domingo, 27 de junho de 2010

Encontros paralelos


Era um dia cheio, e tudo que ele queria era ir pra casa. Começava a ventar mais forte, há minutos o jornal noticiava que havia a possibilidade de um temporal. Ele deixaria seu trabalho em pouco menos de meia-hora, um escritório-ilha onde depositava um terço de uma vida vivida pela metade. Cabível, num mundo cheio de limitações que ditam respeitabilidade. Digitava automaticamente o fechamento de um relatório. Havia uma foto de Júlia na escola, havia outra de Júlia com o cachorro, e também uma de Lúcia com ele numa viagem. Mas os ponteiros giravam.
 Quando ele deixou o prédio, o vento fazia espirais com os jornais de ontem no chão da rua. As pessoas corriam buscando marquises, os carros avançavam sinais. O céu havia se fechado como há muito ele não prestava atenção: era um cinza de uma beleza diferente. Seu carro estava estacionado em outra rua, o que o faria andar um pouco. Num cruzamento, sinal vermelho. Ele, que odiava esperar. Mas foi justamente naquela espera que não duraria tanto, justamente naquela espera que não iria além de sessenta segundos; que ele perdeu os olhos num ventre de mulher proeminente, que abrigava uma criança. Quando levantou o olhar, o choque: Ana. Ana. Trinta segundos. Ana do outro lado, tentando pôr os cabelos atrás da orelha; Ana com a mão direita a sustentar a parte inferior da barriga. Vinte segundos. Ana atende um celular e sorri, enquanto busca algo dentro da bolsa. Cinco segundos; Ana olha para a luz do sinal que iria mudar. E enquanto as pessoas engolem o cruzamento, como um vazamento d'água que correu para a superfície, ele se reteve por dois segundos para seguir o fluxo, afinal. E quando Ana o reconheceu, quando ele reconheceu o estrago que haviam feito ao apodrecer seu corpo com sêmen ali injetado, um sêmen que não era dele num ovário que havia sido dele; quando ela esboçou um sorriso doce, que devolvia à memória dele os contornos que ela tinha aos dezoito anos de idade, quando ele se deu conta de todo esse universo que morava dentro de um segundo, sua covarde reação foi de sorrir, e acenar para aquela Ana que era outra, que hospedava uma criança que ele amaldiçoou com o olhar; uma Ana que teria sido sua se suas vidas fossem outras, se Ana não passasse de uma maldita puta infeliz que deixava-se governar pela leviandade de um par de calças ou se não fosse tão intensa. E ele a perdeu no meio da multidão, bem como a havia encontrado.
 No outro dia, ele tinha 19 anos, e um monte de chamadas não atendidas de Janaína, Beatriz, Mariana, Letícia. Estava atrasado, enquanto a mãe o despachava da cama com traulitadas de cinto. "Vai trabalhar, moleque! Some daqui! Olha a hora, Pedro! Corre, ô infeliz!" Ele vestiu a primeira camiseta amarrotada que achou no meio do armário, escovou os dentes e olhou-se no espelho. Voltou ao quarto. "Garoto, você ainda não foi?! O que tá faltando?!" "Mãe, que patrão vai me admitir com uma camiseta do Sexy Pistols? Não dá!". A mãe riu, enquanto ele, ainda descabelado e trocando de roupa, deixava a casa às pressas.
 Esperava pelo ônibus, olhando o relógio, tenso. Mariana mandara uma mensagem. "Adorei a noite de ontem. Me liga, beijos." Ele sorriu pra si, enquanto olhava com desconfiança e irreverência para as outras pessoas que também esperavam por condução. Chega o ônibus, e ele se afunila para tomá-lo. Senta-se nas poltronas do meio, quando nota, na primeira poltrona, uma mulher que lhe chama atenção. Nem magra, nem gorda, nem bonita, nem feia, nem isso, nem aquilo: apenas diferente; dum tipo que não admite categorizações conhecidas. De perfil, boca e nariz grandes, cabelos caindo pelo ombro, e um jeito estranho no olhar, como se se insinuasse, quando talvez não fosse isso. Ela conversava com uma amiga que estava sentada na outra poltrona, e ficou um bom tempo observando a maneira como falava. Bem pontuada, gesticulativa, passava a língua nos lábios para umedecê-los muitas vezes. Em uma ocasião, suspendeu os cabelos e fez um coque, o que permitiu que Pedro notasse um símbolo que desconhecia tatuado em sua nuca. Aquilo havia assaltado seus sentidos, e ele havia ficado absurdamente atraído por aquela mulher. Não conseguia parar de olhar para ela; queria conhecê-la, queria conversar com ela, queria pagar-lhe uma cerveja, e queria, acima de tudo, devorá-la quando a noite chegasse, beber cada gota do seu suor numa transa que não acabaria nunca. O trânsito em total congelamento. Um acidente na Perimetral, diziam. Mas Pedro