terça-feira, 16 de fevereiro de 2016

Leite de leoa

Arco-íris furando os pequenos corpos d'água suicidas que no chão fumam o calor da terra. Antes de menstruar eu gostava de deitar o ouvido na terra ensopada das chuvas quentes do fim de fevereiro, e a terra fazia barulhos que eu gostava de ouvir. Era som de minhoca, de menino soltando pipa, borboleta presa em cuia de vidro, Miguel, que não chegou aos cinco anos. Minha mãe me suspendia pelo braço, a metade do rosto coberta de relva, uma hora vai entrar um bicho nesse teu ouvido. Mas eu gostava mesmo de todos os bichos. Não me lembro, mas talvez eu quisesse ter uma cabeça cheia de insetos dentro, voando, voando.

Invasivo o cheiro do patchouli vindo do quarto da Joana. Ela tá lá com um cara desde ontem. Penso na Mirna e o rosto esquenta. Ela não tá errada e é horrível saber disso. Por quanto tempo mais vamos viver assim, afinal? Eu bem queria dizer que vai ser diferente. Mas é covarde garantir o que não se sabe.

Da caixinha de fitas roxas a primeira foto que salta é a de Miguel. Ninguém teve tempo de conhecê-lo e todo mundo sofreu demais. Depois, mamãe se mudou com a gente pra Buenos Aires, e lá a gente viveu até feliz pouco antes do meu aniversário de nove anos. Foi justamente nele que pensei hoje de manhã. Todo mundo junto na casa de veraneio, dias mais azuis. As fotos não mentem: o calor do contato, bolo de aniversário com as letras do meu nome, uma de cada cor, buracos nos sorrisos dos meus primos. Tio Hadda no cantinho, sua última foto com a gente. Em cada foto, um filete de sangue. E é dentro desse filete que eu me encontrei nadando impossivelmente nesta manhã.

Talvez não tenha sido culpa dos excessos. Dos encontros cegos, da sensação do manuseio - eu realmente não consigo me lembrar de nada que aconteceu nos últimos quatro dias, mas por pior que eu me sinta com relação a isso, talvez não seja aqui que se deva atribuir culpa. Talvez seja o olhar de Mirna na rede, Mirna sorrindo os olhos falsamente calmos. O rosto esquenta. Na pele ainda resiste o brilho das lembranças vagas.

Mas foi de Petrópolis que veio o golpe maior. É improvável que, antes, coisa alguma tenha me quebrado mais e melhor. Chega a dar pena, Nita, a pitangueira tá linda, as pitangas todas estão desprendendo do pé e não tem ninguém pra colher. Não tem ninguém pra colher. Não tem ninguém pra colher. Não sei quantas vezes eu me repeti a mesma frase, repeti mesmo, pra doer. Quando ficamos todos tão relapsos com nossos próprios jardins? De que servem as abundâncias que não tocam ninguém? Quem negligencia as abundâncias merece os espinhos, se assim crescerem. Espinhos também podem crescer mesmo diante de súplicas por abundância, e a insistência adiciona raiva ao seu crescimento. Única coisa certa, os espinhos. As pitangas sangrando a terra úmida que eu gostava de deitar o ouvido; talvez, bem melhor que nós, seja de fato a terra quem mereça beber as pitangas. Ainda assim. Ainda dói. Nove anos, os primos desdentados, a branditude duma vida inteira no sabor leve dos verões dos janeiros quando ainda não se falava em aquecimento global, Miguel, dançando ainda, anjo sem jeito, nas lágrimas de mamãe soprando minhas velinhas coloridas. Nove meses, Miguel poderia nascer outra vez, mas a amargura secou as flores dela, então eu virei filha única. Nove meses sem ver minha mãe. O rosto queima em temperaturas impossíveis, comprime e conflagra o peito. Gritar. Gritar. Gritar.

O telefone vibra e é Mirna. Não estou. Ela também não. Talvez outra hora, talvez outra vida.

A ausência tem uma filha que se chama saudade. Mas passa o gato serpenteando o rabo na perna direita. Mamãe costuma contar pras amigas que mamei até os quatro anos de idade.

Tudo vai passar.


Para J.

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