sábado, 30 de maio de 2009

A noite em que Eles saíram pra dançar

Aos não-cariocas, meu sincero perdão por este post. Porque ele tem a abençoada cidade do Rio de Janeiro (Zona Sul e adjacências apenas, infelizmente), como ponto de partida para que eu dê início ao meu relato. Ok, se você for um paulista, amazonense, ou curitibano com um certo conhecimento geográfico do Rio, poderá visualizar melhor o que direi. Mas não que essa seja a peça imprescindível na compreensão do texto.
23 de maio de 2009. Esta foi a data escolhida pelo artista californiano Peter Coffin para rechear de graça e ineditismo os céus da Zona Sul e Oeste do Rio de Janeiro. Se você está por fora, deve estar se questionando: mas que obra é essa capaz de tomar todo o céu? Simples: - mentira, é bem complexo - Peter, num momento de profunda inspiração, teve a brilhante idéia de construir um disco voador, que, na sua exposição, sobrevoará, além do céu carioca, outros por aí, mundo afora. Ou seja: foi massiva a repercussão dessa obra de arte contemporânea, que atraiu olhos curiosos ao negro firmamento do dia 23. Mas a questão que quero chegar ainda não é essa.
Sou moradora de Duque de Caxias, Baixada Fluminense do Rio de Janeiro. Logo, a supervalorização das zonas sul e oeste automaticamente excluem os suburbanos como eu do espetáculo, e o seu moço do disco voador não daria as caras por aqui. Entretanto, na mesma noite, eu teria um festival de música eletrônica a comparecer: o tradicional Chemical Music Festival, situado no Riocentro, Barra da Tijuca, o que poderia, talvez, me possibilar o vislumbre da obra de Coffin nos céus. E o céu noturno naturalmente me atrai tanto por medo quanto por fascínio. É uma sensação de mergulho na imensidão inapalpável, linda e desconhecida; é o receio de que ela subitamente possa me engolir com todo o seu bem estruturado sistema de vácuo e segredo.
Ao chegar à festa, isso lá pelas duas da manhã, meu coração dançava dentro e fora de mim às batidas alucinantes de Paranormal Attack, mas meus olhos estavam colados no céu. Eles pareciam imantados pela possibilidade de ver aquele disco voador fake, e captavam o menor deslize do menor corpo celeste. Pacientemente esperei. Eis que tenho a vaga impressão de... não, há de ter sido só uma impressão mesmo. Já sem esperanças, e muito afim de cair dentro da festa, ignoro o céu. Mas nas espaçadas vezes que o fito, tenho a estranha sensação de ver o disco voador de Coffin.
É aí que eu percebo o quão incauta eu fui.
Que Peter Coffin, que nada! Que legitimidade melhor poderiam usar os próprios amiguinhos intergaláticos para valsarem pelo belíssimo céu que se descortinou como um presente naquela noite? Com todo mundo muito ocupado com a exposição do californiano, eles poderiam exibir-se sem medo de nada. Ninguém acreditaria se falassem que foram vistos. "Que nada, o que você viu foi o disco voador daquele americano", é o que todo mundo naturalmente diria. E, movidos pelo desejo, e também pelo sentimento de provocação a nós, tolos terráqueos, que estamos sempre com a cabeça nas nuvens afim de solucionar nossas inquietações, eles livremente se exibiram, bem debaixo dos nossos narizes, despidos do cerimonialismo que estão habituados quando têm a certeza de que habitam a noite sós. Coffin pode ter escolhido a noite do dia 23 para expôr seu projeto, mas acredito que a noite os escolheu para a diversão. A noite em que Eles saíram pra dançar foi assim, tão óbvia, tão óbvia, que nós nem mesmo nos demos conta.
E foi linda. Mas só para quem viu - e quem vê - além de Coffin e de todo o deserto de obviedade.

Post dedicado a Fábio, um querido amigo que é um apaixonado pelo cosmo.

