sexta-feira, 9 de dezembro de 2016

conselho de pai

quando tinha 9 anos
e reprovei a quarta série
foram as dificuldades em matemática
que não me abandonaram com o tempo
e as muitas moscas e mosquitos no horizonte
da vista
os culpados
eu escondi meus boletins no vão da cama
e joguei mario bros até
os polegares
incharem
e até meus olhos encherem de pixels
no café da manhã seguinte meu pai
a voz cândida de manhã me disse
ana você não mentiria pro seu pai
porque seu pai não mente pra você
mentiria?
e meu pai sabia
que eu mentiria
sim
meu pai estudou menos que noam chomsky
e não fala tantas línguas
quanto olga kempinska
e ainda assim
foi meu pai quem pela primeira vez me disse
"ponderação, minha filha"
e fico ainda sem certeza
se meu pai é capaz de mensurar
o quanto essa é a palavra
que eu mais penso na vida.

quinta-feira, 3 de novembro de 2016

Poema retirado de uma elucidação sobre a expansão do universo no Instagram

From our perspective it looks like
we're at the centre of
the universe

Yet
it doesn't make us
special

In fact
every location in the universe
gets to feel special

because in an expanding universe
everywhere looks the centre

If everywhere is
the centre
of the universe
then universe would in fact has
no edge

A universe with no edge
is a universe that
although expanding
is the one that doesn't need to expand
into anything.

segunda-feira, 31 de outubro de 2016

Rio de Janeiro, 31 de outubro de 2016

os crucifixos brilhando sobre as encruzilhadas da cidade
o trem descarrilou ao norte
sob um sol de quase quarenta graus

uma pipa agarrada na fiação do dia 01
as crianças na rua discutindo o que de longe
vira outra língua
(não é o pasteurizado de vozes, de fato,
a língua dos anjos
que língua é essa?)

religiosidade, se os santos do dia anterior
ainda voam nas ruas
estranhamente normais, e vazias
dizem do epicentro
que é nele sentido a maior descarga
de dor

uma mancha de homens coloridos abarrota as centrais
seus uniformes e olhares
espirais
e um aspirar preso nas bocas por sob
o suor dos buços
passa um outro homem e rompe a marcha e na mão dele
amendoim dois é um real e pra quem gosta de doce,
kitkat
no sorriso obrigado dos dias,
troco.

a paleta variada das rodelas já gastas
à infinita pressão do tempo tão logo se despedaçam
nas pilastras, nos postes, nas bancas de jornal
nas camisas não-lavadas, no teatro municipal

uma mulher recosta os cabelos crespos
no vidro do ônibus
com os pés equilibra
uma bolsa puída
guardando as cores de mil esmaltes
na cabeça equilibra
mil problemas

a viúva negra
no dia das bruxas
foi levada a inquérito
enquanto há calor nas areias das praias
matebiscoitogloboaplausosarpoadorttburguerfacebookgarotasdeipanema

já se fazem especulações
das próximas fantasias de carnaval
religiosidade, se os santos do dia anterior
ainda voam nas ruas
se os crucifixos machucam
as encruzilhadas
com toda a sua luz
cristo vive
o homem reina
amém?

indiferentes e plácidas
as flores vadias nas árvores mal cultivadas
dos canteiros urbanos
arrebentam no fim da primavera
aos olhos de ninguém.

quinta-feira, 20 de outubro de 2016

quantas poesias não são
diariamente perdidas
diariamente não nascem
porque os matemáticos,
desde ramanujan até
os calouros
do instituto de massachussets
não quiseram
não souberam
entrar nas palavras?

quinta-feira, 13 de outubro de 2016

Questionamento

na praça tiradentes
e na rua do ouvidor
pelos depósitos da cidade
esquinas que pleiboi não pisa

ilha do governador
samba do trabalhador
cadê você, ô meu amor

te percebo na ausência
por saber onde você está
na espera do ônibus
que custa uma manhã
pra chegar

não tem mais teu nome
na boca da roda
não tem mais piada tua
zombando da nova moda

por saber onde você está
te percebo na ausência
não é mais sobre amar
é sobre bem-querência

bar da cachaça, bar no nanam,
bdp
vazia a rua não está
mas falta um quê
na praça mauá
ou na da harmonia

meu amor, cadê você

quarta-feira, 12 de outubro de 2016

sem título

os prédios refletem o humor das cidades
tossindo
entre um café e outro
numa quinta-feira de cinzas

do outro lado
tratores mastigam a rosa da terra
abrem essa fenda
funda
donde espirram cores fofas
muitas vezes sufixadas
tentativa de multiplicação - a terra é próspera

a magreza dos eucaliptos até lembra vagamente
tuas canelas
se os eucaliptos pudessem
marchariam
arregimentados
khmer verde
você, não
apesar de que, ah,
tão taurino

uma cerca branca lá longe
marca a distância pro céu e o céu está
onde
nenhum carro ônibus barco avião
qualquer coisa que não seja feita
de sangue
possa entrar

engrenagens não se arriscam
no íngreme de algumas escadas

a noite entrando no rabo da tarde
parece um pequeno fim do mundo toda vez
uma vez eu te perguntei
para onde você iria na iminência do desastre
você respondeu
hollywood

os prédios
tombando, em sequência
como dominós

ma(i)s nada está objetivamente acontecendo.

quarta-feira, 5 de outubro de 2016

Nó cego

diz-se que um
nó cego
deve ser aprendido para
nunca ser usado

como aqueles conhecimentos
pontuais e indispensáveis
todos aprendidos
na quarta-série

nó cego é o que acontece
depois de dois nós simples
nivelados em linha reta
num beijo horizontal

dentro do nó
a luz não entra
não pode crescer
uma árvore ou
um bebê

um nó cego deve ser aprendido para nunca ser usado
mas uma vez que se diga
nunca
a vontade já se fez

não há luz;
apenas um beijo
no horizonte -
somos nós
cegos.

colaborou: Danilo Crespo

domingo, 2 de outubro de 2016

Cândida psicossomática

cândida psicossomática
tem esse sal chupando
as águas moles
vivas
que o sal salga e rasga
e estereliza

coceira
alergia

você tem os joelhos feridos de tropeçar nas granadas
e a água gelada tocando
a face ensanguentada dos joelhos
cândida psicossomática
foi como queimar teu corpo com sal

sei que você roça a carne interna das coisas
e também das coxas
porque não consegue dormir

cândida psicossomática
um dia vai verter do útero
uma pérola
a romper o sangue e a insistência
uma extraordinária pérola
completamente lisa
completamente pérola
que estava esperando, melancólica como trier

atrás dos fluxos da menstruação
pra nascer

para liv lagerblad e ana carolina assis

sábado, 24 de setembro de 2016

Longos pretos brancos francos

eu quero ser uma mulher
eu quero ser uma mulher de longos cabelos
pretos
brancos
francos

quando me disserem que já não tenho idade

quando me mostrarem uma foto
da judi dench e me disserem

esse cabelo ficaria bonito em você

quando as crianças me olharem na rua
e não se sentirem netas

eu quero ser uma mulher de longos cabelos brancos pretos francos
e talvez até meio embaraçados

numa cabeça onde eles estejam confortáveis
crescendo, ainda,
na direção que quiserem

quero ficar enérgica com o síndico
e poder deslizar as mãos quentes pelo cabelo
quero fazer uma trança
unindo o tempo nas madeixas
e ir ao casamento do sobrinho
quero desarrumar esse coque comportado antes de fazer amor

e quando na fila do banco me esperar
uma cadeira marcada

ou ao telefone vozes anônimas me oferecerem seguros de vida

e nas sessões de vestuário eu achar meu peito dentro
de um corte sufocante

em algum momento

quando me mostrarem uma foto da judi dench e me disserem

esse cabelo ficaria bonito em você

responderei com o corpo todo

eu quero ser uma mulher de cabelos pretos brancos francos
e até meio embaraçados.

