quinta-feira, 24 de setembro de 2015

Pequenos poemas do mar

A água
é viva
Mas não vemos
a água - alguém disse

O que vemos é
97% da água
E o vivo da água
que resta
(O vivo que não vemos)

É dor.


_ _ _ _ _


O mar vomita
Os vestígios de uma civilização
Há milênios destruída

Uma moeda carcomida
Uma rocha esfacelável
Um pingente de bronze

O mar vomita
Uma cidade inteira
Goteja-a na garganta das praias
Remonta-as todas na beira

I m p e r c e p t i v e l m e n t e

[...]

Chuta o que restou da coroa de ouro da imperatriz
O pé de um bebê aprendendo a nadar


_ _ _ _ _


O mar molha
A mágoa
E melhora a medula
(A memória é maior, maior que o mar)
O mel mole do mar
Lambe os milênios
Lento
Atento
Lento
Atento

Lento

Atento

Lento

Atento

Lento

Atento


Lento


Atento


Lento


Atento

Inundação

Fui abandonada no oceano. Completamente à deriva, o oceano morno como leito eterno enquanto lá de cima estrelas curiosas conjecturavam sobre a minha sorte. A noite no oceano faz com que você vire noite também, e você vira noite e vira água, de tão irrisória que é a sua presença no meio daquele choque: o choque te transforma em amálgama. Você, então, é uma não-existência própria, que flutua ao sabor das correntes do oceano. E ainda assim, nunca antes esteve tão viva.

Mal parece existir mais mundo além das cortinas da noite; porque não há pelo quê nem para quem gritar, o impulso é pra dentro, já que as águas são tão persuasivas. Submersão. Bem-vinda ao lado debaixo, bem vinda ao lado de dentro.

Uma cauda imensa abre caminho sem pedir licença, e o que era o resto da criatura é mistério. O mar noturno guarda todos os segredos da evolução da vida de uma maneira muito mais bonita e muito mais intensa do que qualquer representação é capaz de traduzir. E se revela, do oculto, o que parece uma moreia lânguida. Também imensa. Brilham miúdas luzes. Mais à frente dança, cheia de ventosas, uma língua que sobe e que desce, agitando a água - sei apenas pelas vibrações. A selvageria dos pulsos incita mais selvageria; pré-cambriano sentimento.

Subitamente as águas criam nervos: uma presença massiva, turva e cheia de força revolve o oceano e o crescendo prenuncia que o impacto vai vir de qualquer lugar - e será dantesco. Não entendo. Aprendi que todo destino de maremoto é areia. Mas toda a água se intumesce e o debater descontrolado dos meus braços denuncia: alguém vem vindo. Alguém que cavalga esses mares com a força de um dândi que os tem na palma da mão. Alguém vem de lá e vem furioso, vara o escuro, como o maior dos megalodontes, eu não deveria ter me deixado encantar pelo canto dessas águas, bato as pernas, a mão em concha, mas agora alguém chega como se fosse arrasar a vida com a implacabilidade da própria vida. Vibração, um grito abafa do lado de dentro, a onda abissal varre a consciência: o monstro é o oceano em si. Mas não morri.

Levanto. De êxtase, os olhos nem abrem. Acendo a luz, e vou tomar banho.

quinta-feira, 17 de setembro de 2015

Recorrências

"Seu nome completo. Data de nascimento? Profissão? Onde ocorreu o delito? Aqui, senhora, por aqui. Débora, agora é contigo."

Débora deveria ter 37 anos, era loira, um sorriso bonito e bem disposta. "Olá, tudo bem? Sua identidade, por favor?" e seguiram-se as perguntas protocolares. "Ele era moreno como, mais pra negro?" "Ele usou alguma arma?" "Mais ou menos que altura?" Débora computava todas as informações com sua rapidez quase estúpida, tac-tac-tac-tac, Débora fazia aquilo todos os dias, porque havia roubos todos os dias, porque havia ladrões todos os dias. Tac-tac-tac-tac, "o que ele disse pra você?", tac-tac-tac-tac, "enquanto termino aqui você dá uma olhada nesse caderno e vê se consegue identificar o sujeito, mas só confirma se é o autor do crime se tiver certeza, tudo bem?"