sexta-feira, 29 de maio de 2009

Pequenas maravilhas do terceiro mundo

Bate meio-dia e dois no relógio biológico de Alina. Ela deixa o arroz cozinhando, cata o molho de chaves, calça os surrados chinelos de borracha de desbotado azul e sai de casa para buscar o irmão menor, Ruan, na escola. Passa a mão pela nuca, o dia estava abafado. O furioso astro maior lhe sorria, latente e amarelo, incontáveis quilômetros acima.
Ao atravessar a rua, um hidrante estourado fazia o alívio de dois vira-latas que ali se encontravam. Os cães refestelavam-se naquela sensação e, pensou Alina, quem dera que pudesse se juntar a eles sem que aquilo fosse interpretado como um óbvio e perigoso acesso de loucura. Ela tinha medo de cachorros, mas não acreditava que aqueles fossem capazes de abocanhar-lhe um bom naco de perna como havia feito o maldito Tota, da Mirtha, há dois anos. Aquele infeliz evento quase invalidara a perna esquerda da frágil e quebradiça Alina.
Uma rua à frente, o colégio São Dominguez. Os olhares debochosos das meninas de cabelo aloirado e camisas curtas e a gesticulação expansiva e afobada dos meninos causavam desconforto em Alina. O cheiro de cigarro e de promiscuidade era insuportável dentro das rodinhas deles. Aos olhos da menina, toda aquela superficialidade era a mais pura vontade de aparecer. Ou era Alina que não se encaixava? pensando bem, a segunda opção era a mais provável.
Sinal fechado. Eis que na direção dela, corre uma pequena manada de estudantes do mesmo colégio para tentar alcançar um ônibus que ia embora. Claro, tudo gritado, gargalhado, à trote. Alina não se encaixa. Enrola seus cabelos ensebados da gordura de cozinha, num discreto coque no topo da cabeça. Prossegue.
Chega à escola, onde o irmão já a aguarda há uns minutos. Ao vê-la, Walkíria, a mulher gorda de pernas finas que coordena a saída das crianças chama pelo nome do irmão. Alina fica a observá-la, com a descrição que lhe é característica. O suor no buço. O buço. O suor na testa, onde os cabelos começam. A feiúra dos sulcos, o corpo disforme. Ainda assim, ela ostenta uma aliança. Como uma pessoa daquela poderia ter algum atrativo? Alina não entende.
O irmão chega em alguns minutos, também suado. Tagarelamente conta como foram as atividades escolares. Ele é o oposto da seca Alina. Por dentro e por fora. O arroz no fogo! Alina então agarra a mão de Ruan e toma a rua da feira, que é um bom corta-caminho. A feira multicromática, com cheiro de salada de frutas, com cheiro de podre. Os filhos de alguns feirantes com o pé no chão. Apesar de toda a pobreza, havia certa felicidade naqueles olhos todos. Todo aquele desconcerto leva Alina a crer que, de alguma forma, é por causa disso que o mundo funciona. Por causa das mini-putas do colégio público, por conta dos cães e seu banho de sol inusitado. Até a desgraça tem sua graça.
Ruan pede um churros que Alina não pode comprar. Ruan pede figurinhas que Alina não pode comprar. E os dois rumam para casa; Alina, com o coração mais feliz.

quarta-feira, 20 de maio de 2009

O jogo-do-contente de Benigni

Não sei se todos vocês aqui gostam de cinema cult. Essa que vos escreve gosta, e muito, e recomenda. Afinal, um filme que chafurda a tela grande de efeitos em CG deve ter - muito provavelmente, tá? - muito pouco a dizer, e sobretudo a acrescentar. Tá bom, um ou outro até vai (pra passar o tempo). Mas eu considero a musculação cerebral decorrente de uma boa sessão cult bem mais saudável.
Enfim, vamos ao que me propus. Dissociada de uma assinatura à Janot - até porque eu nunca conseguiria alcançar esse grau de intelecto - , eu gostaria de compartilhar com vocês aqui uma válida coisa que aprendi com o ilustríssimo Roberto Benigni e sua mais famosa produção, vencedora de 3 oscars pela Academia e indicada a muitas outras: "A vida é bela".
Diferente, mágico, único. Neste filme, Benigni prova que é possível viver à Pollyana mesmo nos secos tempos de guerra, mesmo que esta guerra possa retirar-lhe a vida, que, barata, pode ser deliberadamente tomada por uma fuzilada errante ou proposital. Com uma performance chapliniana, de arrancar risadas de qualquer público, sabiamente temperada com uma atuação forte e tocante, Benigni explora muito além do que um filme óbvio de guerra é capaz: ele consegue fazer humor com a temática bélica sem perder o tato da problemática muito séria que a envolve; sem se alienar. O fato de seu pai ter passado dois anos em um campo de concentração também exerce um peso bastante relevante em todo o filme.
Trata-se de um filme apaixonante. Delicioso, devorável. Eu, pelo menos, nunca havia tido o prazer de apreciar uma produção do gênero, salvo por boa parte da filmografia Chaplin que já assisti. A metáfora presente em "A vida é bela" é inconspicuamente análoga à vida real. Por mais cabeluda que possa parecer ou ser a questão, é levando-a com um pouco de frouxidão e, sim, com amor, que se tem uma percepção melhor a seu respeito, catarticamente ou não. O desespero nunca resolveu nada. É rindo das adversidades que as contornamos, e, sem demagogia alguma, eu garanto que dá certo. Tenho exemplos muito, muito próximos a mim adeptos dessa metodologia.
Fica a minha dica: assistam a esse clássico. E bebam da fonte de sabedoria de Benigni.