Para Cinda Gonda, Sonia Braga e Maria Bethania

Poema tirado de uma noticia no radio

Debaixo da luz beliscada
da cidade baixa
um carregamento de eletroeletronicos
da companhia Cometa
foi assaltado na rua Mercurio

e conforme o locutor do radio
ia narrando o caso
eu fiquei pensando
nas milhares de luzinhas quentes
faiscando desse encontro, no mínimo,
oportuno

sábado, 17 de setembro de 2016

Quinto Encontro do Grupo dos Veteranos

meu pai escolheu
a melhor gravata
aposentado
no sábado antes das 9
estava acordado

regou as plantas na varanda
deu de comer aos pássaros

nove horas e meu pai
fazendo torradas
perfeitamente quadradas
perfeitamente douradas
e também café e organizando a mesa

meu pai gosta de comerciais

os cremes no banheiro
brancos
todos os cremes do banheiro ou são brancos
ou amarelos
ou levemente azuis
e quando abertos cheiram
a misturas que terminam com nomes
de compostos químicos
de tão grandes,
germânicos

onze horas e meu pai
tábua posta no umbigo
a quentura do ferro testada na ponta
dos dedos
meu pai assovia
a mesma canção de sempre

sem paciência minha mãe se queixa
da água derrubada pelo chão
dando formato às pegadas
meu pai,
os olhos encolhidos de criança
beijam até seus palavrões

paulinho da viola canta na cozinha
uma canção sobre indiferença

meu pai tem cabelos muito cheios e pretos
e bem penteados para trás
uma flor invisível na mão esquerda
bolo de milho na direita
hoje é o quinto encontro da turma do ginásio
meu pai encontrará amigos
alguns bebendo, alguns mentindo
sobre sucesso mulher e filhos
a petrobrás e o lula enquanto
um amigo defenderá a polícia
o outro gritará fora temer
e no fundo do salão verá sua primeira namorada
e a filha que ela teve mexendo no celular
a filha que ela teve não sou eu

taiguara canta na cozinha
uma canção sobre o tempo.

sexta-feira, 9 de setembro de 2016

Por excesso

Apaixonadamente perdida
eu sou de vagar
A rua é um grande rio de concreto
duro
escuro
que eu gosto de navegar

Perdida
A noite como casa
A lua como reflexo
Todos os espíritos da escuridão
meus amigos

O chão conhece os passos
fotografa o calor dos abraços convertendo
essa luz macia e intensa
por dentro
empurrando-a
na unha dos paralelepipedos

A noite como casa
Certos mamíferos só podem ver no breu
A cor-de-âmbar dos copos de cerveja
Bebedouro de cristão
Bebedouro de ateu

A noite é uma casa de muitos cômodos
E portas trancadas

A lua como reflexo
internas rotações
O satélite na órbita dos olhos
Uma supernova na língua
A cabeça impossível
Desobediente da lógica

Apaixonadamente perdida enquanto
cada estrela é o ponto
de um manto
Por sob a mão nas minhas costas
pesa toda a benção e pranto
do que é maior que o mundo humano

Meu caminho desenha meu destino,
eu não

Tem rosa e vela na esquina,
desatino,
eu vou

Lascas de estrela talvez contem um dia
O que o olho nu perde, não vê,
não pede
É de força e resistência esse chamado
não é pra quem quer

Apaixonadamente perdida
eu sou de vagar
a vida é um rio extenso
que eu gosto de navegar.

Para Luciana,
cigana que hoje é luz.

quinta-feira, 8 de setembro de 2016

Aquarius - de espaços, memória e disputas

Existe uma lenda de que os filmes de Quentin Tarantino, na verdade, seriam o conjunto de um filme só. Talvez a parte menos interessante disso seja o esforço em provar essa possível verdade, mas degustar a hipótese, que por si só, é no mínimo capciosa. É tentador dizer que com o cinema de Kleber Mendonça Filho não é diferente. Os muitos signos do diretor se copiam de um filme a outro, e nesta cópia acontece um prolongamento que faz com que esta atitude nunca se reduza a uma reprodução ou reciclagem pura e simples. A gratuidade, aqui, não existe.

Em Aquarius são depositadas, sutilmente, senhas aqui e ali para quem já foi anteriormente apresentado ao seu cinema. Quem tem em Aquarius sua primeira viagem com o diretor, no entanto, não perde a experiência da potência sensorial que ele maneja, provocando o telespectador a interagir com o filme da vez.

Como de costume, Mendonça Filho nos introduz Aquarius com uma grossa laca de cor local. Somos apresentados a uma Recife que se colore aos poucos, até literalmente saturar, numa galopada cronológica em três partes. No corpo do filme está Clara, uma jornalista voltada à cultura musical - poderosamente encarnada por Sonia Braga - que se vê diante de um problema quando uma construtora tenta, de todas as maneiras, fazer com que ela venda seu apartamento para que a mesma finalize a compra de todo o prédio afim de ter total controle da propriedade. Acontece que Clara não parece estar muito disposta a vendê-lo, e já nos primeiros quinze minutos de filme somos sensivelmente informados do porquê.

O mote de Aquarius guarda alguma semelhança com o longa do russo Zvyagintsev, Leviatã, de 2014. Apesar de seus desdobramentos diferirem ao longo da narrativa, ainda temos, aqui, uma disputa entre forças algo desiguais. O enfrentamento se dá em nível de gênero, etário, social; e a tensão constante é concebida afim de gerar desconforto a quem assiste. Consonante a isso, Mendonça Filho carrega na assinatura, adicionando, na linha do conflito, os elementos já tão particulares de sua ficção, pelos quais tem um apreço notório já desde Enjaulado, de 1997. Nestas inserções potentes, o cineasta se mostra um grande semiotizador de objetos, um profundo conhecedor da sociedade recifense (colocada aí como um provável mosaico do Brasil inteiro), e um mestre na arte das lacunas.

Mendonça Filho constrói uma narrativa que tem na memória uma forte referência. Para além disso, a vivacidade dessa memória perpassa o comportamento das personagens. A memória de tia Lúcia é transferida à Clara. A memória de Clara é transferida à filha, ainda que ganhe outros contornos, o que nos leva a uma conclusão óbvia a essa altura: a memória é justamente o que está na base das estruturas daquele apartamento - daí a recusa de Clara em deixá-lo. A memória também funciona como um bom gancho para ilustrar a passagem do tempo, dentro e fora da narrativa - estamos diante de um diretor que gosta de cenas de aniversários.

Se em O Som ao Redor Mendonça Filho explorou ao máximo toda a potencialidade do ruído dentro do filme, em Aquarius, a ligação com o som existe, mas por menções à música em si, à presença da música em si; ora furando a diegese, ora funcionando como pontuadora de momentos calorosos ao longo da película, ora enquanto por via da trilha sonora. Aqui, é a música ao redor e sua propriedade de dizer quando os atores se calam. É bom lembrar que Clara é uma jornalista voltada à cultura musical, e construiu sua carreira sobre isto, portanto, é bastante natural a relevância que Mendonça dá a este segmento, uma relevância quase, mas nunca excessiva.

Aquarius também é um filme marcado pela questão do espaço, sobretudo o trânsito dentro do espaço. É um filme sobre limites - por favor, não só - espaciais e ultrapassagens que são colocados, bem à moda do diretor, num prosaico contexto de vizinhança. Essa situação dá origem a outros tópicos, onde se observa a questão da vigilância, da segurança, do voyeurismo. E Mendonça Filho é um tremendo voyeur, que parece ter prazer em conduzir seu público nessa direção; torná-lo voyeur também. Esse olhar é algo que o diretor estende ao avizinhamento. Ele parece se sentir sempre muito à vontade para trazer para as telas a parte suja que fica por sob o tapete das relações entre vizinhos, mas nesse caso, a protagonista de Aquarius está só. Como se dá isto, então? Basta que se preste atenção aos vizinhos imediatos de Clara, no caso, os agentes da construtora Bonfim. Eles são os vizinhos incômodos.

São esses vizinhos incômodos com os quais Clara é obrigada lidar que desnudam a face escrota dos acumuladores de propriedade privada, vulgo empreiteiras e construtoras, o que agrava o tom político do filme - ALÔ ODEBRECHT! O cinismo, a falta de escrúpulos e a indispensável proteção-por-fora dos agentes da construtora encontraram num promissor Humberto Carrão seu rosto certo, que é jovem, voraz, de fala macia, homem e branco. Ainda, é justamente a indecência da Bonfim Construtora o que gera o momento catártico de Aquarius. Já foi pra história.

Kleber Mendonça Filho, mais uma vez, brinda as audiências com um cinema que dialoga profundamente com sua terra e seu tempo, sem cair numa panfletagem óbvia, por saber dançar, e bem, entre temáticas variadas. Com isso, inscreve seu nome como um grande ficcionista e realizador de cinema brasileiro - e recifense.

