sábado, 27 de abril de 2013

Doses homeopáticas de cotidiano numa sala de espera


_ Você viu, menina, executaram a dentista no próprio consultório! Amarraram ela na cadeira e tacaram fogo.
_ É o final do mundo!
_ Deus me livre!

[...]

_ Olha só, a Sandy já tá com 30 anos, vi essa menina criança.
_ Essa não é a Sandy, mãe; é a Narciza.
_ Ah, tá... Narciza.

[...]

_ O problema são os cracudos. Eles ficam pra lá e pra cá na Avenida Brasil, outro dia teve um atropelamento sério por lá por causa de um que cruzou a pista. Meu genro tava lá. Disse que o caminhão passou e arrancou a cabeça do cara que caiu da moto tentando desviar do cracudo!
_ Só Jesus pra tomar conta deles. Não tem quem tome.
_ Menina, tô com uma dor irritante nas costas. Tomara que o doutor dê um jeito nisso.

[...]

_ Vocês viram a história da maluca do hospital, que matava os pacientes? Outro dia saiu a notícia de uma mulher que envenenava cachorrinhos! Tadinhos dos cachorrinhos! Ela botava chumbinho na ração e dava pra eles comer. Ela também matava gato, mas gato é um bicho que só se apega à casa, quanto menos gato, melhor.

[...]

_ Meu filho outro dia chegou da escola falando que tem um casal de namorado homem na sala de aula. Gay, sabe?
_ É o final do mundo isso, gente.
_ É mesmo!
_ Sabe, eu acho que o mundo não acaba tão cedo. E se um dia fosse acabar, por isso é que não seria.

[Silêncio prolongado]

_ Essas atrizes são lindas né? Olha só essa menina aqui! Eu nunca vi na novela, é atriz nova.
_ É mesmo. E esse cabelo, e essa pele? É linda mesmo a menina. Só é feia mesmo quem quer.
_ Hahahahahaha.

[...]

_ Enquanto o doutor não chama eu vou fumar um cigarrinho. Ai, sei que faz mal, mas eu já fumo há tanto tempo né? Se fosse pra morrer já tinha morrido.

sábado, 13 de abril de 2013

O amor quando acontece

Se perceberam assim que chegaram, mas não deram importância. Ela foi encaminhada, por amigos, a uma outra ala de acesso restrito. Enquanto isso ele dispunha de uma companhia mais líquida entre os dedos. A viu novamente, e dessa vez, seus olhos se cruzaram de longe. Ela lhe parecia só mais uma burguesinha inútil de camarotes. Ela não conseguiu formular uma opinião sobre ele ali, naquele relance.
O lugar era grande, e estava cheio. Gente de todos os lugares, por todos os lugares. A noite caía, e com ela, a tolerância etílica dos presentes. Os copos iam ficando vazios e os corpos iam ficando leves, fluidos, despidos, como se de dentro deles houvesse algum tipo de energia que era, na verdade, a música; como se a música estivesse saindo dos próprios corpos das pessoas.
Tudo era toque. Toque das bocas, das mãos, numa ultrassensibilidade que parecia viajar de um corpo ao outro, a doença contagiosa benigna dos hedonistas. As pálpebras demorando uma eternidade para se encontrarem, bem como os seus olhos nos dela, que agora a tinham perdido de vista. Um homem aparentemente mais novo que ele se aproxima, toca seu ombro, o toque. Ele se deixa beijar. Ele se deixa abraçar. Ele não quer pensar.
As horas parecem sorver no suor. A musculatura flexível e ágil das línguas ao encontro umas das outras, uma com a outra, duas com uma, quatro. Uma mulher cochicha no ouvido dela, ela dá um sorriso cínico. Dois homens a tocam na cintura. Ela se deixa beijar. Ela se deixa abraçar. Ela não quer pensar.
A música parece aumentar nas cabeças das pessoas, e se propaga, e se ressemantiza e se configura numa nova música neural e inédita produzida dentro da cabeça. Música idiossincrática, música transcendental, pessoal e intransferível. Ele se sente zonzo, como se a música lhe lambesse o rosto. A música, o fantasma que tocava a todos, que desfrutava de todos ali ao mesmo tempo. Eis que ele adentra uma outra porta.
Após uma longa valsa de fluidos, o olhar dela finalmente encontra o dele. Mais uma dança. Ela tem um par insistente que não sai de cima de seu corpo; ele tem as mãos ocupadas com outra moça. Mais uma dança. Uma mulher obesa ocupa-se da intimidade dela com uma perícia quase ginecológica, enquanto ele procura se desvencilhar de um casal de gêmeos que o cerca. Ele finalmente toca a sua mão, e ela a segura forte, em meio a um orgasmo sísmico que a mulher lhe proporciona. Ele a beija longamente, e a convida para tomar um sorvete.
Estão apaixonados.