segunda-feira, 18 de maio de 2009

Mais belo amor

Comecei a pensar nessa postagem considerando a Literatura e o Cinema como irmãos. Dois doces irmãos, duas crianças deliciosamente travessas. Sua afinidade seria tamanha, como não poderia deixar de ser. Muito freqüentemente seria possível que os espreitássemos fazer arte, e definitivamente a melhor que seriam capazes de produzir seria aquela que realizassem gozando de plena conjunção. Tudo ia bem com esta prévia definição, até que comecei a tropeçar e duvidar dos meus próprios argumentos, quando percebi que existe algo bem mais carnal, por assim dizer, entre esses dois. E constatei que o laço que os une é outro.
Passei a vê-los como primos, por serem muito fisicamente parecidos, mas há uma coisa que imanta os dois que não pode ser compreendida como um claro amor familiar. Foi quando abri meus olhos.
O estreito liame que eles mantem é, de fato, muito mais íntimo. O Cinema, muito mais moço que a Literatura, atrai esta pela questão do frescor, de sua capacidade indescritivelmente realista e sincera de representar a arte escrita. O Cinema, como provar de amor, fala pela sua amada. A Literatura, por sua vez, exerce sobre o Cinema a forte influência da experiência; aquele charme irresistível da melhor idade que acintosamente acompanha o conteúdo. Eles flertam. A disparidade entre suas idades é só um mero detalhe aos indiscretos. Trocam olhares, carícias. Perspectivas. São amantes e publicamente o fazem, imprimindo no produto desse sensual encontro sua expressão máxima da gratidão aos artistas idealizadores desta relação - gratidão por sinal, mútua. Como todo casal, têm crise por nem sempre concordarem com tudo. Às vezes, a Literatura diz uma coisa e o Cinema diz outra. Aliás, entre eles essa é uma constante, e raros são os casos em que partilham de absoluto consenso.
O Cinema e a Literatura são interdependentemente crônicos. A Literatura, antes do cinema, já era magistral; mas foi com o nascimento deste que adquiriu o viço que faltava. Quando fundidos, estes belos nos presenteiam com "Lolita", "Forrest Gump", "O bebê de Rosemary", "Tróia", "O silêncio dos inocentes", "E o vento levou", e um sem número de outros. E qual não é o meu deleite em folhear as belas saias da Literatura, provocando os ciúmes do Cinema, ou mergulhar no denso universo dele, que me traga e me devora. Seja como for, em uníssono eles já brilham. Mas, em parceira, ofuscam.
Ave a longevidade deste casal. E que este continue a nos brindar por toda a vindoura história.

segunda-feira, 11 de maio de 2009

O darwinismo internético da mediocridade

Juro que custei a acreditar quando li, mas qual foi minha cara de paisagem quanto à mais nova babaquização da elite, na deplorável tentativa de destacamento do que a gente - simples, de carne e osso, e sem BMW na garagem - denomina "reles mortais". Pode ser ou parecer anacronismo meu, mas eu simplesmente não concebo que ainda existam pessoas que medem por seu poder aquisitivo a deliberada - e por que não - deturpada legitimação em ser superiores a todo o resto.
Não sei se sua mente funciona como a minha, caro leitor, mas se sim, a essa altura você deve estar se perguntando a que se deve essa repulsa gratuita que ainda não justifiquei, certo? Pois bem. É que fui tomada de um assalto crescente ao encerrar uma leitura que me foi tão desgostosa por ter me feito constatar - não que eu não soubesse - até onde vai a pequenez do caráter humano em suas sórdidas relações, que encontram principalmente no vil metal um terreno fertilíssimo para se explodirem de si.
Chega de deixar meu leitor orbitando. Falo do mais novo frisson chamado http://www.elysiants.com/; cujo fútil e bem sucinto tema resume-se a "Celebrate life in style". Esta é mais nova idiotice a serviço duma minoria a que interessa somente alimentar a impossível idéia de importância suprema, não-contato com o reles resto, de uma superioridade nefelibatística e sem propósito. Desenvolvido por Arthur de Groot e Ronald de la Fuente-Sanchez, com sede em Hong Kong, o site tem por volta de 15 mil usuários, e só não está se espalhando com a rapidez característica das comunidades virtuais de relacionamento por sua enfática e claríssima proposta: foi feito pra quem 'pode'. Marcadamente com uma postura opulenta e ostensiva, a novidade ignora toda e qualquer pessoa que não corresponda ao perfil de seus idealizadores e membros, delineando assim um tênue círculo seleto de artistas e figuras do jet set nacional e internacional. O Elysiants é a impressão máxima do status que a posse é capaz de conferir a um indivíduo, não importando aí sua procedência e discriminando por completo a idéia - quiçá ultrapassada - de que todos são iguais.
Vão? Estúpido? Eu poderia nominar com N adjetivos nada amistosos a minha visão sobre este modismo que visa delimitar 'os melhores', e ainda acredito que seria pouco. E com base em que? Na criação de uma ordem intolerante à imiscuição social, totalmente individualista e absurdamente voltada para os valores capitalistas mais elementares. E o pior é que, na dança sem fim nem compasso dessa alienação, vão, iludidos, os lacaios dessa sub-cultura do nonsense: as assistentes de madames, os papagaios de pirata dos empresários, os robôs humanos da escória bem-sucedida que toda pirâmide social apresenta, que compram com o último resquício de suas voláteis personalidades toda uma simbologia que nunca será condizente com as origens que tentam maquiar, e tudo isso para penetrar no seio de uma sociedade cuja frivolidade é o lema. Parem tudo, que eu quero descer.