Sempre recifense.






quinta-feira, 25 de agosto de 2016

Partida

A palavra demora
quase tanto tempo pra nascer
que uma pessoa demora

na folha branca se espalha a tinta
desorganizada a tinta se esforça dentro
do perímetro em roxo pontilhado
da mão pequena que coordena
os dedos curtos equilibram
o lapis apontado
que aponta e lavra
o embrião da palavra

aquela poeta sempre soube
a palavra demora
quase tanto tempo pra nascer
quanto quem insiste em ir embora

as curvas excessivas chocam os inicios
no calor da continuidade dos exercicios

linha reta é mérito
e cedo se sabe
é preciso retidão

o tempo arrefece as ondas
e tranquiliza o traçado pela intimidade
o vermelho arruma as arestas
matura em forma e tom

a palavra, então
demora
modera
depois de tanto ser larva
entalhada na pressão silábica
quebra
racha
o repouso confirma a cisão

por sob a mão exausta
inscrita está a palavra
nascida da repetição

segunda-feira, 15 de agosto de 2016

Processo

Nas argolas o homem atravessa
os braços
alinha o fio da vida nesta casa
seu rosto, suas veias e os dentes mal comportados
num sorriso invisível
estável

A palavra enxuta 
filha da força bruta
fura a água 
com sua impossível textura
cava a terra
e seus dedos saindo pretos
pescam pequenas coisas

pedra, fogo, machado

O corpo deitado contempla
na escritura do céu
a plenitude das possibilidades 
as muitas teias de poeira e sonho
que se chocam enquanto dançam 
a mais antiga das danças
O corpo deitado, no entanto,
 não navega

Máquina
Formidável e temporária máquina
da feitura e do feitio se apresenta enquanto
máquina
separada, no entanto,
pela corrente de sangue e água salgada
ao verter do recôndito
a pedra lapidada

O homem
teso e suspenso em teste
vai ao chão de um salto e o músculo
quente em riste
mordisca as bordas intocáveis do número absoluto

Está em jogo o produto
Metal nobre na escuridão
Custando nervo e cabelos
O sucesso e a vergonha debruçados sobre o mesmo cadafalso

Não há no mundo um só poema 
que, se poema, seja falso




Para Fiama

terça-feira, 2 de agosto de 2016

Loja de perfumes

Depois de um tempo a gente entende
O mel e o vidro podem ter a mesma
textura e cor num instante exato
Antônio Conselheiro está reencarnado pela segunda vez
dessa vez, em Zé Ramalho
Da loja de perfumes todos os
transeuntes saem com o mesmo cheiro de tudo
Minâncora e Leite de Rosas continuam imbatíveis no mercado
e no Mercado de Pulgas o samba já foi melhor

Depois de um tempo a gente entende
Toda narrativa é acaso - de grandes insetos a pequenos
dinossauros toda narrativa é
acaso
e a sagrada instituição do casamento começou a rachar quando
os crucifixos sobre as camas saíram de moda
direto para as prateleiras dos bazares
depois de um tempo a gente entende porque
os livros a metro estão sendo vendidos
mas não houve notícias de sebos fechando

A criptografia sofisticada das mensagens
de esferas amarelas escondendo grandes estimas
depois de um tempo a gente entende
a gente aprende a ter vergonha do que tinha orgulho
e também aprende a ter orgulho do que tinha vergonha
e não há nada que possa ser tão errado ou tão certo
na linha irregular do eletrocardiograma

Aparecem pessoas nas fotografias que ninguém havia visto antes
e as chuvas de asas membranosas quando
os dias são de calor
depois de um tempo a gente entende
Waly morreu falando a verdade e
Nixon viveu mentindo
mas vai sempre haver alguma couraça no olhar
que vai impedir a chegada
tanto das verdades quanto das mentiras

Os dentes doem ao nascer e ao cair
em qualquer idade
e quase tudo pode acontecer nos terminais rodoviários da cidade
e o som das geleiras mergulhando no mar (para de novo compor o mar)
pode ser ouvido a quilômetros de distância
o amor não é tudo, mas é grande parte
até mesmo os amores risíveis
a vida não fica melhor ao ser compreendida
e nem este poema
e nem o tempo traz todas as respostas

mas como é (mesmo e apenas) da sorte
que qualquer pessoa no mundo depende
o movimento rápido na mesa
o sorriso na hora errada
o mito da beleza
depois de um tempo a gente entende.

Janta

No prato está, imóvel
A vértebra fina de um fóssil
Quebrantável
como o silêncio da madrugada
Equilibrada
na louça lisa e branca
neta de rústica cerâmica

O taxidermista mais cauteloso da cidade
não seria capaz de encarar
este enigma
porque um enigma precisa de olhos

Enquanto a vértebra no prato
à indiferença faminta do garfo
já se esfacela

Numa viagem de cem milhões de anos
Intermediário destino dela.

domingo, 31 de julho de 2016

Covinha

covinha

uma pequena
cova
uma ausência

uma fissura rompendo
o rosto
um hiato
pra ladear seu sorriso

você me disse
você sabia
covinha é falta de músculos
você sabia

eu, que não tenho covinha

covinha e a supervalorização
da covinha
jennifer garner tem covinhas
quando kirsten dunst nasceu
devem ter notado suas covinhas
enquanto ela chorava
humberto martins também tem covinhas
mas as dele, duvido que os obstetras
tenham percebido

covinha
é só um buraco

mas eu bem queria ser
uma libélula bem pequenininha
pra dormir na sua covinha.

covinha

uma pequena
depressão

na memória

uma história

onde não tinha.

domingo, 17 de julho de 2016

Dia de muito, véspera de nada

Eu costumo chorar aos domingos.
Eu costumo chorar aos domingos ouvindo Bach.
Eu costumo chorar aos domingos ouvindo Bach enquanto penso nos sábados.

sexta-feira, 15 de julho de 2016

Vênus em Touro

Não perderia tempo cavando
até as unhas sangrarem
na fumaça das tuas palavras
o que te é substância

Nem conjecturaria
no oco da tua voz
sobre o eco - ele mesmo -
que na última reverberação
dá um nó no ar
muda o que você diz

Não vasculho as portas fechadas
Nem as gavetas entreabertas
Me alimento de três em três horas
Fumo cinco cigarros por mês
e hoje de manhã minha pressão marcava 12 por 8

Mas tão certo
Tão certo quanto a matéria

é que o teu silêncio, justamente o teu silêncio
é assunto maior do meu interesse.

terça-feira, 12 de julho de 2016

quarta-feira, 29 de junho de 2016

Outro lugar

E agora
tem teu cheiro na minha calma
no meio dos silêncios
das duas e meia da tarde

Vê que sobra
nesta parte
Qualquer coisa que me pertenceu
não, não foi você
fui eu

Tem litros de palavras despencando
Açude e sorte
Sedimentos no meio do corte
vão fechando

Fiam internas as minhas penélopes
no meio dos milênios
a imagem do teu sorriso cabendo
plácido
às duas e meia da tarde

segunda-feira, 27 de junho de 2016

Tradição oral

Teu pau dilatando o
túnel da minha garganta,
lágrimas honestas de devoção
Condição única:
sendo a verdade dura
que me interrompa a
respiração.

domingo, 19 de junho de 2016

Acordo entre senhores

Era de leite a cor da luz por entre os furos da cortina puída pelo tempo que entregava as primeiras horas daquele dia. Do lado de fora, Bonita se encolhia debaixo da proteção improvisada de madeira e feno, que já deveria estar bem úmida, tinha feito muito frio e chuva nas últimas semanas. Ela estava magra e fraca pra além da conta e aquilo era uma preocupação. Eles sabiam que ela não iria muito longe. Tinha também o problema das galinhas. Foi de olho vivo nessa situação que o pai tomou a decisão.

A mãe já tinha levantado porque o pai ia ter que ir à cidade mais cedo que de costume pra negociar aquela história, e era sabido que o pai não pensava bem de estômago vazio. Da última vez que isso aconteceu, foi acertar um problema com o Zé da Estância, falou coisas erradas e voltou com um dedo a menos e um aviso de que podia perder os outros nove. Por ali era preciso ter cuidado com o que se dissesse. Não alargar a hospitalidade nem a disposição das pessoas. No bar da estância, especialmente pela primeira vez, era uma talagada, agradecer, chapéu baixo e o recolhimento da própria presença em poucos minutos. Nada de alarde. Mesma coisa na casa das meninas. Não por elas, mas pela clientela. Seu Marconi não era afeito a alvoroços, era isso que sempre dizia. Quem brigasse lá dentro voltava mais não. Nunca é demais lembrar que respeito era bom e conservava os dentes, bem como talvez seja apenas da ordem do detalhe pontuar que por ali se sorria muito pouco.

