Não posso deixar de pensar neste século como sendo um memorável período de grandes conquistas para a mulher; não posso ignorar as feministas queimando soutiens, a pílula, a nova jornada na vida das mulheres no mundo. Mas ainda sinto uma grande lacuna no tocante a algo que essa mulher, iconografia máxima de lutas, ainda busca: sua liberdade.
Por mais que os amadurecimentos na consciência coletiva sejam relevantes, ainda não é o suficiente. Nós, mulheres, ainda não somos livres. É um insulto, mas hoje, apesar de um significativo histórico de lutas, há um expressivo contingente de mulheres... machistas. Sim. As mulheres são tão machistas quanto os próprios homens, quiçá até mais.
Evidente que existe um contexto muito forte para que isso aconteça: nossa sociedade ainda é patriarcal, e o machismo encontra nessa condição o bojo perfeito para se dar, sem ressalvas. A menina cresce ouvindo da mãe conselhos que o pai também instrui, determinantemente, e isso molda o comportamento da criança, uma vez que se enraiza em sua visão de mundo, tendo reflexos por toda a vida numa cíclica machista perpetualizante. Mulheres de todo o mundo sofrem, todos os dias, julgamentos opressores de acordo com o comportamento que adotam.
A naturalização desses julgamentos é um fator comum entre os homens, entretanto também é entre as mulheres. É o que leva uma mulher a chamar a outra de "puta". Mas por que puta? Por que a então insultada administra seu corpo como lhe convém? Por que se sente dona de si, não se deixando abater por maledicências que - ela sabe - não a diminuirão? Por que é capaz de fazer sexo na primeira noite, sem deixar de ser uma mulher de valor aos próprios olhos?
As interrogações são inúmeras, e a extensão do tema é tal que geraria um dossiê, ou mesmo um livro. Com certa independência adquirida ao longo dos anos, somada ao aumento de seu espaço no mercado, a mulher se deu conta que também lhe é direito a autonomia das próprias escolhas. As pioneiras deste árduo processo encontraram fortíssimo rechaço, vide Leila Diniz, Pagu, e até elementos da literatura, como a Aurélia alencariana. Para mulheres que fazem uma leitura mais aprofundada de suas mensagens, nada foi em vão.
Muitos homens têm, na verdade, medo das mulheres que são independentes e seguras. Em uma comunidade machista, um homem que é sustentado por uma mulher ou menos bem-sucedido profissionalmente que ela é apontado como incapaz ou fracassado. Homens têm medo de comparações, e este é um pretexto muito oportuno para que, inclusive, difamem mulheres sexualmente livres. O ataque moral a essas mulheres é apenas um escudo que visa ocultar a latente fragilidade masculina de muitos. Se uma mulher faz sexo com a mesma freqüência que um homem, ela certamente vai julgar o desempenho de seu parceiro com aqueles que o precederam, e para boa parte dos homens, isso é um inconfessável pesadelo. O mesmo acontece na escolha das profissões. Quantas mulheres vemos em cargos de chefia? comandantes, empresárias; ou então, em profissões convencionalmente ligadas ao universo masculino, como motoristas de ônibus? Há uma cultura muito bem diluída de que certos ofícios ainda são restritos ao homem, mas pouco a pouco, a mulher vem mostrando que possui a mesma capacidade intelectual que eles e que pode, perfeitamente, ser designada para as mesmas funções.
Também é conveniente dizer que as mulheres liberais são vítimas da indústria, mas por vieses diferentes. A indústria moralizante apedreja; a da vendagem se apropria desse ideário para o lucro, daí uma grande proliferação de mulheres pseudo-liberais: assim o dizem por uma moda ditada por um elemento maior, e disso não se apercebem; bem como o bissexualismo pop que se alastrou entre os jovens por conta da influência midiática. Há realmente poucas mulheres que hasteiam a bandeira da liberdade e defendem, com base, o que vivem.
A ruptura com esse machismo anacrônico ainda se dá num lento gotejar. Eu não creio que estarei viva para ver uma mudança de efeito em termos globais, mas todas as grandes revoluções sempre começam como grãos.
Basta esperar para que o tempo os alimente.
Um comentário:
Eu acho -e há autores nesse sentido- que o machismo (e a monogamia também) surgiu com a propriedade privada e consequentemente com a sociedade de classes: a mulher se converteu em geradora de herdeiros. Para garantir a "autenticidade" da prole, veio todo aquele controle social sobre a mulher. Isso varia conforme a cultura: seja trancando elas num gineceu (como na Grécia antiga), seja jogandos-lhe uma burka que tapa o corpo etc., mas a mentalidade por trás é a mesma.
Hábitos culturais enraigados são difíceis de tirar. É um trabalho constante e, principalmente, não podem as próprias mulheres reforçarem o machismo, como reiteradamente vemos por aí.
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