quinta-feira, 28 de janeiro de 2016

Gosto de cereja - a poesia terrosa de Kiarostami, ou a estrada é infinita

Contém spoilers.

A primeira vez que ouvi falar em Gosto de Cereja foi numa aula de análise do discurso. Na ocasião, o filme surgiu como exemplo de poder semiótico através da ressemantização do percurso, mas em 2009 nada disso fez muito sentido. O nome do filme, no entanto, ficou gravado.

 Sete anos depois da referência, e quase vinte depois do seu lançamento, após procurá-lo web afora exaustivamente, por acaso o encontrei num desses sites de benfeitores anônimos que compilam títulos difíceis já legendados e em boa qualidade.

Daí vi Gosto de Cereja.



 Gosto de Cereja é um filme difícil de caber em qualquer definição, menos pela questão da sinopse que pela questão de sentido.

 A história parte de uma perspectiva relativamente simples: um homem de meia-idade quer se suicidar, mas para garantir o sucesso da empreitada, recorre à ajuda de um desconhecido confiável para finalizar o processo e, para isso, oferece uma boa soma. O que se desenrola daí é uma costura de situações que podem até ter um início cômico, mas cujo fim (?) é, certamente, singular.

 Uma das palavras que orientam esse belo road movie é perspectiva; bem antes, até, de que esta palavra surja no texto do filme. Perspectiva, quando se pensa no próprio intento de Badii, o protagonista. Perspectiva, quando há o embate - dito ou não - entre esse intento e o que pensam os homens que cruzam seu caminho. A perspectiva ainda se dá no visual, com as bem-executadas e sensíveis sequências de montagem na estrada, de onde se observa a pequenez do automóvel em relação ao plano vasto, aberto, infinito: o automóvel de Badii é Badii. A outra palavra é insistência.

 A estrada em Gosto de Cereja merece atenção especial - e é aqui que, hoje, aquele papo de poder semiótico faz sentido.

 Fica bastante claro que a insistência nela a transmuta em algo muito maior que ela mesma. Ela não é só o palco da ação: ela é a ação; não é só onde se desenrola a narrativa, ela é a narrativa. A pluralidade de elementos encontráveis nela é o que, em alguma medida, ensaiam uma traição ao objetivo de Badii. Ainda, a circularidade do percurso é o que também constrói sua infinitude, e quanto a isso, em Gosto de Cereja, o espectador pode experimentar a sensação de estar diante da mesma imagem repetidas vezes. Esse exercício de repetição pode mesmo ser lido como metáfora do absurdo da própria vida: por caminhos, pessoas e situações pelas quais passamos recorrentemente, mas sempre de alguma maneira, ainda que mínima, diferente.

 A montagem do filme explora a riqueza de sua capacidade multissemiótica. A posição da câmera dentro do carro é, por vezes, uma pista: eu e você também estamos no filme, e somos aqueles a quem Badii pede ajuda. Badii nos convida a sermos cúmplices do seu ato final.

 Existe um poema da polonesa Wislawa Szymborska intitulado Agradecimento, no qual ela explica o amor pela sua negação. Pois Gosto de Cereja faz algo parecido: ao insistir na morte como tema central, Kiarostami revela a beleza da vida. Mesmo o quê de incerteza que Badii salienta pode levar a crer nisso - reza a cultura popular que quem está cego na intenção do suicício, se oculta, e há relativa verdade nisso. Entretanto, ele recebe diferentes lições dos desconhecidos com os quais topa, sendo a última de uma beleza que exaspera: elegia ao poeta persa Sohrab Sepehri, com o qual o próprio Kiarostami teve contato em vida.

 Nos relevos infinitos, vicissitudes. Nas cores do horizonte, o Irã, metonímico. Nas portas, o céu. Nada em Gosto de Cereja é gratuito. Os planos-sequência, o texto, a escolha de localidade; tudo fecha num arco final que é tacada de mestre: Kiarostami nos informa, de maneira muito sóbria e seca, que nada daquilo é real. Já dizia o professor e crítico brasileiro Jean-Claude Bernardet, em O que é cinema: "Também nos dizem que o cinema reproduz o movimento da vida. Mas sabemos que não há movimento na imagem cinematográfica. O movimento cinematográfico é ilusão, é um brinquedo ótico. A imagem que vemos na tela é sempre imóvel." Porém, entretidos pelo enredo, nos frequentemente nos esquecemos desse fato, e é aí que Kiarostami nos acorda do sonho, com um balde de água bem gelado; ao mesmo tempo respondendo, de maneira direta, ao mesmo tempo, deixando muitas lacunas. Perspectiva, dessa vez, dos espectadores.

 Cinema corajoso, forte e, dentro de uma base constante, cheio de inconstâncias: assim é Gosto de Cereja.

 Por via das dúvidas, é melhor experimentar.

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