Eram dois os cadernos e eram grossos. Cada folha que se passava, um desconforto avolumante. Cinco, sete, oito folhas plastificadas e um rosto de cada lado, e era como se aqueles homens olhassem diretamente para quem investigasse o caderno. Veja bem, olhar é um exercício de dois. E em cada olhar uma faca, um ódio, uma fome diferente e qualquer um que folheasse o caderno dos rostos deveria, por pavor ou por decência, se sentir psicologicamente assaltado de sua média paz.

Wellingtons e Jeffersons e Leandros e Raimundos e Dentinhos e Rafaéis e Orelhas, mas também Marques, Silvas, Moreiras, Damascenos, de Jesus e por um momento foi possível o delírio de ver alguns deles sendo citados formalmente no desenvolvimento de algum projeto social, num jornal de grande circulação, na palestra da universidade; não fosse - ainda - tão certa e tão flagrante a teoria da predestinação. Vinte, vinte e cinco, vinte e sete folhas, Jorge é assaltante de carros, vinte e nove, Fábio aparenta 16, Maicou está identificado com uma etiqueta onde consta "saidinha de banco", quarenta, Valdemir foi fotografado com os olhos fechados. "O que ele levou de você, só o celular?" "É, é realmente complicado, a gente sai cedo pra trabalhar..."

Débora encerra e imprime a ficha no mesmo instante que a última folha do segundo caderno é virada.

As pontas dos meus dedos estão tingidas do negro das circunstâncias.

terça-feira, 8 de setembro de 2015

O olho da rua

"Tão bonita e tão triste. Ou está cansada? Ou está com a cabeça muito longe pra olhar na minha direção e me dar um sorriso? Um sorriso, é! É com você mesmo que eu tô falando, moça. Nossa, agora gostei de ver, isso é que é um sorriso de verdade. Eu não gosto de ver uma moça bonita como você com esse olhar perdido. Isso aqui é terra de Madame Satã, moça. Eu sei que é fácil se perder. Tem que ficar esperta com tudo: é com os bolsos e é com o coração. Saiu, olhou pro lado, segura o celular, a gente nunca sabe quem tá na esquina. É gente desse mundo e do outro. Tô tão feliz que você falou comigo, moça, às vezes ninguém fala por medo - por falta de vontade também, porque eu não sou o cara mais legal do mundo, né, mas quase sempre é mais por medo. Eu? Eu tenho 32 anos, 1,95 e aqui nos meus dentes tem esse buraco porque o meu pai gosta de me esculachar. Porque eu sou morador de rua, né. Tênis, elástico no short, cabelo e barba limpo, isso tem muito tempo, não sei o que é. Eu vendia óculos na rua, às vezes arrumava um pra mim, e o resto do dinheiro dava pra comer alguma coisa. Hoje eu nem vendo óculos mais. Às vezes eu fico aqui, olhando quem sobe e desce a escadaria e eu já notei que é gente do mundo inteiro. Alguma coisa traz essas pessoas pra cá e é coisa forte. Já senti. Moça, com todo o respeito, a senhora teria qualquer moedinha pra inteirar na minha cachaça? Não? Não tem problema, o melhor você já fez, você sorriu pra mim. Inteligente? Eu? Hahahaha, eu não, moça, eu só observo as pessoas. De verdade. Lúcio. Meu nome é Lúcio, mas não é de Lúcifer não. Fica com Deus, querida, mas cuidado que aqui é terra de Madame Satã.
Tem que ficar esperta com tudo."

Lúcio, morador de rua, num monólogo aos pés da Escadaria Selarón, na Lapa, a dois dias do carnaval.