A repetição sempre guarda algo de extraordinário nos invisíveis pontos das intersecções. Uma vez que nunca são perfeitas, deixam brechas, de tamanhos variados, para reacontecimentos. Sei disso nas pequenas cruzes que minha avó fazia com seus dedos curtos na toalha de renda sobre a mesa da cozinha. Ela fazia círculos nos cabelos - a repetição em todos os lugares - e cruzes com os dedos quando começava a contar uma história diferente. Talvez fosse o espasmo de uma vida inteira no catolicismo, mas, automático ou não, aquele era sempre um discreto sinal de mudança de narrativa. Minha avó e seus detalhes.
Silogismo barato: se na repetição há sempre algo de extraordinário, e se na velhice são possíveis pontes com a repetição, talvez então a velhice reserve extraordinaridades. Especialmente a velhice da minha avó. Entre recordações carcomidas, fotografias queimadas e anacolutos emocionais, minha avó me oferecia amostras simples de filosofia material aos domingos entre duas e seis da tarde, e falava sobre quase tudo, porque quase tudo era objeto de sua atenção. Ela gostava de ver aviões de seu terraço, por exemplo. Havia até ganhado um binóculo de presente para acompanhar seus vôos, imaginando repetidas vezes o quão estranha era a total subtração do peso daqueles componentes de metal, que consequentemente se desprendiam do chão. Pouco convencida da infalibilidade dessa física - minha filha, você viu na televisão, caiu mais um avião!, não era raro ela começar uma conversa assim - minha avó tinha medo de andar de avião. E não andava.
Cruzes. Agora eu tenho dez anos e estamos na casa de praia. Ela descasca uma laranja. Com a boca cheia, me diz que minha mãe havia me arrumado inteira, banho tomado, vestido, cabelo penteado; mas que por alguma razão eu teimava em me embrenhar nos matagais altos que circundavam a casa à procura de possíveis animais. Você queria ser veterinária, falava isso o tempo todo - cospe os caroços na mão em forma de concha. Sua mãe ficava louca, "é pena não ter uma sucuri aí pra te engolir", ela gritava. Mas a sucuri não apareceu, eu não me tornei veterinária e dezessete anos depois isso ainda a leva às gargalhadas. Ela passa as unhas sobre um dos meus braços, carinhosamente. Pega pra si outra laranja.
Cruzes. Laranja e banana são minhas frutas preferidas. Criada na pobreza, a gente não tinha luxo, meu pai só podia me dar laranja e banana, então laranja e banana são minhas frutas preferidas. E de tanto que ela dizia aquilo eu já não conseguia passar por bananas e laranjas sem pensar nela. Uma vez, lhe propus o desafio de descascar uma laranja inteira deixando a casca numa espiral intacta dos cortes da faca. Aquela era uma de suas grandes habilidades. E o cheiro azedo das laranjas era cheio de memória. Minha avó descascando laranjas pros meus primos em 94. Minha avó descascando laranja pro meu avô em 97. Minha avó descascando laranjas na atemporalidade do descascar em que eu me imaginava subindo ou descendo o infinito caracol cítrico. A memória não é lógica.
Às vezes - muitas vezes - não é sobre o conteúdo das anedotas, mas sobre a maneira como elas são colocadas. A tentativa de emulação que elas trazem, como se pudessem nos devolver quantos anos possíveis no tempo. E no hábito inconsciente da recontação das histórias era inferível que aquele talvez fosse um recurso para evitar o escoamento das lembranças, como um menino que segura, inerte nos braços, seu cachorro que morreu. Minha outra avó havia sido vítima do Alzheimer. Quantas amigas minha avó já teria perdido para a morte não é possível estimar, mas das piores mortes que se tem notícia, a demência é uma delas porque a demência é a perda do afeto. Se encastelar por dentro, e partir as pontes que dão para o mundo. A persistência da minha avó em manter-se recontando as mesmas histórias era tática de sobrevivência. Eu não tenho dúvidas disso.
O que era claro era que havia afeto. Quanto mais velha, mais afetuosa minha avó se tornou. As histórias eram as mesmas, mas o afeto havia crescido de alguma forma não-aferível, não-nominável. Esse crescendo abrigava espaço pra pequenas minúcias que não haviam surgido até então. Histórias recentes de um passado ainda mais distante, quando ela tinha dezenove anos e trabalhava na intendência da guerra e a maria-fumaça, expelindo carvão vivo, fazia pequenas queimaduras no seu vestido simples. Ou mesmo seu interesse (sincero) na minha conturbada vida amorosa. Maria passe na sua frente, minha filha.
Certamente era um afeto maior. Até as laranjas ficaram mais doces.
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