domingo, 17 de setembro de 2023

O coiote e o carcará no meio do Sertão

O bom de se ter um blog como se ainda se estivesse em 2002 é que aqui dá pra ser cringe sem culpa. E por isso me sinto autorizada a falar das minhas cringices.



Coisa interessante é observar o que o tempo faz com a gente. Às vezes nem tanto com o nosso corpo, mas definitivamente o que faz com as nossas percepções de mundo.

Desde a adolescência eu desenvolvi uma relação muito estreita com língua inglesa, de modo que cedo entendi que trabalharia com ela. Não deu outra e me tornei professora. Mas preciso ir um grau além nisso. 

Não conheço nenhum professor que não tenha uma relação de vida com aquilo que ensine, até porque não tê-la faria da sua profissão uma prática vazia. Quando a gente fala de um professor de línguas, então, acredito que todos pensem, em alguma medida, sobre cultura e território. Pois bem. 

Apesar de apaixonada pela língua inglesa, sempre cultivei um profundo sentimento anti-imperialista porque: sim, né? É tosco ver caboclos querendo ser ingleses; mas é um embevecimento, sim, vê-los empoderando-se não apenas ao aprender a língua do império, mas instrumentalizando-a para criar respostas à altura que combatam sua influência. Só que não sejamos ingênuos: nem a consciência dessa apropriação nos blinda dessa influência completamente.

Eu, por exemplo, aprendi a gostar muito de inglês vendo filme, e filme americano, claro. E eu não sei quantos filmes americanos eu vi nessa vida que não trouxessem imagens do que acho que existe de mais bonito nos Estados Unidos: suas belezas naturais. Convenhamos: nesses termos, esse é um país riquíssimo. Mas (e com dificuldade de afirmar isso) talvez nada me atraia mais que a arquitetura milenar dos desertos americanos. Tiveram responsabilidade os beatniks? Tiveram. Teve responsabilidade o cinema? Teve. Teve responsabilidade a própria história de disputa desse território? Teve. Enfim, um caldeirão de referências moldou o meu olhar em relação a esses desertos, que tenho até hoje muita vontade de conhecer, com uma motivação bem próxima do que seria uma contemplação espiritual sobre eles.

Mas, ei. Falei ali em "caldeirão", né? Não foi à toa.

Ontem estava ouvindo uma música que gosto muito e já ouvi várias vezes, mas que, por razões que já descrevo, me bateu diferente. Seu nome é Caldeirão dos Mitos, e não consigo pensar em ninguém melhor que Elba Ramalho pra interpretá-la, mas a composição ficou ao encargo de Braulio Tavares - que até o momento da produção desse texto, eu não tinha conhecimento algum a respeito e foi ótimo dar uma pesquisada pra saber quem é (recomendo que vocês façam o mesmo). Mas voltando, a Caldeirão dos Mitos de Elba e Braulio ontem me bateu diferente. E esse impacto só pôde acontecer depois de muita caminhada pelas veredas infinitas da vida que só existem pra provar pra gente que não existe caminho perdido.

Estou lendo A Guerra do Fim do Mundo, do peruano Mário Vargas Llosa. Comprei esse livro por acaso, em um sebo, porque não tinha, até então, lido nada dele e essa era uma pendência pessoal. Poderia ser qualquer outro livro, mas calhou de ser esse, e não poderia ter me atraído mais o seu assunto: a ainda pouco compreendida, principalmente no Sudeste, Guerra de Canudos. 

Só que a Canudos de Vargas Llosa conta com vários personagens ficcionais, o que (eu acho) deixa a História de Canudos ainda maior em suas contradições - como acontece em todas as revoluções.

E é nesse cenário que eu começo a pensar em coisas. Coisas que a canção de Braulio Tavares saúda na voz acesa da Elba.

Um dos livros que mudou minha vida foi Grande Sertão: Veredas. Ao contrário do romance de Vargas Llosa, esse é 100% ficcional. Mas à semelhança daquele, compartilha a paisagem e o modo sertanejo em seus personagens. Enquanto leio A Guerra do Fim do Mundo, aliás, frequentemente imagino Riobaldo dando em Canudos por acaso, sentando-se quieto num canto, ouvindo a palavra do Conselheiro, tendo uma cumbuca d'água servida por Maria Quadrado e partindo em seguida pelo inexpugnável Sertão. E o Sertão, como diria o mineiro, é o mundo. Só que o mundo, principalmente o mundo sertanejo, é fundado no mistério. 

Por isso que abri esse texto notando o quanto é curioso ver o que o efeito do tempo sobre as nossas percepções de mundo.

Há uns 10 anos eu não imaginaria que seria capaz de relacionar os sertões americanos - não é o que são? - com os sertões brasileiros. E ao pensar nessa comparação, cuidadosamente considerando tudo o que me atrai nos sertões de lá, me dou conta que o nosso em nada deve em potencial histórico e por isso mesmo fantástico - ou como melhor diria Braulio Tavares, "insólito". Lá eles têm os rituais indígenas com peyote, e aqui não temos a ayahuasca? Lá eles têm os canyons, e aqui não temos os sambaquis? Lá eles têm os cowboys, e aqui nós não temos os jagunços? Se lá moram os últimos tricksters americanos, os coiotes, não encontraríamos aqui uma correspondência na implacabilidade do condor do sertão, o carcará? ambos, inclusive, potenciais representantes do Outro Mundo em sua sentinela?

O que se vai buscar no Sertão que tem o descaminho como princípio? O misticismo que emprenha as histórias sobre estes espaços se inclina sobre o próprio inconsciente desejo humano por isolamento, silêncio e se arrisco um palpite mais fundo, transcendência. Em um ensaio poderoso, o crítico literário William Deresiewicz faz um resgate ao fundamento bíblico de que não seria possível ao homem ouvir a voz divina na multidão, recorrendo então, à fugere urbem. Mas nesse contexto, cabe lembrar que foi no deserto que, segundo as escrituras, Jesus teria sido tentado pelo Diabo. Sendo assim, seria o Sertão uma espécie de portal por onde o Invisível entra e verbaliza, ou mesmo o contrário, entrando o homem no terreno do Invisível?

O pacto de silêncio feito por sertanejos e cowboys em relação aos seus territórios parece justamente ser o terreno fértil onde me sinto encorajada a plantar minhas conjecturas. E se antes eu pensava que a resposta pudesse estar em Nevada ou Utah, hoje acredito ser possível encontrá-la mesmo é na Bahia ou em Caruaru.