terça-feira, 8 de setembro de 2015

O olho da rua

"Tão bonita e tão triste. Ou está cansada? Ou está com a cabeça muito longe pra olhar na minha direção e me dar um sorriso? Um sorriso, é! É com você mesmo que eu tô falando, moça. Nossa, agora gostei de ver, isso é que é um sorriso de verdade. Eu não gosto de ver uma moça bonita como você com esse olhar perdido. Isso aqui é terra de Madame Satã, moça. Eu sei que é fácil se perder. Tem que ficar esperta com tudo: é com os bolsos e é com o coração. Saiu, olhou pro lado, segura o celular, a gente nunca sabe quem tá na esquina. É gente desse mundo e do outro. Tô tão feliz que você falou comigo, moça, às vezes ninguém fala por medo - por falta de vontade também, porque eu não sou o cara mais legal do mundo, né, mas quase sempre é mais por medo. Eu? Eu tenho 32 anos, 1,95 e aqui nos meus dentes tem esse buraco porque o meu pai gosta de me esculachar. Porque eu sou morador de rua, né. Tênis, elástico no short, cabelo e barba limpo, isso tem muito tempo, não sei o que é. Eu vendia óculos na rua, às vezes arrumava um pra mim, e o resto do dinheiro dava pra comer alguma coisa. Hoje eu nem vendo óculos mais. Às vezes eu fico aqui, olhando quem sobe e desce a escadaria e eu já notei que é gente do mundo inteiro. Alguma coisa traz essas pessoas pra cá e é coisa forte. Já senti. Moça, com todo o respeito, a senhora teria qualquer moedinha pra inteirar na minha cachaça? Não? Não tem problema, o melhor você já fez, você sorriu pra mim. Inteligente? Eu? Hahahaha, eu não, moça, eu só observo as pessoas. De verdade. Lúcio. Meu nome é Lúcio, mas não é de Lúcifer não. Fica com Deus, querida, mas cuidado que aqui é terra de Madame Satã.
Tem que ficar esperta com tudo."

Lúcio, morador de rua, num monólogo aos pés da Escadaria Selarón, na Lapa, a dois dias do carnaval.

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