A isenção imediata da responsabilidade civil dos votantes em Bolsonaro - e o que isto diz diretamente sobre o processo eleitoral
Praia do Leme, sol de primavera quente no rosto. Tenho minha leitura interrompida pelo ruído animado de uma conversa de três mulheres ao meu lado. Duas delas argumentam pacientemente com a terceira sobre eleições. A terceira pretende votar em Bolsonaro, e entre os medos que elenca, primordialmente se sobressai aquele do Brasil se tornar uma Venezuela no caso de uma possível vitória de Fernando Haddad. É quando, provocada, peço licença e entro no assunto. Sou bem recebida, e entre uma cerveja e outra (que elas me oferecem), desvelo um pouco da realidade daquelas mulheres que, como eu, não são moradoras de Copacabana, mas do subúrbio. Três mulheres absolutamente amáveis, expansivas, com históricos de vida relativamente semelhantes. Uma delas perdera um filho de 18 anos numa tentativa de assalto, e durante a conversa esse é um assunto que vem à tona em variados matizes, quer no registro da segurança pública ou na pura e simples saudade. Esta havia votado em Ciro no primeiro turno, e tentava convencer a amiga que Bolsonaro não traria a solução que ela esperava. "É só olhar pra ele, menina. Uma cara ruim, fechada; um tom agressivo até pra falar de coisa boa. Tá doida ela!". Mas a amiga insistia, e entre uma frase automática e outra desconversava, escorregando o tópico para a série na academia, o marido, os netos.
Umas das minhas decisões para tentar virar o jogo que infelizmente não consegui foi de me imiscuir em todo e qualquer debate ou promover o diálogo com pessoas que manifestassem simpatia pelo presidente eleito. Foi uma jornada entre barcas, metrôs, pontos de ônibus, vans, praias. A falta de intimidade com desconhecidos é uma ferramenta útil. Coloca o necessário muro social sobre o qual as pessoas geralmente se tratam com educação e ressalva, coisa que as telas dos smartphones ou o excesso de intimidade entre amigos não permite. Durante esse conturbado processo eleitoral, marcado por uma campanha evidentemente caluniosa, muitas palavras gastaram-se, e em algumas outras pouco se falou. Gastou-se a palavra "fascista". Gastou-se a palavra "nazista". "Racista" também entra nessa conta, e o flagrante desse desgaste é notório (e preocupante) quando eleitores de Bolsonaro conseguem incluir, no mesmo campo semântico que estas, a palavra "taxista". Mas chamo atenção aqui para o maior desgaste que pude observar no período que, dois dias após a eleição, mostra sua esperada face: a nulidade da responsabilidade discursiva, a grande protagonista das eleições no Brasil em 2018. A isenção imediata da responsabilidade civil dos votantes em Bolsonaro.
Isso fica bastante claro na grande festa realizada em alguns lugares no Brasil. Na Barra da Tijuca, Rio de Janeiro, bairro onde reside o futuro presidente, testemunhou-se uma cena comparável apenas à que seria possível caso o Brasil não tivesse sido eliminado pela Bélgica nas quartas da copa do mundo, em junho. Porque se tratava precisamente disso: jogo e fé. Assim, fica claro o papel da política para quem elegeu Bolsonaro. Estes indivíduos levam a política literalmente como uma partida de futebol, que acompanham devidamente uniformizados. Encerrados os 90 minutos - cabe dizer, de um jogo crivado de faltas graves, muitos cartões vermelhos e amarelos, arbitragem absolutamente questionável - sequer há possibilidade para os acréscimos. Voltam pra normalidade das suas vidas, porque afinal, nunca foi sobre discussão de propostas, combate à corrupção, engajamento real (sobretudo físico) troca de saberes. Numa conversa que tive com um amigo, tentei mostrar a ele que não, futebol, religião e política não podem estar no mesmo domínio porque política é ciência, e deve ser sempre discutida como tal: com fatos, dados, análise de conjuntura histórica, leituras obrigatórias; ponto que reforcei exaustivamente durante os últimos meses em outras conversas. Sem muito sucesso, como visto.
Decerto: erros foram cometidos dos dois lados. Lula e Bolsonaro se transformaram no que pior podiam para qualquer debate que se pretenda verdadeiramente político: mitos. A criação do mito dentro do espectro político enseja, sem surpresas, uma guerra puramente egóica na qual falta substância, sobra meme e pela qual todos pagamos, aqui e ali com pequenas diferenças. Autocrítica, ao que parece, nunca foi uma palavra tão distante e nunca antes todo um país precisou tão urgentemente ir para o divã de maca. Entretanto, é digno de nota o comportamento do eleitor regular de Bolsonaro no que toca a responsabilidade civil de seu voto: para eles, acabou na urna, e que o mito faça, sem supervisão, o que prometera - afinal, basta a confiança depositada na urna, num número, o número em si uma abstração.
Hoje pela manhã mandei, por whatsapp, uma mensagem para minha amiga da praia que votou no candidato vencedor. Na mensagem, constava uma declaração formal de Maduro, então presidente da Venezuela, felicitando o presidente por sua eleição. Anexei à imagem um comentário, "é possível que isso te interesse", e a resposta foi que eu estava equivocada, afinal, ela era brasileira, e não venezuelana, e que era melhor parar com esse papo chato. Pela internet, vi comentários no mesmo tom, "avisa que a eleição já acabou", "chora mais", "é mimimi de perdedor". É disso que se trata: o mito produz o mimo. O que as pessoas que votaram em Bolsonaro não parecem entender é que a eleição é apenas um momento de um processo democrático contínuo, e que demanda vigilância constante. O debate faz parte disso, naturalmente, mas o que esperar dos eleitores de um líder que limita sua projeção no grande (e no pequeno) ecrã, um líder quase holográfico?
É natural o reflexo do comportamento de um líder como esse em seu eleitorado. Mas transformo numa pergunta a afirmação de um artista contemporâneo: será que meninos mimados podem reger a nação?
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