sábado, 7 de maio de 2016

Sal bruto

Duas horas.

Estalou uma palmada no meio do eco seco, e o ruído galopando o ar sem resistência contava a quentura da superfície da palma. Nojo, o olho purgando a cólera, a cabeça roxa explodindo na boca. O som desorganizado avoluma, uma, três, cinco pessoas. Estala outra palmada e se segue um som plástico, que estoura os ouvidos mesmo depois de morto. Pernas assustadas. EU JÁ FALEI QUE QUERO VOCÊ LONGE DAS MINHAS FILHAS, vozes simultâneas turvam o pretexto, eu não vou nem te dar confiança, SAI, AI, A VIDA É MINHA, ESSA PORRA É MINHA.

Era arrombamento de muito. Mas como o muito era tanto, não era assim tão incomum. Três calcinhas cuspindo o sangue virgem da menstruação, cada qual chorando de susto, três à esquerda e as outras três, ainda meninas, ainda imberbes, ainda impolutas. O sangue pintando o rosto da mãe por dentro. VOCÊ NÃO FICA RINDO DE PIRANHAGEM PRA MIM NÃO QUE EU VOU TE QUEBRAR TODINHA. O estrogênio pingando das mãos que vacilavam ou entre os cabelos, ou repetindo desritmadas coreografias sinistras

Quites. Mesmo tamanho. No mel ácido da língua, espinhos, e como se por algum azar se detivessem mais tempo suspensos por gravidade mais complacente, uns tecidos vagabundos, pequenos e leves voando com destino ao asfalto, depois irrompe uma mochila imprestável e uma pequena mala que, sem fazer muitas viagens, deteriorou-se ao paladar do mofo escondido no armário úmido. ENTÃO NÃO VOLTA. EU NÃO QUERO MAIS ELA AQUI, NEM VOCÊ. NEM VOCÊ. Um pedaço de vidro se parte em incontáveis estilhaços, e revela os incontáveis diamantes baratos libertados da sua antiga composição. O brilho dos pedaços convida a menina menor a uma brincadeira perigosa.

FODA-SE, EU NÃO QUERO SABER, ELE NÃO BOTA NADA AQUI DENTRO, e afasta com as mãos nervosas os cabelos muito longos do couro lavado na fúria, sem perceber que a menina menor caminha no epicentro das vozes, a derruba. A menina menor chora, TA FAZENDO O QUE AQUI CARALHO, TIRA ESSA GAROTA DAQUI e da rua ACREDITA MESMO NESSA MAGRICELA PIRANHA e o ar espalha seu cheiro que trota duro antes do seu corpo o corredor estreito que dá pra rua: É DE QUEM? É DE QUEM? REPETE, FILHA DA PUTA!

Mentindo recato, a discrição alegórica evidenciada no rosto sulcado pela grossura das lágrimas, a mais velha recolhe, na rua, a tessitura do destempero; ainda não tem ódio no peito, mas se esforça. O barulho acorda os cachorros do vizinho, que sensíveis à perturbação sentimental humana, irrompem em latidos estridentes, mesmo depois da rua já deserta e muda, mesmo depois dos filetes das cortinas já cerrados, até as três e dez.

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