de 2016

Outro lugar

E agora
tem teu cheiro na minha calma
no meio dos silêncios
das duas e meia da tarde

Vê que sobra
nesta parte
Qualquer coisa que me pertenceu
não, não foi você
fui eu

Tem litros de palavras despencando
Açude e sorte
Sedimentos no meio do corte
vão fechando

Fiam internas as minhas penélopes
no meio dos milênios
a imagem do teu sorriso cabendo
plácido
às duas e meia da tarde

segunda-feira, 27 de junho de 2016

Tradição oral

Teu pau dilatando o
túnel da minha garganta,
lágrimas honestas de devoção
Condição única:
sendo a verdade dura
que me interrompa a
respiração.

domingo, 19 de junho de 2016

Acordo entre senhores

Era de leite a cor da luz por entre os furos da cortina puída pelo tempo que entregava as primeiras horas daquele dia. Do lado de fora, Bonita se encolhia debaixo da proteção improvisada de madeira e feno, que já deveria estar bem úmida, tinha feito muito frio e chuva nas últimas semanas. Ela estava magra e fraca pra além da conta e aquilo era uma preocupação. Eles sabiam que ela não iria muito longe. Tinha também o problema das galinhas. Foi de olho vivo nessa situação que o pai tomou a decisão.

A mãe já tinha levantado porque o pai ia ter que ir à cidade mais cedo que de costume pra negociar aquela história, e era sabido que o pai não pensava bem de estômago vazio. Da última vez que isso aconteceu, foi acertar um problema com o Zé da Estância, falou coisas erradas e voltou com um dedo a menos e um aviso de que podia perder os outros nove. Por ali era preciso ter cuidado com o que se dissesse. Não alargar a hospitalidade nem a disposição das pessoas. No bar da estância, especialmente pela primeira vez, era uma talagada, agradecer, chapéu baixo e o recolhimento da própria presença em poucos minutos. Nada de alarde. Mesma coisa na casa das meninas. Não por elas, mas pela clientela. Seu Marconi não era afeito a alvoroços, era isso que sempre dizia. Quem brigasse lá dentro voltava mais não. Nunca é demais lembrar que respeito era bom e conservava os dentes, bem como talvez seja apenas da ordem do detalhe pontuar que por ali se sorria muito pouco.

O pai bebeu o café duma vez só, e xingou a mãe quando apertou o pão e a gema quente do ovo lhe pintou de um visgo amarelo os dedos. Ele odiava gema mole, mas o pai da mãe não comia gema de outra maneira que não fosse mole, daí que a mãe só acertava fazer ovo com aquela textura ruim, que não era nem uma coisa nem outra. E ouviu que era uma bicha burra que não sabia nem fritar um ovo, quer dizer, não tinha importância, a mãe só ouvia uns sons de alfinete agudos e sem sentido já tinha bem uns dois anos. O pai mastigava o café com pressa e desgosto, acertaria os arreios do cavalo e dali a pouco sumiria naquele matagal pra se encontrar com seu Marconi no centro da cidade.

Todo mundo conhecia seu Marconi. Do chefe de polícia ao padre, todos os boiadeiros e as velhas que iam comprar peixe no domingo de manhã. Foi dia desses que o pai teve uma prosa com ele no bar da estância, coisa rápida, mas os dois tinham ficado muito amigos desde então. Seu Marconi era um homem que sabia das coisas, e falava que gostava do pai porque achava que ele sabia também. A mãe gostava dele não. Era como se ele estivesse sempre procurando no olho das pessoas o que havia no osso das palavras, e ele achava, e quando achava ostentava seu sucesso na curva perene e estranha do seu sorriso. Nesse dia, o pai foi ter com ele a respeito daquele assunto. Quando chegou lá, seu Marconi estava ocupado, mas logo abriu espaço em sua agenda pra recebê-lo.

- Você tem certeza que não vai dar problema não, né? Porque sabe como é, aqui todo mundo gosta muito de falar... não que eu me importe com isso, mas ano que vem tem aquela história da eleição...
- Que isso, seu Marconi. A gente já falou sobre isso. Eu e a mulher já falamo com ela também. Tá tudo certo.
- E aquele detalhe que a gente tinha falado? Você tem certeza que... nunca?
- Nunca. Ela quase nem sai de casa. É a minha palavra, seu Marconi.
- Excelente. Fique tranquilo que sou de bom trato. Olha, eu tô acreditando em você, homem. Tenho certeza de que vai todo mundo sair ganhando!

