sábado, 26 de fevereiro de 2011

A história de jackson e a Moça do Outdoor

... até que um dia jackson se deu conta de que ela o observava insistentemente do alto dos cabos por onde estava suspensa. Entre um carro e outro que manobrava para abastecer, entre um moleque e outro que enxotava do posto, entre os trocos que entregava, lá estava ela, semi-imóvel, rolando na areia prateada duma praia cor-de-laranja, metida num vestido de tecido fino que, molhado, revelava toda a generosidade das carnes morenas cujo sol, eternamente poente e até então a única testemunha daquela visão, dispunha a iluminar estrategicamente os contornos da sereia bípede e solitária presa dentro daquele outdoor imenso que era só dela, só dela. Jackson foi ao banheiro, lavou o rosto, aquilo não podia estar acontecendo. A Moça do Outdoor não poderia estar olhando pra ele, porque se o estivesse, estaria fazendo-o, também, com cada um que ali passasse.
    Voltou para o posto, perturbado com a idéia de estar sendo visado por uma fotografia. Olhou para os lados, desconfiado de que alguém pudesse notar sua apreensão pelo seu olhar acabrunhado. Carros iam, vinham; os moleques de rua jogavam bolinhas coloridas para o alto, a fim de impressionar os donos dos carros, na esperança de ganharem alguma moeda. Filas se formavam para obterem GNV. Um homem saiu do carro para fumar um cigarro. Outro, para recalibrar o pneu traseiro. Uma mulher se maquiava no retrovisor, enquanto esperava, dentro do carro, pela sua vez de abastecer na fila do GNV. Mas jackson estava cada vez mais alheio ao movimento no posto, uma vez que a idéia crescente de que a Moça do Outdoor o estivesse fitando ficava clara em sua cabeça.
    Acabava o dia, e jackson deixava o trabalho. Em casa, encontrava o filho nos braços de sua mãe, já falando a língua da fome. Nada alentava o menino. A mãe reclamava das despesas geradas pelo neto, que a renda era pouca, que era bom que ele procurasse um lugar. Entrou no quarto com a criança, deitou-a na cama e, em seguida, deitou-se também. Com os olhos fixos no teto branco, pensou na Moça. Fechava os olhos, e ainda via a moça, engatinhando naquela areia toda, sozinha, gostosa, com mamilos que evidenciavam o desejo fruto de eras de solidão, por dentro daquele vestido que se confundia com a pele. A Moça vinha beijá-lo, aqueles milhares de beijos doces, com gosto duma fruta que ele não sabia o nome, cheios de ternura, cheios de lascívia. Ela era o melhor exemplar feminino que ele já havia visto.
    Mal jackson descansava dum dia, começava o outro, empurrando seu sono abruptamente, cheio da luz cortante que faz os sonhos sangrarem. O menino chorava. "Papai te ama, eu juro que um dia vou te dar tudo que você merece." "Bom dia, mãe". "Café tá na mesa, comprei mortandela." Jackson comia com rapidez, não podia se atrasar. No trabalho, os olhos não conseguiam ficar abertos, e atestavam isso pelos longos e intermitentes bocejos que jackson dava. "Jackson!", ele ouviu. "Jackson, eu estou aqui." Ele ouvia, olhava para os lados, olhava para os carros, mas não encontrava a origem da voz. Então, seguiu-se o pior arrepio que ele já havia experimentado. Hesitante, ele forçou as pálpebras e as levantou na direção que não queria: a Moça do Outdoor realmente estava falando com ele.
    "Por que você não acredita em mim, Jackson? Eu sei que você sabe que eu estou aqui, e que olho pra você o tempo inteiro." Jackson apertou os olhos, virou o rosto, respirou fundo. Ele não podia enlouquecer agora. Tinha um filho pequeno para criar sozinho. Tinha a mãe, que dependia do seu magro salário para sustentar a casa. Tinha alguns amigos com quem contar. Por que haveria de enlouquecer agora? "Jackson, olhe pra mim. Olhe pra mim, Jackson. "
    Jackson foi ao banheiro, colocou a cabeça debaixo da torneira, transtornado. Carlos, um amigo do trabalho, que entrava no banheiro no mesmo instante, deparou-se com a cena, espantado. "Que isso, jackson! Tá passando mal, cara?" jackson se levantou, com a água fria escorrendo pelo pescoço, e saiu sem responder ao amigo. Voltando ao trabalho, recebeu uma chamada de seu supervisor por sua distração na hora de entregar o troco a uma senhora. Arregalava os olhos para acordar, porque aquilo com certeza haveria de ser um sonho. Mas não era. Cerca de alguns instantes depois, furiosa com a rejeição, a Moça do Outdoor quis provar a jackson de que não era uma alucinação.
    Apoiando-se nas estruturas de ferro, desceu o pé esquerdo no chão do posto. Com cuidado, desceu também o pé direito. Sacudiu os cabelos, salpicados de areia e sal, e veio na direção de jackson. Já não havia ninguém mais no mundo.
     "Somos só nós dois. Acredita em mim agora?" jackson não conseguia responder. "Vem comigo. Nós nos amamos. Vem comigo, Jackson."
    Nesse instante, acontecia algo estranho à sua volta. As pessoas pareciam correr em câmera lenta, acenavam com os braços por ajuda. Mas jackson estava dormente, não conseguia entender. Ouviu uma explosão abafada, e viu mais pessoas correndo. Uma das colunas que sustentavam o posto veio ao chão, e ele finalmente entendeu o que se passava. Do outro lado da rua, transeuntes perplexos paravam para observar, impotentes.
    A moça segurou a mão de jackson, que, pela primeira vez, se sentiu alguém realmente importante. O medo havia ficado para trás. Ele não estava louco, estava mais lúcido que nunca. Estava caminhando rumo a uma vida nova, nova em folha; estava nadando para fora do útero urbano que tinha cheiro de óleo diesel, para nunca mais voltar. Estava ganhando uma certidão de nascimento. A cada passo que dava de mão dada com a Moça do Outdoor, Jackson pisoteava as algemas das contas de luz-água-telefone. Jackson estava indo embora. Ninguém viu, mas ele, de alguma forma, conseguiu entrar, junto com a Moça do Outdoor, no mundo crepuscular cor-de-laranja em que ela vivia. E desapareceu.    
 

domingo, 6 de fevereiro de 2011

Jellyfish

Leve e fluida
Água d'água
sem memória
Livre e solta
Água adaga
A dança côncava de sua anágua
E seus cabelos d'água
Cortam e queimam
Sangram e morrem
Na beira da praia.