O pai bebeu o café duma vez só, e xingou a mãe quando apertou o pão e a gema quente do ovo lhe pintou de um visgo amarelo os dedos. Ele odiava gema mole, mas o pai da mãe não comia gema de outra maneira que não fosse mole, daí que a mãe só acertava fazer ovo com aquela textura ruim, que não era nem uma coisa nem outra. E ouviu que era uma bicha burra que não sabia nem fritar um ovo, quer dizer, não tinha importância, a mãe só ouvia uns sons de alfinete agudos e sem sentido já tinha bem uns dois anos. O pai mastigava o café com pressa e desgosto, acertaria os arreios do cavalo e dali a pouco sumiria naquele matagal pra se encontrar com seu Marconi no centro da cidade.

Todo mundo conhecia seu Marconi. Do chefe de polícia ao padre, todos os boiadeiros e as velhas que iam comprar peixe no domingo de manhã. Foi dia desses que o pai teve uma prosa com ele no bar da estância, coisa rápida, mas os dois tinham ficado muito amigos desde então. Seu Marconi era um homem que sabia das coisas, e falava que gostava do pai porque achava que ele sabia também. A mãe gostava dele não. Era como se ele estivesse sempre procurando no olho das pessoas o que havia no osso das palavras, e ele achava, e quando achava ostentava seu sucesso na curva perene e estranha do seu sorriso. Nesse dia, o pai foi ter com ele a respeito daquele assunto. Quando chegou lá, seu Marconi estava ocupado, mas logo abriu espaço em sua agenda pra recebê-lo.

- Você tem certeza que não vai dar problema não, né? Porque sabe como é, aqui todo mundo gosta muito de falar... não que eu me importe com isso, mas ano que vem tem aquela história da eleição...
- Que isso, seu Marconi. A gente já falou sobre isso. Eu e a mulher já falamo com ela também. Tá tudo certo.
- E aquele detalhe que a gente tinha falado? Você tem certeza que... nunca?
- Nunca. Ela quase nem sai de casa. É a minha palavra, seu Marconi.
- Excelente. Fique tranquilo que sou de bom trato. Olha, eu tô acreditando em você, homem. Tenho certeza de que vai todo mundo sair ganhando!

Nessa hora o pai cancelou o que seria o esboço forçoso dum sorriso, como se tivesse engolido alguma coisa que era grossa demais pra passar pelo tubo do esôfago. Encolheu os ombros, olhou para seu Marconi que o olhava de volta, com uma espécie de confiança que só é partilhada quando dois homens chegam a um acordo, porque as bolas chegam a inchar de tanto vigor quando dois homens apertam as mãos depois de selada coisa assim. É assim que os dois haviam aprendido a virar homens.

Pouco antes de anoitecer o pai chegava em cima do cavalo cansado da viagem, e ao seu lado, Barbela vinha de cabeça baixa, com toda a placidez de quem não sente a vida passar. A mãe o viu da janela enquanto cortava cebolas pra janta. Quando se deu conta de Barbela, apertou os olhos e as lágrimas compulsórias da cebola foram se misturando às lágrimas outras que não queria chorar. Mas ou era aquilo ou eles morreriam de fome. Não seria a primeira vez que via acontecer, nem seria a última, mas não é todo mundo que sabe dançar conforme o mundo gira seu antigo disco. Ele chegou, molhou as mãos no tanque do lado de fora e sentou à mesa, perguntando pela menina. A mãe largou as cebolas na pequena pia, e saiu da casa. O pai não foi atrás.

O pai fumava um cachimbo na rede nos fundos da casa quando se ouviram duas sequências de palmas na frente da casa. Na mesma hora ele identificou as sequências, e veio a confirmação com a prata lisa do carro de seu Marconi brilhando na noite entre os dois moços que o acompanhavam sobre cavalos, um de cada lado. Ele chamou pela mãe, que fazia tranças na menina dentro do quarto enquanto contava que esse ano ela daria um jeito de fazer uma festa melhor que a do ano passado pelos seus treze anos dali a um mês. Perguntou se ela estaria animada com a ideia, ela assentiu com a cabeça que sim, perguntou se poderia chamar as amigas da escola, ao que a mãe limitou o número de amigas, mas isso também não tinha importância, porque a menina não tinha muitas amigas mesmo. Os dedos da voz do pai foram entrando no quarto antes dele, prensando o coração da mãe até que ele abriu a porta.

- Tá tudo pronto.

Era uma noite tão escura naquele dia que o pai poderia ter entregue a seu Marconi qualquer menina que não faria diferença. Mas foi a sua própria, porque o pai era um homem de palavra que acreditava na palavra de seu Marconi. Barbela já estava lá, não estava? A menina voltaria na manhã seguinte. O pai a conduziu ao carro prateado, e aberta a porta, seu Marconi havia virado um tio que a menina nunca conhecera. Comporte-se, e a porta se fechou num som metálico, e a luz dos faróis se afastando daquela casa velha e pequena ia apagando os contornos do pai na escuridão.

A menina apareceu no quintal de casa surgida na nuvem fria do dia, de modo bem menos cerimonioso que da noite anterior. Apesar do frio, não entrou em casa, mas ficou acocorada observando Barbela a uma distância muito curta. Barbela ruminava o silêncio da geada no quintal, e seu corpo projetava na grama rala um vulto pouco familiar, como se fosse esse mamífero em toda a sua extensão física um mau agouro. Até mugir mugia estranho. Mas todo mundo iria se acostumar com ela, cedo ou tarde, que ninguém em sã consciência se volta assim, hipócrita, à própria providência. Os flocos finos da geada iam coroando a cabeça de Barbela com minúsculos cristais de gelo, que caiam devagarinho.

quinta-feira, 16 de junho de 2016

17:28

São nos quandos e
na trepidação dos dias
que eu te vejo

você nunca está parado,
e nem existe na estabilidade mas
não foi por acaso que eu imprimi
eqüina
a força do meu peso sobre o cigarro
que descartei dois minutos depois de aceso

O cigarro tinha a cor do céu
que eu podia pisar, e pisaria até com você
mas você estava preso num escritório
a duas quadras da praia e nem verão era

você não teria nem essa desculpa para cogitar
se eu estaria jogando altinha na areia
se eu estaria tomando banho
ou uma caipirinha ou
tocando cavaquinho por alguns centavos

Mas ainda me interessam os quandos e
não por acaso hoje olhei pro céu
e não sei o que me deu mas
a hora ficou suspensa (acho que se perdeu)
porque tanto às 17:28 quanto às 5:28 o céu fica exatamente igual
e o único intervalo possível é sempre
o quando (eu já tinha te dito antes)
o único momento em que eu te vejo
é na trepidação dos dias

Em algum momento
os espaços revolucionam os cursos
em silêncio
mas disso nem eu sabia
até as 17:28 desse dia.

terça-feira, 31 de maio de 2016

domingo, 29 de maio de 2016

domingo, 29 de maio

um dia abri a gaveta procurando um grampeador e lá estava um dos meus sonhos. de pronto não o encarei: senti que estava lá quando o toquei com a mão acidental tateando a extensão da gaveta. era uma gaveta comprida. pela textura, senti que era sonho. afastei a mão como se tivesse percebido uma tarântula.

quis lavar as mãos. no banheiro, olhei a pia desenhada com restos de pasta de dente e cinza de cigarro, a água corrente misturando tudo numa paleta de cor amarela, cheiro de enxofre e sabonete. quando abri o armário, outro sonho, mas esse eu já sabia que estava lá, e eu o ignorava por conveniência, preguiça. ainda pensava no sonho da gaveta. aquele havia me perturbado um pouco, mas nada que um pouco de protex não resolvesse.

tem um monte de livros do meu quarto que ainda não li. sem motivo nenhum, puxei da estante um que já tinha lido algumas vezes, e na página 48 achei mais um sonho. lembro que foi a página 48 que me deu o sonho em sua forma bruta, e fiz uma jura de que iria colocar esforços em seguir aquilo. acho que não fiz, porque sempre tive muita curiosidade. esse sonho tinha algo a ver com aprender a lidar com curiosidades desnecessárias. nem toda curiosidade é necessária. algumas páginas depois (lá pela página 130) o autor do livro se contradizia, e me jogaria na cara a inconsistência de um sonho tão bobo.

tinha outros sonhos. nos armários. eram até interessantes, mas depois de um tempo comecei a achar ridículos. eu nunca entendi direito quando dizem que sonhos não envelhecem. os meus envelheceram até as aranhas andarem sobre eles, e depois morreram de estresse espacial porque nada sobrevive saudável dentro de um armário. isso pode até parecer duma angústia infinita, mas tá só no recorte. é só ali que existe. no curso das coisas não tem drama: é acordar cedo, tomar um café mais ou menos, pegar o ônibus, trabalhar. e não há nada de errado nisso.

você sempre me dizia que no meio da madrugada, quando nada bom o bastante fosse capaz de interromper a beleza do silêncio, era possível ouvir a terra girar. não era bem ouvir, era sentir; aquele movimento imenso, aquela pressão infinita, todo esse orbe mostrando o quanto está vivo. mas só se a gente fosse muito maluco ou hippie, eu dizia. você fazia um movimento engraçado com a boca, meio tirando onda, meio decepcionada. eu sabia que nunca seríamos nem parecidos, e você insistia que sentia sua cama tremer levemente quando era criança, e era a terra girando. não sei porquê, mas muitos anos depois, com as palmas das mãos sob a nuca, me peguei tentando o exercício. até hoje sonho em sentir a terra girando.

sábado, 7 de maio de 2016

Sal bruto

Duas horas.

