terça-feira, 30 de outubro de 2018

I was there in the world

Eu também fui uma dessas mulheres que saiu de casa sozinha no dia 29 de setembro. Com um cartaz, sem adesivos, tomei um metrô que, já pelas adjacências, florescia todo em violetas, em rosas brancas. Meço a temperatura nos olhares, nos sorrisos; é amena, me faz sentir em casa. Há, ainda algo tímida, uma confiança compartilhada, silenciosa e tácita se espalhando na estação de Vicente de Carvalho. Vejo mães, filhas, avós. Conversam umas com as outras, fazem selfies, se abanam do calor que está chegando. Uma delas me dá um adesivo com uma mensagem.
Há que afiar os ouvidos para notar quando a vida ganha um corpo maior que o nosso e nos sussurra, bem baixinho, sua torrente de força. Sua verdade. Tomo o metrô, e meu olhar encontra o de uma mulher, que como eu, saiu sozinha de casa no dia 29 de setembro. Não precisamos, mas sorrimos uma para a outra, e tecemos o velho e necessário fio de prosa que nos mantém humanos. Ela me conta um pouco de sua vida. Também é da educação. Também acredita que pode mudar alguma coisa. Tem os olhos tão brilhantes, a boca pintada e um sorriso que vai se abrindo devagar. Próxima estação, Inhaúma. O vagão vai inchando de um enxame de caras e cabelos coloridos. Ela diz que não se sentiu segura ao sair de casa com uma camiseta que identificasse seu propósito naquele dia principalmente porque estava grávida. "Grávida?", pergunto. Sim, havia descoberto há 3 dias. Próxima estação, Maria da Graça. Uma pequena semente, ainda invisível a olho nu, crescendo dentro dela no meio de uma também crescente multidão em curiosa espécie de metagravidez, marias de tantas graças por ali. De repente seu marido, motorista autônomo, a encontraria mais tarde. Penso no meu pequeno sobrinho, e como certos pensamentos precisam virar palavra, falo um pouco dele. De alguma maneira, ele também está no tênis que calcei nos pés, no cartaz que escrevi, na minha decisão de sair de casa em 29 de setembro. Algo muito profundo está acontecendo, algo que a compreensão falha ao tentar entender.
Estácio, estação de transferência. Na capilaridade da estação em si, uma reunião de pessoas dos mais diversos matizes, idades, estradas. Uma turba dessas é um organismo só, a uma só voz, se orquestrando num ajuntamento que faz com que sua força supere até mesmo seu grande número. Saímos, eu na frente, que sei o segredo escondido dos olhos do resto, aquele pequeno feto em formação. Sem sexo, só o registro de uma existência em botão.
Próxima estação, Cinelândia.
Nada na minha vida até aqui foi como pôr meus pés na Cinelândia em 29 de setembro, ainda dentro da estação. Por algumas vezes na vida pude, sim, sentir uma forte energia, orientada por outras razões, fosse carnaval, jogo do meu time, uma procissão em direção à praia em dia de alto verão. Mas nada como esse dia. Uma horda de pessoas, corações em uníssono: Ele Não. A vibração me atinge da cabeça aos pés e me eletrifica, derrubando dos meus olhos fracos lágrimas sem resistência. Eu abraço minha companheira de percurso, e o clichê é a mais pura verdade: um mais um é sempre mais que dois. Nós vamos juntas. Nós subimos juntas essas escadas, de mãos dadas. Uma senhora pede licença. Penso em minha avó. Como pesam essas cores de esperança, uma esperança que, não havia me dado conta, vinha sendo abafada pela maré de más notícias. Com que intensidade me tomam. Vivi até aqui pra viver esse momento. A mulher é a árvore da vida, portanto a árvore da história. Talvez isso por si já fosse bonito o suficiente, mas nessa corrente humana experimentei uma coisa que mudou pra sempre minha relação com as outras mulheres. Cada uma, um espelho. E os espelhos, quando recebem luz, luz devolvem. Pequena, pude ser imensa, vestida do orgulho que só a consciência sobre o meu gênero pode me dar. Nunca antes amei tanto ser mulher. O Sagrado Feminino, meus caros, é real, e respira, e pulsa. Não se pode matar, não se pode controlar.
O resto desse dia estará fartamente documentado em fotos e vídeos propagados como fogo em mato seco nos jornais, revistas, portais de toda espécie e orientação ideológica. Essa é a grande história. Quanto a mim, posso dizer da pequena, que nem por isso é menor.

