quarta-feira, 30 de outubro de 2024

"Viva os maluco"

Quando um dos meninos suspendia a bola na axila e as crianças paravam a partida de futebol na rua, era a hora do silêncio porque era a hora da passagem. Sua passagem. Certo: a rua não era delas, e quando passava alguém, precisavam interromper o jogo, o que não interrompia a algazarra, o zunido, a tagarelice; mas não quando ele passava. Era precisamente o desconcerto do silêncio que anunciava que ele vinha na outra ponta da rua, seu conhecido andar lento e pesado como se a demência fosse uma corrente invisível pendendo dos punhos moles continuados pelas mãos enormes em formato de garra, fruto de seus dedos sempre arcados, culpa de uma má-formação genética. Grandão era esbugalhado de corpo e impunha respeito sem abrir a boca, exceto pelos momentos em que pedia por cigarro a quem quer que passasse fumando perto dele. Ainda não havia nascido quem negasse. Apesar de sua mudez habitual e jeito manso, ninguém duvidaria que ele poderia esmagar um crânio com um braço só. Tinha até quem dissesse que ele já havia feito algo parecido, mas com cachorros, as únicas criaturas vivas que penetravam a sua imperturbável paz. O rumor se devia pelo seu destempero quando ouvia latido de cachorro, mas mesmo os cachorros de rua haviam aprendido a economizar seus instintos na presença dele. Certo é que onde sobra burburinho falta evidência, e Grandão nunca fora visto fazendo mal algum a qualquer animal ou pessoa. O que havia por trás daqueles olhos dispersos e graves era só mistério. Só imaginação. Era engraçado quando ele repuxava sua encardida bermuda listrada até a altura do estômago, dando a ele um aspecto de atração de circo e provocando uma gargalhada involuntária - mas por juízo, sempre contida - em quem cruzasse o seu caminho. Tudo ali era uma grande interrogação, mas do tipo que não detém muito. Se sabia que ele morava na rua, nos arredores do mercado do centro, mas não poderiam dizer quando havia chegado. Se sabia que ele não era dali, mas não poderiam dizer de onde. Se sabia que ele se irritava com cachorros, mas não poderiam dizer o porquê. Grandão era definido pelo temor que emanava de sua composição física notável, e justificado ou não, era impossível disfarçar que esse temor existia.

Nem todos eram como Grandão. Aliás, eram grandes as variações dos tipos. Alguns eram como o Homem da Cueca, que andava por ali também. Todos conheciam a história do Homem da Cueca. Enjeitado às portas da paróquia local, cresceu num abrigo para menores numa comunidade próxima a uma escola de samba. Tinha um parente, que todos pensavam tio, que às vezes o visitava, até que um dia o homem não voltou mais, nem nada se soube dele. Primeiro o Homem da Cueca se chamava Ronderson, mas lá pela adolescência deu pra perambular pela cidade apenas usando uma regata que lhe cobria apenas o tronco estranhamente desproporcional à bunda magra e às longas e finas pernas que o seguiam na vertical, e que ficavam à mostra, resultando no apelido pelo qual ficara conhecido. Uma doença rara e mal curada (diziam) ainda na infância, deformara seu rosto, o que o transformava numa alegoria viva, especialmente se se somasse a isso o inalterável sorriso de quem jamais experimentou, de maneira consciente, o escárnio social do qual era objeto. O Homem da Cueca era distraído por qualquer movimento diante dos olhos, e por isso, certa vez, sofrera um atropelamento que o deixara permanentemente manco. Ainda é possível vê-lo vagando por aí, os olhos vazios sobre o sorriso enigmático que não sorri sobre nada em especial.

Mas diferente do Homem da Cueca e de Grandão, criaturas silenciosas em seu passar, havia as que contrastavam pelo ruído. O que era o caso de Medusa. O segredo era um só: nunca, em hipótese alguma, fazer contato visual.