Estalou uma palmada no meio do eco seco, e o ruído galopando o ar sem resistência contava a quentura da superfície da palma. Nojo, o olho purgando a cólera, a cabeça roxa explodindo na boca. O som desorganizado avoluma, uma, três, cinco pessoas. Estala outra palmada e se segue um som plástico, que estoura os ouvidos mesmo depois de morto. Pernas assustadas. EU JÁ FALEI QUE QUERO VOCÊ LONGE DAS MINHAS FILHAS, vozes simultâneas turvam o pretexto, eu não vou nem te dar confiança, SAI, AI, A VIDA É MINHA, ESSA PORRA É MINHA.

Era arrombamento de muito. Mas como o muito era tanto, não era assim tão incomum. Três calcinhas cuspindo o sangue virgem da menstruação, cada qual chorando de susto, três à esquerda e as outras três, ainda meninas, ainda imberbes, ainda impolutas. O sangue pintando o rosto da mãe por dentro. VOCÊ NÃO FICA RINDO DE PIRANHAGEM PRA MIM NÃO QUE EU VOU TE QUEBRAR TODINHA. O estrogênio pingando das mãos que vacilavam ou entre os cabelos, ou repetindo desritmadas coreografias sinistras

Quites. Mesmo tamanho. No mel ácido da língua, espinhos, e como se por algum azar se detivessem mais tempo suspensos por gravidade mais complacente, uns tecidos vagabundos, pequenos e leves voando com destino ao asfalto, depois irrompe uma mochila imprestável e uma pequena mala que, sem fazer muitas viagens, deteriorou-se ao paladar do mofo escondido no armário úmido. ENTÃO NÃO VOLTA. EU NÃO QUERO MAIS ELA AQUI, NEM VOCÊ. NEM VOCÊ. Um pedaço de vidro se parte em incontáveis estilhaços, e revela os incontáveis diamantes baratos libertados da sua antiga composição. O brilho dos pedaços convida a menina menor a uma brincadeira perigosa.

FODA-SE, EU NÃO QUERO SABER, ELE NÃO BOTA NADA AQUI DENTRO, e afasta com as mãos nervosas os cabelos muito longos do couro lavado na fúria, sem perceber que a menina menor caminha no epicentro das vozes, a derruba. A menina menor chora, TA FAZENDO O QUE AQUI CARALHO, TIRA ESSA GAROTA DAQUI e da rua ACREDITA MESMO NESSA MAGRICELA PIRANHA e o ar espalha seu cheiro que trota duro antes do seu corpo o corredor estreito que dá pra rua: É DE QUEM? É DE QUEM? REPETE, FILHA DA PUTA!

Mentindo recato, a discrição alegórica evidenciada no rosto sulcado pela grossura das lágrimas, a mais velha recolhe, na rua, a tessitura do destempero; ainda não tem ódio no peito, mas se esforça. O barulho acorda os cachorros do vizinho, que sensíveis à perturbação sentimental humana, irrompem em latidos estridentes, mesmo depois da rua já deserta e muda, mesmo depois dos filetes das cortinas já cerrados, até as três e dez.

terça-feira, 19 de abril de 2016

Into the void

Infiel.

Alcunha mais precisa não haveria diante do quente sono interno, inadvertido e involuntário que sequestrou o mundo conhecido, porque sendo a cabeça misteriosa, eu não sei tudo o que tem dentro dela. Da minha, eu digo. Antes do sono, a cabeça, a minha cabeça, escondeu de mim meu nome e o dia em que nasci e outros demais algarismos socialmente importantes. Como pode a gente não conhecer a própria cabeça, e a cabeça se insurgir assim; como pode uma cabeça - a nossa - conspirar segredos sinápticos contra nós?

Então houve agulhas procurando as veias difíceis e agulhas também nos olhos enormes da mãe que, apagadas senhas legitimatórias, não mais reconhecia aquela criatura esvaziada de olhos moles contra as luzes defronte a insolúveis testes elementares. Escreva seu nome. Quantos anos você tem? Desenhe um relógio. Repita comigo.

Tudo trancado por dentro.

Filetes discretos de sangue rosado correndo nos pequenos tubos de plástico nas dobras dementes dos braços. Você vai ficar bem, mas de alguma maneira estranha eu ainda não me sentia mal, porque para esse tipo de experimentação é preciso uma consciência, e eu não tinha idéia de para onde a minha havia debandado. Era possível ver o mal, um mal que estilhaça o coração dentro dos olhos, entremeado da candura desesperada que só conhecem aqueles que se sentem próximos de soltar para sempre a mão de quem amam. Mas o sono de dentro alienava o corpo, falente da própria condição, e dentro da boca débil das letras mal mastigadas, dentro do vácuo da inconsciência, sempre existe uma vontade amarrada que ainda respira forte e se debate com violência para acordar o corpo e fazê-lo sentir qualquer coisa. São os peixes que dormem de olhos abertos.

O vazio tem cor de marfim, música de John Cage e muitas portas que se abrem de maneiras diferentes e muitas câmaras e espaços que doem de maneiras diferentes brincando, como crianças mal-intencionadas, de fazer o corpo de intermédio de maravilhas modernas de variados tamanhos e formatos. O tempo é todo feito de durantes e pontas de narizes e hálitos únicos. Interessante a dinâmica do corpo sob a pressão dos durantes até que o sono destranque da boca o silêncio da cognição e desamarre também os invisíveis cadarços das mãos, dos pés, e a sensibilidade pela vida volta a se fazer sentir pelas mesmas ondas elétricas que antes eram o prenúncio do sono. Todo corpo acorda num pulso, porque um pulso implica um corpo. Do primeiro ao último, o corpo é pulso. A história volta a existir, quebrada por uma lacuna sem reparo, mas volta a existir.

Eu não sei tudo o que tem dentro da minha cabeça, porque a minha cabeça é misteriosa. Hoje, ela bate todos os dias, se pensando coração, de saudades do vazio.



segunda-feira, 11 de abril de 2016

domingo, 10 de abril de 2016

Em cada condomínio

Em cada condomínio
por certo há um manicômio

todo dominado

no olhar concreto
de gente sã, sã, sã

sexta-feira, 1 de abril de 2016

Metáfora do posto de gasolina

Constava no letreiro do posto de gasolina

"Não trabalhamos com fila única, escolha sua fila."

Não tendo lido o "não"
Por descuido ou por lirismo

Achei uma boa metáfora para o liberalismo.

Encantamento

pendurava teus olhares no varal
pra ficar infinitamente olhando pra eles
me olhando

-- mesmo quando tu me baixavas os cílios
bastavam os cílios


destino,
empecilhos


Para Diogo

sexta-feira, 25 de março de 2016

que mundo de merda esse
que merda de mundo essa

a gente aprende poupar o que sente
com medo que o sentimento do outro

acabe assim tão depressa.

domingo, 13 de março de 2016

A busca

O sol já dá os primeiros sinais de esgotamento. Não aquele, que virá daqui a muitos, muitos anos, quando se acabarem todas as reencarnações de todas as pessoas possíveis, mas os primeiros sinais de esgotamento desse dia exaustivo. O sol se cansa cedo diante de tanto gelo. Que tolice de se dizer. Mas, branco e frio extremos por toda a volta, ainda que seja tolice de se dizer, é fácil assim pensar.

Me disseram que ela simplesmente desapareceu. Ninguém a viu. Nem primeira ou ultimamente. Desapareceu, como quem é levada por conspiração séria. Teria sido sequestrada? Não. Desapareceu, apenas. Não fez telefonema, não contou a ninguém onde ia, nem se voltava: só se foi. Fico me perguntando como as pessoas alcançam esse nível de desprendimento.