Nessa hora o pai cancelou o que seria o esboço forçoso dum sorriso, como se tivesse engolido alguma coisa que era grossa demais pra passar pelo tubo do esôfago. Encolheu os ombros, olhou para seu Marconi que o olhava de volta, com uma espécie de confiança que só é partilhada quando dois homens chegam a um acordo, porque as bolas chegam a inchar de tanto vigor quando dois homens apertam as mãos depois de selada coisa assim. É assim que os dois haviam aprendido a virar homens.

Pouco antes de anoitecer o pai chegava em cima do cavalo cansado da viagem, e ao seu lado, Barbela vinha de cabeça baixa, com toda a placidez de quem não sente a vida passar. A mãe o viu da janela enquanto cortava cebolas pra janta. Quando se deu conta de Barbela, apertou os olhos e as lágrimas compulsórias da cebola foram se misturando às lágrimas outras que não queria chorar. Mas ou era aquilo ou eles morreriam de fome. Não seria a primeira vez que via acontecer, nem seria a última, mas não é todo mundo que sabe dançar conforme o mundo gira seu antigo disco. Ele chegou, molhou as mãos no tanque do lado de fora e sentou à mesa, perguntando pela menina. A mãe largou as cebolas na pequena pia, e saiu da casa. O pai não foi atrás.

O pai fumava um cachimbo na rede nos fundos da casa quando se ouviram duas sequências de palmas na frente da casa. Na mesma hora ele identificou as sequências, e veio a confirmação com a prata lisa do carro de seu Marconi brilhando na noite entre os dois moços que o acompanhavam sobre cavalos, um de cada lado. Ele chamou pela mãe, que fazia tranças na menina dentro do quarto enquanto contava que esse ano ela daria um jeito de fazer uma festa melhor que a do ano passado pelos seus treze anos dali a um mês. Perguntou se ela estaria animada com a ideia, ela assentiu com a cabeça que sim, perguntou se poderia chamar as amigas da escola, ao que a mãe limitou o número de amigas, mas isso também não tinha importância, porque a menina não tinha muitas amigas mesmo. Os dedos da voz do pai foram entrando no quarto antes dele, prensando o coração da mãe até que ele abriu a porta.

- Tá tudo pronto.

Era uma noite tão escura naquele dia que o pai poderia ter entregue a seu Marconi qualquer menina que não faria diferença. Mas foi a sua própria, porque o pai era um homem de palavra que acreditava na palavra de seu Marconi. Barbela já estava lá, não estava? A menina voltaria na manhã seguinte. O pai a conduziu ao carro prateado, e aberta a porta, seu Marconi havia virado um tio que a menina nunca conhecera. Comporte-se, e a porta se fechou num som metálico, e a luz dos faróis se afastando daquela casa velha e pequena ia apagando os contornos do pai na escuridão.

A menina apareceu no quintal de casa surgida na nuvem fria do dia, de modo bem menos cerimonioso que da noite anterior. Apesar do frio, não entrou em casa, mas ficou acocorada observando Barbela a uma distância muito curta. Barbela ruminava o silêncio da geada no quintal, e seu corpo projetava na grama rala um vulto pouco familiar, como se fosse esse mamífero em toda a sua extensão física um mau agouro. Até mugir mugia estranho. Mas todo mundo iria se acostumar com ela, cedo ou tarde, que ninguém em sã consciência se volta assim, hipócrita, à própria providência. Os flocos finos da geada iam coroando a cabeça de Barbela com minúsculos cristais de gelo, que caiam devagarinho.

quinta-feira, 16 de junho de 2016

17:28

São nos quandos e
na trepidação dos dias
que eu te vejo

você nunca está parado,
e nem existe na estabilidade mas
não foi por acaso que eu imprimi
eqüina
a força do meu peso sobre o cigarro
que descartei dois minutos depois de aceso

O cigarro tinha a cor do céu
que eu podia pisar, e pisaria até com você
mas você estava preso num escritório
a duas quadras da praia e nem verão era

você não teria nem essa desculpa para cogitar
se eu estaria jogando altinha na areia
se eu estaria tomando banho
ou uma caipirinha ou
tocando cavaquinho por alguns centavos

Mas ainda me interessam os quandos e
não por acaso hoje olhei pro céu
e não sei o que me deu mas
a hora ficou suspensa (acho que se perdeu)
porque tanto às 17:28 quanto às 5:28 o céu fica exatamente igual
e o único intervalo possível é sempre
o quando (eu já tinha te dito antes)
o único momento em que eu te vejo
é na trepidação dos dias

Em algum momento
os espaços revolucionam os cursos
em silêncio
mas disso nem eu sabia
até as 17:28 desse dia.