terça-feira, 31 de maio de 2016

domingo, 29 de maio de 2016

domingo, 29 de maio

um dia abri a gaveta procurando um grampeador e lá estava um dos meus sonhos. de pronto não o encarei: senti que estava lá quando o toquei com a mão acidental tateando a extensão da gaveta. era uma gaveta comprida. pela textura, senti que era sonho. afastei a mão como se tivesse percebido uma tarântula.

quis lavar as mãos. no banheiro, olhei a pia desenhada com restos de pasta de dente e cinza de cigarro, a água corrente misturando tudo numa paleta de cor amarela, cheiro de enxofre e sabonete. quando abri o armário, outro sonho, mas esse eu já sabia que estava lá, e eu o ignorava por conveniência, preguiça. ainda pensava no sonho da gaveta. aquele havia me perturbado um pouco, mas nada que um pouco de protex não resolvesse.

tem um monte de livros do meu quarto que ainda não li. sem motivo nenhum, puxei da estante um que já tinha lido algumas vezes, e na página 48 achei mais um sonho. lembro que foi a página 48 que me deu o sonho em sua forma bruta, e fiz uma jura de que iria colocar esforços em seguir aquilo. acho que não fiz, porque sempre tive muita curiosidade. esse sonho tinha algo a ver com aprender a lidar com curiosidades desnecessárias. nem toda curiosidade é necessária. algumas páginas depois (lá pela página 130) o autor do livro se contradizia, e me jogaria na cara a inconsistência de um sonho tão bobo.

tinha outros sonhos. nos armários. eram até interessantes, mas depois de um tempo comecei a achar ridículos. eu nunca entendi direito quando dizem que sonhos não envelhecem. os meus envelheceram até as aranhas andarem sobre eles, e depois morreram de estresse espacial porque nada sobrevive saudável dentro de um armário. isso pode até parecer duma angústia infinita, mas tá só no recorte. é só ali que existe. no curso das coisas não tem drama: é acordar cedo, tomar um café mais ou menos, pegar o ônibus, trabalhar. e não há nada de errado nisso.

você sempre me dizia que no meio da madrugada, quando nada bom o bastante fosse capaz de interromper a beleza do silêncio, era possível ouvir a terra girar. não era bem ouvir, era sentir; aquele movimento imenso, aquela pressão infinita, todo esse orbe mostrando o quanto está vivo. mas só se a gente fosse muito maluco ou hippie, eu dizia. você fazia um movimento engraçado com a boca, meio tirando onda, meio decepcionada. eu sabia que nunca seríamos nem parecidos, e você insistia que sentia sua cama tremer levemente quando era criança, e era a terra girando. não sei porquê, mas muitos anos depois, com as palmas das mãos sob a nuca, me peguei tentando o exercício. até hoje sonho em sentir a terra girando.

sábado, 7 de maio de 2016

Sal bruto

Duas horas.

Estalou uma palmada no meio do eco seco, e o ruído galopando o ar sem resistência contava a quentura da superfície da palma. Nojo, o olho purgando a cólera, a cabeça roxa explodindo na boca. O som desorganizado avoluma, uma, três, cinco pessoas. Estala outra palmada e se segue um som plástico, que estoura os ouvidos mesmo depois de morto. Pernas assustadas. EU JÁ FALEI QUE QUERO VOCÊ LONGE DAS MINHAS FILHAS, vozes simultâneas turvam o pretexto, eu não vou nem te dar confiança, SAI, AI, A VIDA É MINHA, ESSA PORRA É MINHA.

Era arrombamento de muito. Mas como o muito era tanto, não era assim tão incomum. Três calcinhas cuspindo o sangue virgem da menstruação, cada qual chorando de susto, três à esquerda e as outras três, ainda meninas, ainda imberbes, ainda impolutas. O sangue pintando o rosto da mãe por dentro. VOCÊ NÃO FICA RINDO DE PIRANHAGEM PRA MIM NÃO QUE EU VOU TE QUEBRAR TODINHA. O estrogênio pingando das mãos que vacilavam ou entre os cabelos, ou repetindo desritmadas coreografias sinistras

Quites. Mesmo tamanho. No mel ácido da língua, espinhos, e como se por algum azar se detivessem mais tempo suspensos por gravidade mais complacente, uns tecidos vagabundos, pequenos e leves voando com destino ao asfalto, depois irrompe uma mochila imprestável e uma pequena mala que, sem fazer muitas viagens, deteriorou-se ao paladar do mofo escondido no armário úmido. ENTÃO NÃO VOLTA. EU NÃO QUERO MAIS ELA AQUI, NEM VOCÊ. NEM VOCÊ. Um pedaço de vidro se parte em incontáveis estilhaços, e revela os incontáveis diamantes baratos libertados da sua antiga composição. O brilho dos pedaços convida a menina menor a uma brincadeira perigosa.

FODA-SE, EU NÃO QUERO SABER, ELE NÃO BOTA NADA AQUI DENTRO, e afasta com as mãos nervosas os cabelos muito longos do couro lavado na fúria, sem perceber que a menina menor caminha no epicentro das vozes, a derruba. A menina menor chora, TA FAZENDO O QUE AQUI CARALHO, TIRA ESSA GAROTA DAQUI e da rua ACREDITA MESMO NESSA MAGRICELA PIRANHA e o ar espalha seu cheiro que trota duro antes do seu corpo o corredor estreito que dá pra rua: É DE QUEM? É DE QUEM? REPETE, FILHA DA PUTA!

Mentindo recato, a discrição alegórica evidenciada no rosto sulcado pela grossura das lágrimas, a mais velha recolhe, na rua, a tessitura do destempero; ainda não tem ódio no peito, mas se esforça. O barulho acorda os cachorros do vizinho, que sensíveis à perturbação sentimental humana, irrompem em latidos estridentes, mesmo depois da rua já deserta e muda, mesmo depois dos filetes das cortinas já cerrados, até as três e dez.