Como de costume, ninguém sabia de onde tinha surgido, mas deu pra circular pelas ruas no entorno da praça do skate há coisa de um ano, ou dois. Degon Barriga, um cachaceiro que vivia num bar por lá - e que só não era muito diferente deles por ter onde morar - logo chamou aquela mulher estranha e de cabelos sempre desalinhados de Medusa. E o apelido pegou rápido, até porque a pobre nem nome tinha, ou ninguém sabia, ou queria perguntar. Passar por ela e olhá-la nos olhos era considerar que um avanço era uma possibilidade. Uma vez atacou a filha do pastor Eudério, que se aproximou dela pra rezar pela sua alma, destruindo sua bíblia em mil pedaços e puxando seu cabelo. A garota não precisou gritar por socorro por muito tempo: os homens que estavam no bar e viram o ataque foram correndo apartar Medusa da menina que, assustada, presenciou, com pena - apesar de um ferimento que Medusa lhe causara à unha na cabeça - a surra que lhe deram os homens quando a cercaram. Assim, Medusa era geralmente vista de longe, e os pivetes mais ousados que lhe provocavam chamando-a pelo apelido ser serem vistos por ela, o faziam por trás de muros, árvores, carros, pilastras. Procurando a origem das vozes, ao virar-se de um lado para o outro, era como se Medusa estivesse lutando contra uma horda de fantasmas germinados na própria mente.

No que dependesse das pessoas curiosas e ordinárias daquele lugar, Medusa tinha até marido. Não era Grandão, nem era o Homem da Cueca, mas o último tipo que compunha aquela memorável tropa: Binha Caranguejo. 

Fabiano era seu nome, e isso era sabido porque, ao contrário dos demais, a família de Binha Caranguejo era conhecida por lá. Tinha 36 anos, e era o irmão mais novo de Roberto, o Betobatuca, que tinha um grupo de pagode e tinha fama de ser um cara violento, especialmente com as mulheres. Todo mundo sabia que Binha tinha sido, há muitos anos, vítima da violência fraterna, e que fora provavelmente por causa dela que tinha caído nas ruas. Quando adolescente, Fabiano começou a fumar maconha, aqui e ali, escondido, até ir perdendo a vergonha. Ciente disso, Roberto, após uma briga doméstica bem feia com o irmão por outro motivo, fez da maconha o estopim pra uma atitude extrema, e um dia, enquanto Fabiano dormia, foi surpreendido com um banho de óleo fervendo em sua cama. Nada aconteceu com Roberto, que ainda era menor de idade. Alguns anos depois, começou a tocar em grupos de pagode locais, tocava bem, ganhou certa fama, e a história acabou sendo esquecida. Já Fabiano ficou desfigurado após o ataque e, sem suporte familiar, acabou de vez nas ruas, desenvolvendo esquizofrenia e virando, então, Binha Caranguejo. Alvo de escárnio constante, tanto quanto Medusa, para Binha havia até uma música, que quando cantada, o enfurecia: "Eu vou tacar uma pedra/ e vou chamar o Cacau/ meu nome é Binha Caranguejo/ E eu não sou normal". Carlos Bigflipo, o Cacau dos versos cruéis, era a única pessoa que intercedia por Binha, um skatista que dele se apiedava e defendia quando as gozações começavam. Por ele, a seu modo, Binha manifestava afeição. Outra encarnação, no entanto, encabulava Binha, justamente a que o colocava como par romântico de Medusa. Sorrindo sem jeito e sem os dois dentes frontais, a impressão era de que ele identificava alguma espécie de elogio ali.

Binha morava em um barraco no fim da rua 8, atrás da igreja, que um dia, virou notícia do jornal do bairro por ter amanhecido incinerado com ele dentro. Todos os olhos se voltaram para Betobatuca, reacendendo o antigo desentendimento entre ele e o irmão, sendo logo desestimulados pelo fato do músico estar em turnê em outro estado com seu grupo de pagode. Betobatuca, aliás, só viria a saber do ocorrido com o irmão uma semana após o ocorrido, e segundo comentários, não manifestou reação alguma. Apesar de chamado para depor, novamente nada lhe aconteceria, voltando a viver sua vida normalmente e até aparecer em um programa de televisão. O fogo que consumiu o barraco gravou no muro uma sombra escura em indefinido formato de coisa ruim, e o crime contra aquela pobre criatura sucumbiria na memória popular não fosse uma pichação, feita com tinta branca, onde se lia "VIVA OS MALUCO", que apareceu por lá algum tempo depois.

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