terça-feira, 3 de novembro de 2015

Depois do eclipse

Não que este seja um fato extraordinário, mas as coincidências são verdade. As coincidências, inclusive, costumam carregar verdades mais bem elaboradas do que pode imaginar a marcha lenta do cotidiano. Por isso me retenho, olho devagar: há sinais por toda parte. Por toda parte.

Ainda me são nítidos os joelhos proeminentes de Lúcia na varanda, aqueles joelhos colados, cascas de ferida recente, arranhões, e são aqueles joelhos a única lembrança clara que de fato tenho dela. Talvez ela usasse óculos, talvez não. Talvez usasse aparelho, talvez não. Talvez tivesse cabelos lisos enfiados na faixa; nada disso vou lembrar. Como Lúcia, toda vizinhança estava contando nos dedos quanto tempo ainda faltava para o eclipse. Um olho no relógio, o outro no céu. O velho Braga não saíra de casa o dia inteiro, disse que tinha de dar comida aos pássaros, que não gostava de eclipse. Foi o único. No imenso terreno baldio atrás de sua casa, os meninos se reuniam naquela tarde para folhear revistas de mulher nua. Eram cinco ou seis. Dona Esmeralda também espreitava, sentinela, a cabeça em bobes azuis. Dona Esmeralda era gentil e maternal com todas as pessoas. Foi dela que recebi uma afetuosa trouxa com bolos de castanha pouco antes de deixar a cidade. Seu Braga. Os meninos, imberbes ainda. Lúcia batendo os pés na varanda de casa, encolhida, o queixo nos joelhos. Há muito tempo eu não pensava nesse dia.

Uma vez ouvi dizer que só não conseguimos esquecer as coisas que, em alguma instância, nos traumatizam. E eu sei que mesmo o que é belo e bom pode traumatizar. Em alemão, por "traumm" entende-se sonho. Associação feita, é inescapável concluir que sonhos traumatizam, especialmente os mais belos. Sonhos traumatizam. Talvez só se trate de um jocoso capricho linguístico. Mas talvez essa via heterodoxa exprima a mais perversa natureza do sonho em si: sonhos são linhas mágicas costurando e descosturando as passagens por onde a beleza caminha. A beleza, traumatizatória.

Um a um, todos foram saindo de casa. A hora do eclipse, à vista. As crianças se empurrando em brincadeiras de rua, os adultos disfarçando suas próprias crianças em comentários superficiais com as mãos nos cotovelos. Chovia uma chuva meio amarelada, incerta, deixando o dia meio amarelo, deu na televisão que talvez a chuva comprometesse a visibilidade, mas em cada coração se sabia que não, e se sabia que naquela tarde sol e lua se beijariam por onze minutos, onze anos a idade de Lúcia na varanda, onze segundos o tempo total do gozo de um menino, onze minutos e todas as belezas do mundo se firmam e padecem. Onze os bobes azuis na cabeça de Dona Esmeralda, e onze também os pássaros prisioneiros e bem alimentados de Braga, o velho. O eclipse está no chão.

Onze minutos.

Só sei que se ouviu um grito vindo do terreno baldio. Não. Da casa do Braga. A vizinha o encontrou com um meio-sorriso terno e confortável e gelado, sentado numa cadeira de palha, as duas mãos nos encostos, feito um rei. Os meninos, que chegaram depois do grito, abriram todas as gaiolas, e foi uma pequena revoada de periquitos, canários-belgas, sabiás. Aproveitaram, ainda, para tomarem pra si as mangas, que de tão intensas, se desprendiam dos galhos da mangueira sem resistência.

 Dona Esmeralda nunca mais foi vista. Ninguém soube dela. Nunca mais cheiro de bolo de canela perfumando a rua, nunca mais favores, nunca mais bobes azuis na janela. Mas a ultima lembrança que tenho daquele lugar e daquele dia é de Lúcia.

Lúcia no centro da violência das belezas. Lúcia chorando, desesperada na varanda, e afastando de si as próprias roupas, tingidas no meio por uma mancha indissolúvel do que parecia ser o primeiro café do primeiro dos dias.

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