Bate meio-dia e dois no relógio biológico de Alina. Ela deixa o arroz cozinhando, cata o molho de chaves, calça os surrados chinelos de borracha de desbotado azul e sai de casa para buscar o irmão menor, Ruan, na escola. Passa a mão pela nuca, o dia estava abafado. O furioso astro maior lhe sorria, latente e amarelo, incontáveis quilômetros acima.
Ao atravessar a rua, um hidrante estourado fazia o alívio de dois vira-latas que ali se encontravam. Os cães refestelavam-se naquela sensação e, pensou Alina, quem dera que pudesse se juntar a eles sem que aquilo fosse interpretado como um óbvio e perigoso acesso de loucura. Ela tinha medo de cachorros, mas não acreditava que aqueles fossem capazes de abocanhar-lhe um bom naco de perna como havia feito o maldito Tota, da Mirtha, há dois anos. Aquele infeliz evento quase invalidara a perna esquerda da frágil e quebradiça Alina.
Uma rua à frente, o colégio São Dominguez. Os olhares debochosos das meninas de cabelo aloirado e camisas curtas e a gesticulação expansiva e afobada dos meninos causavam desconforto em Alina. O cheiro de cigarro e de promiscuidade era insuportável dentro das rodinhas deles. Aos olhos da menina, toda aquela superficialidade era a mais pura vontade de aparecer. Ou era Alina que não se encaixava? pensando bem, a segunda opção era a mais provável.
Sinal fechado. Eis que na direção dela, corre uma pequena manada de estudantes do mesmo colégio para tentar alcançar um ônibus que ia embora. Claro, tudo gritado, gargalhado, à trote. Alina não se encaixa. Enrola seus cabelos ensebados da gordura de cozinha, num discreto coque no topo da cabeça. Prossegue.
Chega à escola, onde o irmão já a aguarda há uns minutos. Ao vê-la, Walkíria, a mulher gorda de pernas finas que coordena a saída das crianças chama pelo nome do irmão. Alina fica a observá-la, com a descrição que lhe é característica. O suor no buço. O buço. O suor na testa, onde os cabelos começam. A feiúra dos sulcos, o corpo disforme. Ainda assim, ela ostenta uma aliança. Como uma pessoa daquela poderia ter algum atrativo? Alina não entende.
O irmão chega em alguns minutos, também suado. Tagarelamente conta como foram as atividades escolares. Ele é o oposto da seca Alina. Por dentro e por fora. O arroz no fogo! Alina então agarra a mão de Ruan e toma a rua da feira, que é um bom corta-caminho. A feira multicromática, com cheiro de salada de frutas, com cheiro de podre. Os filhos de alguns feirantes com o pé no chão. Apesar de toda a pobreza, havia certa felicidade naqueles olhos todos. Todo aquele desconcerto leva Alina a crer que, de alguma forma, é por causa disso que o mundo funciona. Por causa das mini-putas do colégio público, por conta dos cães e seu banho de sol inusitado. Até a desgraça tem sua graça.
Ruan pede um churros que Alina não pode comprar. Ruan pede figurinhas que Alina não pode comprar. E os dois rumam para casa; Alina, com o coração mais feliz.
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