Eu avisei

A isenção imediata da responsabilidade civil dos votantes em Bolsonaro - e o que isto diz diretamente sobre o processo eleitoral
Praia do Leme, sol de primavera quente no rosto. Tenho minha leitura interrompida pelo ruído animado de uma conversa de três mulheres ao meu lado. Duas delas argumentam pacientemente com a terceira sobre eleições. A terceira pretende votar em Bolsonaro, e entre os medos que elenca, primordialmente se sobressai aquele do Brasil se tornar uma Venezuela no caso de uma possível vitória de Fernando Haddad. É quando, provocada, peço licença e entro no assunto. Sou bem recebida, e entre uma cerveja e outra (que elas me oferecem), desvelo um pouco da realidade daquelas mulheres que, como eu, não são moradoras de Copacabana, mas do subúrbio. Três mulheres absolutamente amáveis, expansivas, com históricos de vida relativamente semelhantes. Uma delas perdera um filho de 18 anos numa tentativa de assalto, e durante a conversa esse é um assunto que vem à tona em variados matizes, quer no registro da segurança pública ou na pura e simples saudade. Esta havia votado em Ciro no primeiro turno, e tentava convencer a amiga que Bolsonaro não traria a solução que ela esperava. "É só olhar pra ele, menina. Uma cara ruim, fechada; um tom agressivo até pra falar de coisa boa. Tá doida ela!". Mas a amiga insistia, e entre uma frase automática e outra desconversava, escorregando o tópico para a série na academia, o marido, os netos.
Umas das minhas decisões para tentar virar o jogo que infelizmente não consegui foi de me imiscuir em todo e qualquer debate ou promover o diálogo com pessoas que manifestassem simpatia pelo presidente eleito. Foi uma jornada entre barcas, metrôs, pontos de ônibus, vans, praias. A falta de intimidade com desconhecidos é uma ferramenta útil. Coloca o necessário muro social sobre o qual as pessoas geralmente se tratam com educação e ressalva, coisa que as telas dos smartphones ou o excesso de intimidade entre amigos não permite. Durante esse conturbado processo eleitoral, marcado por uma campanha evidentemente caluniosa, muitas palavras gastaram-se, e em algumas outras pouco se falou. Gastou-se a palavra "fascista". Gastou-se a palavra "nazista". "Racista" também entra nessa conta, e o flagrante desse desgaste é notório (e preocupante) quando eleitores de Bolsonaro conseguem incluir, no mesmo campo semântico que estas, a palavra "taxista". Mas chamo atenção aqui para o maior desgaste que pude observar no período que, dois dias após a eleição, mostra sua esperada face: a nulidade da responsabilidade discursiva, a grande protagonista das eleições no Brasil em 2018. A isenção imediata da responsabilidade civil dos votantes em Bolsonaro.
Isso fica bastante claro na grande festa realizada em alguns lugares no Brasil. Na Barra da Tijuca, Rio de Janeiro, bairro onde reside o futuro presidente, testemunhou-se uma cena comparável apenas à que seria possível caso o Brasil não tivesse sido eliminado pela Bélgica nas quartas da copa do mundo, em junho. Porque se tratava precisamente disso: jogo e fé. Assim, fica claro o papel da política para quem elegeu Bolsonaro. Estes indivíduos levam a política literalmente como uma partida de futebol, que acompanham devidamente uniformizados. Encerrados os 90 minutos - cabe dizer, de um jogo crivado de faltas graves, muitos cartões vermelhos e amarelos, arbitragem absolutamente questionável - sequer há possibilidade para os acréscimos. Voltam pra normalidade das suas vidas, porque afinal, nunca foi sobre discussão de propostas, combate à corrupção, engajamento real (sobretudo físico) troca de saberes. Numa conversa que tive com um amigo, tentei mostrar a ele que não, futebol, religião e política não podem estar no mesmo domínio porque política é ciência, e deve ser sempre discutida como tal: com fatos, dados, análise de conjuntura histórica, leituras obrigatórias; ponto que reforcei exaustivamente durante os últimos meses em outras conversas. Sem muito sucesso, como visto.
Decerto: erros foram cometidos dos dois lados. Lula e Bolsonaro se transformaram no que pior podiam para qualquer debate que se pretenda verdadeiramente político: mitos. A criação do mito dentro do espectro político enseja, sem surpresas, uma guerra puramente egóica na qual falta substância, sobra meme e pela qual todos pagamos, aqui e ali com pequenas diferenças. Autocrítica, ao que parece, nunca foi uma palavra tão distante e nunca antes todo um país precisou tão urgentemente ir para o divã de maca. Entretanto, é digno de nota o comportamento do eleitor regular de Bolsonaro no que toca a responsabilidade civil de seu voto: para eles, acabou na urna, e que o mito faça, sem supervisão, o que prometera - afinal, basta a confiança depositada na urna, num número, o número em si uma abstração.
Hoje pela manhã mandei, por whatsapp, uma mensagem para minha amiga da praia que votou no candidato vencedor. Na mensagem, constava uma declaração formal de Maduro, então presidente da Venezuela, felicitando o presidente por sua eleição. Anexei à imagem um comentário, "é possível que isso te interesse", e a resposta foi que eu estava equivocada, afinal, ela era brasileira, e não venezuelana, e que era melhor parar com esse papo chato. Pela internet, vi comentários no mesmo tom, "avisa que a eleição já acabou", "chora mais", "é mimimi de perdedor". É disso que se trata: o mito produz o mimo. O que as pessoas que votaram em Bolsonaro não parecem entender é que a eleição é apenas um momento de um processo democrático contínuo, e que demanda vigilância constante. O debate faz parte disso, naturalmente, mas o que esperar dos eleitores de um líder que limita sua projeção no grande (e no pequeno) ecrã, um líder quase holográfico?
É natural o reflexo do comportamento de um líder como esse em seu eleitorado. Mas transformo numa pergunta a afirmação de um artista contemporâneo: será que meninos mimados podem reger a nação?