Quatro da tarde. A seriedade dos fiordes quebra a espinha. O frio ensina a austeridade. Talvez eles saibam onde ela teria ido, porque só com olhos muito altos se veêm os corações das pessoas. Se bem que ela é uma mulher. Isso é um complicador. Coração de mulher é feito diamante. Ilude, pelo brilho intenso projetado, mas luz alguma lhe atravessa.

São divididos em cinco os grupos de busca, já beiram as cinco e dez. A visibilidade comprometida pode representar o risco de encontrá-la já sem vida -- ninguém sobrevive á noite aqui no inverno, alguém ouviu um dos guias dizer. Situação inacreditável. É claro que a maior parte da culpa é por conta da gana das companhias de viagem, que não ficham direito as pessoas durante os passeios. Grupos imensos, a possibilidade de faturar dinheiro extra. Não é preciso ser nenhum gênio para efetuar a matemática que tende ao lucro. Pessoas desaparecem em trilhas todos os anos não à toa. E quem responde pelas ausências?

Chegam mais guias para orientar os grupos na busca, e também são chamados grupos de busca especializados. Os olhos dos huskies oferecem um brilho fosco e perdido que se assenta com o cair da noite. Penso nos olhos dela que não vi. Cuja cor desconhece o mundo. Imagino-a andando pelas geleiras. Na boca do vulcão morto. Sozinha. As mãos abertas capturando o frio de tantas sucessivas eras que a Terra foi capaz de produzir, como se fosse possível tocar o Isolamento. Penso nela. Penso nela e minhas mãos doem. Penso nela virando uma escultura de gelo conforme se defronta com o último reflexo de si mesma nos seus vitrais internos, que podem guardar um filho morto, uma carreira abandonada, uma casa incendiada. Tantas coisas eu penso quando penso nela, e por pensar nessas coisas eu penso que posso conhecê-la melhor. Mas nada dela, em nenhuma parte.

Já não há mais luz alguma.

As buscas se intensificam por toda a parte, e sem sucesso. Os helicópteros leem a negritude gelada da terra que mantém em segredo a silhueta da mulher perdida. Mas não é possível, como ela estava vestida quando foi vista pela ultima vez? Qual era a cor do seu cabelo, qual era a sua cor? Mas ela vestia um casaco azul e preto, surgiu uma voz, esforçosa da lembrança. Se essa mulher aparecer morta a companhia será responsabilizada. Tragam-na viva, e bem! Isso é loucura, vocês deixaram a mulher pra trás. Isso não existe. Se ela estiver viva, será um milagre. Nunca mais eu viajo por essa companhia. Vocês conseguiram acabar com a viagem dos meus sonhos. Vamos rezar para que ela volte em segurança.

Mas foi no amálgama do caos que alguma coisa aconteceu.

Quebra-cabeça cronológico-factual.

No vai e volta da mente, os fractais impossíveis da coincidência impossível.

Esse era o casaco que a mulher usava?

Sim, era esse o casaco que a mulher usava! Onde você o encontrou?

Esse casaco é meu.

Houve silêncio. E houve olhares catatônicos. Por um minuto, ninguém pôde dizer uma palavra. O silêncio foi quebrado, então, pelo ruído chuviscado do rádio de um dos guias. Suspendam as buscas e venham pra cá. Vocês não vão acreditar.

quarta-feira, 24 de fevereiro de 2016

No umbigo do céu

sem querer te vi
ali
há milhões de anos
morta

dançando no umbigo do céu

porque leito de astro é luz

como se nos teus pequenos círculos
pequenininhos, paradinhos,
você pudesse contar novas verdades

qualquer verdade
torta

devolver algum sentido
nem tudo está perdido

tudo é alguma coisa grande demais

dançando
há milhões de anos
sem querer

eu te vi ali quieta
no umbigo do céu

quieta, que a quietude é o que melhor conhece
por si só grande lição a ensinar
(barulho demais é cruz)

eu te sorri umas flores pretas. acho que entendi.

leito de astro é luz.

segunda-feira, 22 de fevereiro de 2016

Poema muito triste tirado de uma matéria de jornal - Lembrem de Bautzen

Um grande grupo de moradores
de Bautzen
protagonizou, na madrugada de domingo
um vergonhoso espetáculo
que desanimou o país
envergonhou
as autoridades da Saxônia
e que voltou a mostrar
que um setor da Alemanha
esconde um
r e s s e n t i m e n t o
visceral e perigoso
contra a chegada de refugiados
ao país

Às três da madrugada
(horário local)
começou um incêndio em um
velho hotel
habitado para acolher
trezentos refugiados

mas os bombeiros tiveram dificuldades
para apagar as chamas
por causa de um grupo
que comemorava o ocorrido
com
gritos
xenofóbicos
e

aplausos.

Profundas águas claras

Deus vê todas as coisas.

Foi assim que Joaquim se converteu, no dia 11 de julho de 2009, na Igreja do Sangue Sagrado de Jesus. O mundo ficou pra trás. O sofrimento ficou pra trás. Toda uma vida de pecado e dor, para trás. E tudo estava melhor agora.

Tinha arrumado emprego, carteira assinada e tudo, a prosperidade vingando. Mesmo o tumor no cérebro da irmã havia desaparecido. Milagre, Satanás não pode com Jesus. Ainda trabalhava muito na construção, às vezes dobrando, às vezes com fome, mas tudo estava melhor agora.

No dia 20 de agosto de 2013 ele soube, feliz, que Pedro iria se converter também. Não podia conter no próprio peito tamanha felicidade pelo amigo, que se batizaria nas águas no sábado seguinte. Com antecedência e prontidão, Joaquim se ofereceu na condução do amigo nos ritos de batismo.

Senhor, receba agora este filho que vai ao teu encontro. A congregação, na beira da praia, saúda e aplaude. Senhor, receba agora este filho que vai ao teu encontro. Pedro se debate. Você me roubou a Camila. Senhor, receba agora este filho que vai ao teu encontro. O rosto de Pedro corando, roxo. Eu ia me casar com ela. Pedro segura o braço de Joaquim, sem coordenação. Senhor, receba agora este filho que vai ao teu encontro. A mão de Joaquim tem o tamanho exato do rosto de Pedro.

Deus vê todas as coisas.

sexta-feira, 19 de fevereiro de 2016

terça-feira, 16 de fevereiro de 2016

Leite de leoa

Arco-íris furando os pequenos corpos d'água suicidas que no chão fumam o calor da terra. Antes de menstruar eu gostava de deitar o ouvido na terra ensopada das chuvas quentes do fim de fevereiro, e a terra fazia barulhos que eu gostava de ouvir. Era som de minhoca, de menino soltando pipa, borboleta presa em cuia de vidro, Miguel, que não chegou aos cinco anos. Minha mãe me suspendia pelo braço, a metade do rosto coberta de relva, uma hora vai entrar um bicho nesse teu ouvido. Mas eu gostava mesmo de todos os bichos. Não me lembro, mas talvez eu quisesse ter uma cabeça cheia de insetos dentro, voando, voando.

Invasivo o cheiro do patchouli vindo do quarto da Joana. Ela tá lá com um cara desde ontem. Penso na Mirna e o rosto esquenta. Ela não tá errada e é horrível saber disso. Por quanto tempo mais vamos viver assim, afinal? Eu bem queria dizer que vai ser diferente. Mas é covarde garantir o que não se sabe.

Da caixinha de fitas roxas a primeira foto que salta é a de Miguel. Ninguém teve tempo de conhecê-lo e todo mundo sofreu demais. Depois, mamãe se mudou com a gente pra Buenos Aires, e lá a gente viveu até feliz pouco antes do meu aniversário de nove anos. Foi justamente nele que pensei hoje de manhã. Todo mundo junto na casa de veraneio, dias mais azuis. As fotos não mentem: o calor do contato, bolo de aniversário com as letras do meu nome, uma de cada cor, buracos nos sorrisos dos meus primos. Tio Hadda no cantinho, sua última foto com a gente. Em cada foto, um filete de sangue. E é dentro desse filete que eu me encontrei nadando impossivelmente nesta manhã.

Talvez não tenha sido culpa dos excessos. Dos encontros cegos, da sensação do manuseio - eu realmente não consigo me lembrar de nada que aconteceu nos últimos quatro dias, mas por pior que eu me sinta com relação a isso, talvez não seja aqui que se deva atribuir culpa. Talvez seja o olhar de Mirna na rede, Mirna sorrindo os olhos falsamente calmos. O rosto esquenta. Na pele ainda resiste o brilho das lembranças vagas.

