terça-feira, 18 de maio de 2010

Linguagem cromática

Moça de branco com flores sobre a fronte sorri nervosa. Cinema preto e branco emociona. Crianças em toga azul gargalham. Espanhola de vestido vermelho sapateia, esvoaçando. Senhora de trajes pretos pranteia. Mc Donalds grita sua verdade aos estômagos.
A bandeira branca pede. Bandeira vermelha avisa. Bandeira policromática alardeia (um musicar eletrônico). As páginas amareladas dum livro indefinem sua idade. Flores róseas anunciam que a primavera está viva de novo. A explosão colorido-difusa de 70. O verde nas fardas de 64. E o vermelho em cada esquina russa.
Acinzentado firmamento que traz a melancolia de fora para dentro; alaranjado, dissolve corações adolescentes em beira de praia. As cores de Kurosawa e as não-cores de Reisnais; as festas visuais de Hering a Warhol, máxima expressão do gênero. O manto azul de Fátima.
A tela em branco, muda.
A tela em cores, mundo.

quinta-feira, 13 de maio de 2010

Autópsia

Sinto um cheiro estranho que vem desse lugar gelado. Não um cheiro só; cheiros distintos, elementos químicos putrefando. Desconfio. Não me movo. Na imobilidade do meu corpo, nu, sinto a frieza da cama árida onde me encontro. Respiro, tentando encher os pulmões de ar. Não consigo. Mais uma vez. Não consigo.
Abro os meus olhos, tudo está escuro. Não, eu não me movo. Os olhos dançam esperançosos nas pálpebras secas, na tentativa de captar qualquer ínfimo ponto de luz que tente romper a barreira da escuridão. E fracassam. Meus olhos estão secos. E doem. Aparento estar tetraplégica, não tenho expressão, não tenho movimento. Todo meu falar mora nos olhos. Estou toda simétrica, aqui deitada.
O silêncio sempre me irritou muito, e agora, mais que nunca. Não há nenhum som neste lugar. Ai, que saudades sinto dos barulhos. Até dos barulhos mais aleatórios, ordinários. O riscar duma superfície em outra, uma campainha estridente, tic-tac de relógio. Um copo de vidro espatifando-se no chão me traria imenso gozo, me faria lembrar das minhas faculdades auditivas, que eram por mim tão bem quistas quando eu andava por lá.
Todas as minhas extremidades estão petrificadas. Dedos, sejam estes dos pés ou das mãos, boca, orelhas, ponta do nariz. Se eu tivesse uma cor, eu seria azul.
Sou uma boneca oca, cujo sangue estancou.
Mas, enfim! Ouço passos. Passos graves e pesados, crescentes. Alguém está chegando. Abre-se uma porta. Os passos diminuem de freqüência, e param. Escuto um estalar plástico, não entendo. De súbito, sinto meu corpo tremer, como se um tapete que outrora estava sobre mim estivesse sendo arrebatado com força por mãos fortes. Uma luz pontiaguda me invade as córneas, e ai de mim, inexpressiva, que não posso franzir sobrancelhas.
O homem toca o meu rosto, abre minha boca. Aproxima-se de mim sem o romantismo que cabe aos homens que se aproximam de mulheres completamente nuas. Minha boca permanece aberta, esperando o beijo que não vem. Ele tem olhos tão indiferentes, e mãos tão puramente analíticas.
A situação me incomoda tanto. Por que diabos ele assim me tortura? Eu, despida, um homem estranho com a crueza de um examinador. E permaneço inerte, que estupro consensual. Que gosto ruim esse das carnes podres da boca aberta; que sensação enojativa contemplar um homem de máscara branca que me devassa um corpo que ainda sinto ser meu.
Ele vira-se. Se eu pudesse levantar, o acertaria com alguma das ferramentas laminadas que ele depositou na mesa ao lado. Mas eu não posso. Me contento em observá-lo macular a minha pele, em rasgá-la. Ele parece fazer algumas anotações, não consigo ver ao certo. Ele se aproxima, olha para mim mais uma vez e eu o olho de volta. Ele então me empurra para trás, e me trancafia novamente na insuportável câmara onde eu não consigo respirar, onde sou privada da luz.
Eu não sei bem que complô é esse, eu não sei quem fez isso comigo. Só lembro de antes; de ter passado a noite numa casa que não era minha, e que tampouco era isso aqui. Disso aqui eu não lembro. Não sei como vim parar aqui, provavelmente me trouxeram. E não está agradável. Está frio, está escuro, mas eu não sinto dor alguma. Quero minhas roupas, quero fugir, preciso fugir. Não sei quanto tempo mais vou agüentar o marasmo de ser violada por um homem estranho. Preciso fugir.
Mas ainda estou aqui.