sábado, 9 de maio de 2009

E todo mundo salva o mundo

Salvar o planeta ficou cult. Aliás, cult não; virou uma febre. Tá todo mundo um bocado cabreiro com essas previsões - antiiigas, mas agora muito em voga - nada animadoras sobre os prejuízos incalculáveis que o homem, em sua insana ganância, já produziu ao meio-ambiente, e já tem um monte de gente batendo em retirada quando o assunto é high-technologic ou, pelo menos, freando seus impulsos capitalistas. De repente, ostentar ficou cafona. As eco-bags estão vendendo mais que banana em feira. O reciclado é o novo chic. Todo mundo fazendo Yoga. Cada vez mais as pessoas, os antenados, os velhinhos da zona sul e as crianças estão aderindo à moda, devidamente orientados pela propaganda massiva em torno da redução drástica do consumo.
Mas ei. Vamo devagar.
A mesma propaganda que apregoa apelativamente o repensamento quanto à questão ambiental ainda é, majoritariamente, uma sombra sobre o maior motor de degradação do nosso cansado planetinha. Sim! É um tiro no pé, mas uma maneira sabiamente estratégica de se eximir da culpa. Por exemplo, eu não consumo Mc'Donalds. Preceito meu de ontem e hoje. Acho aquilo ali o cúmulo do auto-desrespeito com a saúde, apesar de reconhecer o quão saborosos são seus Sundae's. Mas outro dia, calhou de me mostrarem um daqueles panfletinhos que vem com as bandejas. Nele, o Ronald Mc'Donald ensinava formas simples de extender o prazo de vida útil do nosso mundo com atitudes simples. Coloridinho. Louvável. Quase um cartaz do greenpeace. Mas será que já se parou pra pensar na quantidade de lixo que uma única pessoa produz com um só Mc' Mínimo Lanche? É papelzinho pra tudo quanto é lado, dezenas de sachês, plástico, caixinha do hamburguer, da batata. Agora multipliquemos o número por... ah, numa escala global, dá pra ter a dimensão, né? E a amistosa e responsável mensagem da bandejinha vai para o mesmo lixo, mas a gente acaba não percebendo isso.
Entretanto não peguemos o Mc' Donald's pra Cristo sozinho. Hoje em dia, existe uma ascenção monstruosa no número de pequenas, médias e gigantes empresas que tentam passar, de alguma forma, o quão preocupadas estão com o futuro da nossa casa; quão respirável será o ar das crianças de 2.200, quanta água vai haver pra saciar as gerações dos próximos séculos, se é que eles chegarão. O tal 'desenvolvimento sustentável' é muito mais que essencialmente toda a precaução em torno do mundo que virá. Ele foi infelizmente convertido na maior estratégia de marketing do mundo, que contraditoriamente alimenta toda a indústria que continua - pasmem! - agredindo tão descaradamente o planeta em que vivemos, sob a égide falaciosa de que estão assumindo um compromisso com o amanhã. Não que toda empresa que se diga pró-planeta seja sempre falsária; mas com a estatística assombrosa de que muitas o são, fica de fato muito difícil confiar em alguma. Afinal, todo bom empresário de século XXI tem na cabeça que é preciso preservar o globo - e difundir essa mensagem atrelada ao seu negócio não é nada, nada mau. Semioticamente, a manipulação bem feita projeta o enunciado (a mensagem de um planeta feliz e saudável) estrategicamente para o seu enunciatário (o povo, que necessariamente precisa acreditar nisso pra fazer a coisa andar). E pelo visto, todos esses grandes gerenciadores e administradores prestaram muita atenção a esse pequeno e relevantíssimo detalhe.
Teoricamente, a positividade reina. Nós, detestáveis terráqueos, fomos, por muito tempo, seres irresponsáveis, que não davam a mínima para esse presente que recebemos e não merecemos chamado natureza. Mas agora será completamente diferente.
No que depender da nossa boa ação e das grandes corporações, o mundo já foi salvo. E há muito tempo.

Dedico este post a Renata Ciampone Mancini, uma incrível semioticista.