não queria saber de nada disso. Por ele, que assim ficasse, que ele teria mais tempo de contemplar sua musa que não tinha nome. Ela parecia ter uns vinte e dois anos. Era morena, morena duma morenice amazonense que a gente não vê todo dia. Mas era cruel. E expressou essa crueldade quando abortou o prazer ocular do estranho que a fitava quando levantou-se, anunciando para a amiga que desceria no próximo ponto. "Tchau, Bete, muito bom te rever, menina! Me liga pra gente combinar de sair!" "Vamos sim, Ana! Pode deixar que eu te ligo! Fica com Deus!". Ele havia descoberto seu nome. Ana. Será que era composto? Como em Ana Cláudia, Ana Clara, Ana Maria? Mas ele não sabia. E nunca saberia. Então ficava uma "ana" que podia funcionar de sufixo pra um monte de coisa. Profana, insana, leviana, tirana. A observou descer, e quando conseguiu olhá-la nos olhos, ela o olhou e sorriu discretamente. Ele quis quebrar os vidros naquele instante para trocar apenas duas palavras com ela, mas sabia que não estava em nenhum filme de Tarantino. Seguiu seu caminho, com os grandes olhos castanhos colados no vidro, sem nada observar além do próprio.
 Duas semanas atrás, Pedro fez sessenta e cinco anos. Foi uma festa incrível. A neta, Carolina, trouxe o bolo nas mãos pequenas, os netos maiores encheram bolas coloridas por toda a casa. Havia toda uma alegria que até o incomodava, ranzinza que era, no fundo. Não gostava de festas. Mas ao ver os esforços da família em iluminar-lhe um pouco as rugas, fingiu que estava tudo bem. Soprou as velas sem fazer pedidos. E ali estava ele agora. Acabara de correr pela ciclovia, ofegava, bebia água. Todos lhe diziam que ele estava muitíssimo bem e conservado, para a idade que tinha. O que ninguém sabia é que a aparente conservação era uma bobagem perto do rombo emocional que vinha alimentando desde que havia parado de trabalhar. Sentir-se inútil era confinar-se a uma prisão de inércia, e era assim que o velho Pedro se sentia. Não sabia ser devagar e não sabia depender de ninguém. Sentia que começava a contagem decrescente de tempo na dor nas pernas, nas vistas falhas, na respiração insuficiente, na memória débil. Mas havia coisas que ele não esquecia, e nem poderia.
 Enquanto fazia seu pequeno e introspectivo balanço pessoal, um grupo de pessoas se aproxima, com câmeras e aparelhos de filmagem. Deveriam estar produzindo algum filme. O velho alheio observa aquele movimento, mas sente seu coração parar por um milissegundo quando reconhece alguém de seu passado em frente a todas aquelas câmeras. Seus cabelos estavam brancos e mais ralos, o corpo havia ganhado adiposidades características da idade avançada, havia um singelo óculos sobre o peito, mas os olhos... ela tinha os mesmos olhos de antes! Ele não conseguia dizer nada, estupefato que estava depois de tantos anos perdidos para promissórias, mudanças, filhos, enterros, viagens. E agora sentia-se como um adolescente de treze anos diante do frescor de um possível primeiro beijo. Ele não poderia deixá-la ir, não agora.
 "Ana!", chamou-a de longe. Ela procurou a origem da voz, e o avistou.
 "Pedro... é você?" Ela mal acreditava naquilo. Que tipo de peça seria aquela? E se abraçaram longamente. Ela havia se tornado atriz aos inacreditáveis quarenta anos, e fazia toda sorte de filmes B com a entrega de uma atriz renomada. Ele estava se aposentando, involuntariamente, por recomendações médicas. Ela morou dois anos na Rússia, três na Inglaterra, um na Hungria e trabalhou na Tailândia. Ele não havia ido além do Rio de Janeiro pouco mais que duas vezes durante toda a sua vida. E ali estavam. O pessoal da filmagem recolhendo o equipamento e os dois conversando. Ambos bem-casados, com filhos bem criados, com netos, e com um disfarçável desejo por trás da postura recatada que traz a terceira idade.
Trocaram celulares. Se reencontraram, no mesmo lugar. Se reencontraram, muitas outras vezes. Sim. Estavam tendo um caso. Sem levantar suspeitas, sem grandes espectativas. Era um outro tipo de intimidade. Era um redescobrir o já descoberto, mas ainda assim era tão interessante. Afagar a pele enrugada. Beijar na boca e fazer sexo. Era a mais extraordinária experiência da vida dos dois. Com quarenta anos de atraso, mas viria justificar a lacuna como se essa não existisse.  
  Pedro acorda, assustado. Olha para a janela e vê o tempo fechado. Percebe que não irá enfrentar um trânsito fácil ao sair do escritório. Toma as chaves, e vai para casa. Júlia o espera para os deveres de casa.