Mas foi de Petrópolis que veio o golpe maior. É improvável que, antes, coisa alguma tenha me quebrado mais e melhor. Chega a dar pena, Nita, a pitangueira tá linda, as pitangas todas estão desprendendo do pé e não tem ninguém pra colher. Não tem ninguém pra colher. Não tem ninguém pra colher. Não sei quantas vezes eu me repeti a mesma frase, repeti mesmo, pra doer. Quando ficamos todos tão relapsos com nossos próprios jardins? De que servem as abundâncias que não tocam ninguém? Quem negligencia as abundâncias merece os espinhos, se assim crescerem. Espinhos também podem crescer mesmo diante de súplicas por abundância, e a insistência adiciona raiva ao seu crescimento. Única coisa certa, os espinhos. As pitangas sangrando a terra úmida que eu gostava de deitar o ouvido; talvez, bem melhor que nós, seja de fato a terra quem mereça beber as pitangas. Ainda assim. Ainda dói. Nove anos, os primos desdentados, a branditude duma vida inteira no sabor leve dos verões dos janeiros quando ainda não se falava em aquecimento global, Miguel, dançando ainda, anjo sem jeito, nas lágrimas de mamãe soprando minhas velinhas coloridas. Nove meses, Miguel poderia nascer outra vez, mas a amargura secou as flores dela, então eu virei filha única. Nove meses sem ver minha mãe. O rosto queima em temperaturas impossíveis, comprime e conflagra o peito. Gritar. Gritar. Gritar.

O telefone vibra e é Mirna. Não estou. Ela também não. Talvez outra hora, talvez outra vida.

A ausência tem uma filha que se chama saudade. Mas passa o gato serpenteando o rabo na perna direita. Mamãe costuma contar pras amigas que mamei até os quatro anos de idade.

Tudo vai passar.


Para J.

sexta-feira, 29 de janeiro de 2016

Herói

Infinitos símbolos de infinito. Pai e Mãe. Pai e Mãe. Pai e Mãe. Alianças de ouro grossas, finas, gastas; magros os dedos, grossos, peludos. Regina, Vania, Adalberto, Marquinho, Rosilene, Eu Amo Meus Filhos, Amor de Mãe. Do canto da testa ao queixo foge uma gota de suor do cara gordo que tomou um café da manhã ruim. Pronto. É o Adílson? Ele. Você tem uma antena pra reparar no seguinte endereço, às doze e trinta.

Difícil a passagem pela rua estreita pro carro. Ficou na rua anterior. Difícil de achar a casa também, todas parecidas. Campainha não tem, bairro humilde. Procura aí cara, vai que tem e tá escondida. Não porra, não tem. Dona Fernanda? Dona Fernanda? Aplaude a casa. Aplaude mais. Porra, odeio isso. Quem é? Oi, senhora, aqui é da SATELIGHT, Fernanda não chegou do trabalho ainda, quer deixar recado, fala que a SATELIGHT teve aí, brigado, vai com deus meu filho, brigado você.

Porra, perdi meu tempo vindo aqui. Teve mais alguma ligação aí? Não, telefone não tocou não. Ih, peraí, tá tocando. Ih, parceiro, depois a gente fala, tô meio enrolado aqui. Abre o porta-luvas, retira papéis. Vê aí qual é o próximo pedido. Ih mané, é lá em Jardim América. Porra, lonjão. Fica aonde Jardim América?

Trinta minutos dali, mas um carro varou uma moto no meio. Puta que pariu, que que tá rolando? Manuela e Fabiana talvez fizessem 18 anos em 2026. Agora, só ficarão os retratinhos na carteira do desesperado que gritava no meio-fio. Liga pra central e fala que o serviço vai atrasar. AS MINHAS MENINAS NÃO, AS MINHAS MENINAS NÃO, e a voz do homem ia sumindo conforme o carro ia transpondo o engarrafamento. Na cabeça, Adílson lembrou de um dia na favela, há um bom tempo atrás. Pisa no acelerador.

O lugar é esse aqui mermo, Dilso? Tá aí no pedido ué, deve ser. A casa é aquela dali. Interfone novinho. Quem é? SATELIGHT, senhora. Peraí um minuto que já vai descer, e segundos depois as pernas grossas da morena se revelam na escada aos olhos de Adílson antes de seu rosto, que é bonito também. Boa tarde, vamos subindo. Água? Não, brigado. Tudo bem? Tudo. Tô sem imagem desde ontem, a antena fica lá em cima, vou mostrar, ela sobe na frente, o short muito curto escapando o tecido da bunda imensa, Adílson ajeita a calça, quanto tempo não via uma mulher dessas na sua frente, Jardim América, quem diria, moço? sim, senhora, a antena. Não quer mesmo uma água? Aceito, sim. Do tempo que ela levou para descer e subir as escadas ele já havia feito o serviço. Agora a senhora testa lá pra ver se tá recebendo o sinal, um minuto e meio, mais um minuto e meio, tá sim, ah, que ótimo, bicho burro, poderia ter esticado o serviço um pouquinho mais. Tchau, senhora, qualquer coisa é só ligar que eu volto. Mentira, se ela ligasse, não seria ele quem voltaria, mas qualquer outro filho da puta mais sortudo, que às vezes a sorte escolhe os mais otários, e se despediu das suas panturrilhas ascendentes com o olhar.

MERMÃO, que mulher gostosa, tomar no cu, aquela dali eu como rezando, cala a boca, já entendi. Adílson era um cara muito sério mesmo. E agora, é pra onde? Pega aí a lista dos pedidos. Tá aqui ó, Andaraí. Que inferno, a água dela deu mais sede.

Um calor insuportável, o sol drenando as forças do corpo. Aquele uniforme quente e ridículo dos desenhos da SATELIGHT. Adílson não entendia o porquê do símbolo de uma galáxia no seu bolso, se a empresa mal dava conta das vizinhanças. Sentiu raiva do trabalho. Sentiu vontade de mandar o cliente tomar no cu. Boa tarde, senhor. Boa tarde. Tô sem recepção alguma de sinal. Já liguei diversas vezes pra SATELIGHT mas vocês não fazem nada. Espero que resolvam o problema e rápido, senão vou processar vocês. Sou advogado.

A casa do advogado é muito grande. Adílson é guiado pelo dono até a antena, mas o outro lhe puxa pelo braço. Você ouviu isso? Isso o que? Puxa sua manga e fala em voz baixa: isso. Adílson pensa ter ouvido sim, mas não dá resposta. Adílson, vamo embora, tem alguma coisa errada nessa casa. Você falou alguma coisa? Não, não senhor, só preciso saber onde tá a antena. É só subir essa escada.

É sério, Adílson, tem alguma coisa errada nessa casa. Você não ouviu uma menina chorando? Você tá é maluco, para de falar merda, não cara, não tô falando merda, se você é surdo problema é seu. Que papo é esse agora? Eu ouvi uma menina chorando. E daí se tiver chorando? E daí, que que tu vai fazer? Monitora a antena com um controle remoto, acerta os canais. Sei lá, cara, tem alguma coisa muito esquisita aqui. O SENHOR PODE IR TESTANDO A TELEVISÃO AÍ EMBAIXO, TÁ OK, VOU TESTAR. Um minuto. Dois minutos. Oito. SENHOR?

Não há resposta, Adílson desce as escadas. Vamo embora daqui, Adílson, na moral. Estuda a casa com os passos, desconfiado, onde está o advogado? Quando encontra a sala, encontra também o cadáver do advogado. MEU DEUS, SENHOR? SENHOR? Adilson pressiona as mãos contra o peito do advogado, reanimá-lo, senhor, não faz isso não. O que que aconteceu com ele? Morreu sozinho? Sei lá! Tá frio, não respira. Puta que pariu! Adílson... que foi? Eu ainda tô ouvindo a menina chorando. Para de falar merda, cara. Não, é sério. Tem uma menina chorando dentro dessa casa.

O homem frio não respira. Adílson pensa mesmo ouvir um som abafado pelo corredor. Morreu mesmo, o advogado? Tem mais alguém aqui? Realmente tem algo estranho na casa. Um quarto com a porta aberta, e o finado é um porco. Terno, gravata, e rabo. Adílson passa as imagens do computador, limpa as mãos na calça. EU FALEI que tinha alguma coisa fedendo a merda aqui. O som de choro insiste pela casa, mais alto.