quarta-feira, 16 de junho de 2010

Mas ainda não somos íntimos

 Sim, eu tenho o que contar sobre você. Posso contar das estrelas que você me ensinou a ver. Das noites em claro na praia, quando seu peito aquecia minhas costas, e eu, ainda bem, de nada sabia. Posso contar das nossas aventuras, das coisas mais impensáveis que nós fizemos juntos para, logo depois, rirmos um da cara do outro, e rirmos, e rirmos, e rimos. Que ordinária e barata felicidade. E você, que lançava conchas do mar na minha discreta caverna umbilical num fim de tarde qualquer; você que me levantava pelas pernas e me carregava, em meio aos meus pedidos de "me põe no chão!", como um troféu que pretendia levar pra casa.  Mas eu de nada sabia.

 É bom ter as memórias. É como se a gente vivesse um pouquinho de novo, mas por uma projeção em holograma, onde somos espectadores de nós mesmos. Como quando nós pseudofilosofávamos, longas horas, tarde da noite na rede. Eu anelava os seus cabelos e você, alisando minhas pernas. Ou o nosso segundo porre, porque o primeiro marcou a noite colorida na qual nos conhecemos. Foram dias paralelos.

 Acontece que eu acabei acostumando, falha minha. Estava fora de cogitação, mas me acostumei com sua maneira boba e incisiva de sorrir com deboche sobre as coisas, de fazer piada interna com tudo o que acontece e lançá-las no ar nos momentos que não me permitiam meu livre riso. Acordamos e dormimos juntos, durante dias. Você andou comigo de mãos dadas pelas ruas, conheceu minha família, e por um brevíssimo período ensaiou fazer parte dela. Mas ainda não somos íntimos. Pertencemos a universos bem distintos, e sabemos disso. Você e sua vida, do outro lado da cidade, e eu, com a minha; meus dias, meus anseios, minhas viagens, meus botões.

Nós dois tivemos a feliz coincidência de encontrar com o acaso, distraído, na mesma esquina. Depois, o que aconteceu é que cada um se devolveu ao seu mundo, como haveria de ser, como já era o esperado. Sem amor, sem medo. Acabamos criando um contrato inconsciente que delimitava até onde era seguro ir. E ficamos com o lado bom da história: tivemos as núpcias, as delícias, a despreocupação de uma vida inteira em quatro dias. Mas todo esse encanto que aflora dos meus olhos feito água bruta em foz quando eu escuto o seu nome, todo esse encanto só é preservado por um só motivo: ainda não somos íntimos. E provavelmente, nunca seremos.