A garota ainda tem as marcas das amarras no corpo todo. Adílson olha pra ela com pena, não teve muito tempo de pensar no que fazer quando a encontrou, nua e machucada. Ela ainda não disse nada. Espera que ele tenha morrido mesmo. O outro o deixou em paz, porque no carro só havia mesmo espaço pra dois. Pelo menos para alguma coisa nessa vida serviu. Mãos na cabeça, cotovelos no volante. E agora? Olhou mais uma vez pra ela, tão pequena dentro de uma camiseta do velho imundo. Tremendo, assustada, tadinha da menina. Aquilo era hora de criança estar saindo da escola.

quinta-feira, 28 de janeiro de 2016

Gosto de cereja - a poesia terrosa de Kiarostami, ou a estrada é infinita

Contém spoilers.

A primeira vez que ouvi falar em Gosto de Cereja foi numa aula de análise do discurso. Na ocasião, o filme surgiu como exemplo de poder semiótico através da ressemantização do percurso, mas em 2009 nada disso fez muito sentido. O nome do filme, no entanto, ficou gravado.

 Sete anos depois da referência, e quase vinte depois do seu lançamento, após procurá-lo web afora exaustivamente, por acaso o encontrei num desses sites de benfeitores anônimos que compilam títulos difíceis já legendados e em boa qualidade.

Daí vi Gosto de Cereja.



 Gosto de Cereja é um filme difícil de caber em qualquer definição, menos pela questão da sinopse que pela questão de sentido.

 A história parte de uma perspectiva relativamente simples: um homem de meia-idade quer se suicidar, mas para garantir o sucesso da empreitada, recorre à ajuda de um desconhecido confiável para finalizar o processo e, para isso, oferece uma boa soma. O que se desenrola daí é uma costura de situações que podem até ter um início cômico, mas cujo fim (?) é, certamente, singular.

 Uma das palavras que orientam esse belo road movie é perspectiva; bem antes, até, de que esta palavra surja no texto do filme. Perspectiva, quando se pensa no próprio intento de Badii, o protagonista. Perspectiva, quando há o embate - dito ou não - entre esse intento e o que pensam os homens que cruzam seu caminho. A perspectiva ainda se dá no visual, com as bem-executadas e sensíveis sequências de montagem na estrada, de onde se observa a pequenez do automóvel em relação ao plano vasto, aberto, infinito: o automóvel de Badii é Badii. A outra palavra é insistência.

 A estrada em Gosto de Cereja merece atenção especial - e é aqui que, hoje, aquele papo de poder semiótico faz sentido.

 Fica bastante claro que a insistência nela a transmuta em algo muito maior que ela mesma. Ela não é só o palco da ação: ela é a ação; não é só onde se desenrola a narrativa, ela é a narrativa. A pluralidade de elementos encontráveis nela é o que, em alguma medida, ensaiam uma traição ao objetivo de Badii. Ainda, a circularidade do percurso é o que também constrói sua infinitude, e quanto a isso, em Gosto de Cereja, o espectador pode experimentar a sensação de estar diante da mesma imagem repetidas vezes. Esse exercício de repetição pode mesmo ser lido como metáfora do absurdo da própria vida: por caminhos, pessoas e situações pelas quais passamos recorrentemente, mas sempre de alguma maneira, ainda que mínima, diferente.

 A montagem do filme explora a riqueza de sua capacidade multissemiótica. A posição da câmera dentro do carro é, por vezes, uma pista: eu e você também estamos no filme, e somos aqueles a quem Badii pede ajuda. Badii nos convida a sermos cúmplices do seu ato final.

 Existe um poema da polonesa Wislawa Szymborska intitulado Agradecimento, no qual ela explica o amor pela sua negação. Pois Gosto de Cereja faz algo parecido: ao insistir na morte como tema central, Kiarostami revela a beleza da vida. Mesmo o quê de incerteza que Badii salienta pode levar a crer nisso - reza a cultura popular que quem está cego na intenção do suicício, se oculta, e há relativa verdade nisso. Entretanto, ele recebe diferentes lições dos desconhecidos com os quais topa, sendo a última de uma beleza que exaspera: elegia ao poeta persa Sohrab Sepehri, com o qual o próprio Kiarostami teve contato em vida.

 Nos relevos infinitos, vicissitudes. Nas cores do horizonte, o Irã, metonímico. Nas portas, o céu. Nada em Gosto de Cereja é gratuito. Os planos-sequência, o texto, a escolha de localidade; tudo fecha num arco final que é tacada de mestre: Kiarostami nos informa, de maneira muito sóbria e seca, que nada daquilo é real. Já dizia o professor e crítico brasileiro Jean-Claude Bernardet, em O que é cinema: "Também nos dizem que o cinema reproduz o movimento da vida. Mas sabemos que não há movimento na imagem cinematográfica. O movimento cinematográfico é ilusão, é um brinquedo ótico. A imagem que vemos na tela é sempre imóvel." Porém, entretidos pelo enredo, nos frequentemente nos esquecemos desse fato, e é aí que Kiarostami nos acorda do sonho, com um balde de água bem gelado; ao mesmo tempo respondendo, de maneira direta, ao mesmo tempo, deixando muitas lacunas. Perspectiva, dessa vez, dos espectadores.

 Cinema corajoso, forte e, dentro de uma base constante, cheio de inconstâncias: assim é Gosto de Cereja.

 Por via das dúvidas, é melhor experimentar.

domingo, 24 de janeiro de 2016

quarta-feira, 20 de janeiro de 2016

É o que é

As cinzas do mundo no canyon de prata
enquanto ora aos párias e às putas
mais a história que pulsa
que a história que passa

Ao capricho lunar,
bom animal
ora se encolhe, itabirana
ora se levanta, marciana.

o corpo todo é boca
e também é monstro:
os braços de pérola,
as pernas de alcatrão

Seu altar é de acúmulo: rostos e espelhos
-- inevitável a vaidade enquanto virtude --
faz miséria do afeto pouco
não se demora em lugar pequeno

Vulva inteira em negação
Onde não cabe é na casa,
na cozinha, no chá de domingo, na sala de estar
na fazenda longa de remendos das roupas
do homem que não vai voltar

Tantas as terras pisadas por seus pés
mas, leves, fincaram raiz não
menos ainda renderam frutos:
bens maiores foram outros.

O elmo loiro em sua cabeça
conta, quase discreto
é a última guerreira
duma linhagem que finda nela,
que responsabilidade.

Guerreira só
conhece a lança, a flecha, a palavra
as muitas palavras vivas e mortas
porque os bens maiores foram outros:
o mundo sabe seu nome
ela abre todas as portas

Medo secreto das despedidas
O queixo altivo toma em lugar
De si sua própria gangue,
não dói o mesmo ferimento aberto por cinquenta anos:
As verdadeiras vikings não têm medo de sangue.


Para Elke Maravilha
obrigada por aquela tarde.

quinta-feira, 14 de janeiro de 2016

Autofágico

Imagina
que inusitado
se os cânceres
tivessem cânceres
e morressem
de si mesmos

Para Alan Rickman e David Bowie

Eles nunca vão me pegar, não

Copacabana sob névoa. Do meio da névoa, um grito. Pega ladrão. Do meio do grito, o fantasma de um menino negro, descalço, correndo em direção ao mar. Redenção. Os gritos insistem. O menino desaparece devagar, entre a névoa e o mar.

Que meus inimigos, tendo pés, não me alcancem.

Manipulação

Para cada verdade
há muitas mãos.

quinta-feira, 7 de janeiro de 2016

Intermitência de abstinência

Me fodia a noite inteira

E por 3 meses se abstinha

Como um soldado
Como um cigano
Procurando o que já tinha

Me fodia a noite inteira

E por 3 meses se abstinha

Como um marinheiro
Pago pelo mar
Pego pelo vento

Me fodia a noite inteira
A noite inteira

E por 3 meses se abstinha

As luas todas do meu útero
Mudando de tamanho e cor
Enquanto ele não vinha

Me fodia a noite inteira
A noite inteira

E por 3 meses se abstinha

E depois, um ano mais velha
O formato do corpo dele
memorizado nas entranhas
(Sozinho o corpo sabia)

Me fodia a noite inteira

E por 3 meses se abstinha

O quarto, aberto
Ao sabor incerto
A espera dormente do retorno
que não se anuncia

Me fodia a noite inteira

E por 3 meses se abstinha

Mas após muitos sóis depostos
Muitos sóis depostos
Reclamava sua carne dos pés à espinha

E me fodia a noite inteira
A noite inteira

e por 3 meses se abstinha.


Para Diogo.