Ainda bem.

quarta-feira, 2 de junho de 2010

Espartilhos modernos

Não posso deixar de pensar neste século como sendo um memorável período de grandes conquistas para a mulher; não posso ignorar as feministas queimando soutiens, a pílula, a nova jornada na vida das mulheres no mundo. Mas ainda sinto uma grande lacuna no tocante a algo que essa mulher, iconografia máxima de lutas, ainda busca: sua liberdade.
Por mais que os amadurecimentos na consciência coletiva sejam relevantes, ainda não é o suficiente. Nós, mulheres, ainda não somos livres. É um insulto, mas hoje, apesar de um significativo histórico de lutas, há um expressivo contingente de mulheres... machistas. Sim. As mulheres são tão machistas quanto os próprios homens, quiçá até mais.
Evidente que existe um contexto muito forte para que isso aconteça: nossa sociedade ainda é patriarcal, e o machismo encontra nessa condição o bojo perfeito para se dar, sem ressalvas. A menina cresce ouvindo da mãe conselhos que o pai também instrui, determinantemente, e isso molda o comportamento da criança, uma vez que se enraiza em sua visão de mundo, tendo reflexos por toda a vida numa cíclica machista perpetualizante. Mulheres de todo o mundo sofrem, todos os dias, julgamentos opressores de acordo com o comportamento que adotam.
A naturalização desses julgamentos é um fator comum entre os homens, entretanto também é entre as mulheres. É o que leva uma mulher a chamar a outra de "puta". Mas por que puta? Por que a então insultada administra seu corpo como lhe convém? Por que se sente dona de si, não se deixando abater por maledicências que - ela sabe - não a diminuirão? Por que é capaz de fazer sexo na primeira noite, sem deixar de ser uma mulher de valor aos próprios olhos?
As interrogações são inúmeras, e a extensão do tema é tal que geraria um dossiê, ou mesmo um livro. Com certa independência adquirida ao longo dos anos, somada ao aumento de seu espaço no mercado, a mulher se deu conta que também lhe é direito a autonomia das próprias escolhas. As pioneiras deste árduo processo encontraram fortíssimo rechaço, vide Leila Diniz, Pagu, e até elementos da literatura, como a Aurélia alencariana. Para mulheres que fazem uma leitura mais aprofundada de suas mensagens, nada foi em vão.
Muitos homens têm, na verdade, medo das mulheres que são independentes e seguras. Em uma comunidade machista, um homem que é sustentado por uma mulher ou menos bem-sucedido profissionalmente que ela é apontado como incapaz ou fracassado. Homens têm medo de comparações, e este é um pretexto muito oportuno para que, inclusive, difamem mulheres sexualmente livres. O ataque moral a essas mulheres é apenas um escudo que visa ocultar a latente fragilidade masculina de muitos. Se uma mulher faz sexo com a mesma freqüência que um homem, ela certamente vai julgar o desempenho de seu parceiro com aqueles que o precederam, e para boa parte dos homens, isso é um inconfessável pesadelo. O mesmo acontece na escolha das profissões. Quantas mulheres vemos em cargos de chefia? comandantes, empresárias; ou então, em profissões convencionalmente ligadas ao universo masculino, como motoristas de ônibus? Há uma cultura muito bem diluída de que certos ofícios ainda são restritos ao homem, mas pouco a pouco, a mulher vem mostrando que possui a mesma capacidade intelectual que eles e que pode, perfeitamente, ser designada para as mesmas funções.
Também é conveniente dizer que as mulheres liberais são vítimas da indústria, mas por vieses diferentes. A indústria moralizante apedreja; a da vendagem se apropria desse ideário para o lucro, daí uma grande proliferação de mulheres pseudo-liberais: assim o dizem por uma moda ditada por um elemento maior, e disso não se apercebem; bem como o bissexualismo pop que se alastrou entre os jovens por conta da influência midiática. Há realmente poucas mulheres que hasteiam a bandeira da liberdade e defendem, com base, o que vivem.
A ruptura com esse machismo anacrônico ainda se dá num lento gotejar. Eu não creio que estarei viva para ver uma mudança de efeito em termos globais, mas todas as grandes revoluções sempre começam como grãos.
Basta esperar para que o tempo os alimente.